MITO

“Pessoa, fato ou coisa real valorizados pelo imaginário popular, pela tradição. Uma narrativa de significação simbólica, transmitida de geração em geração, dentro de determinado grupo, e considerada verdadeira por ele”. [Aurélio,2005]. Os mitos são tão antigos quanto as sociedades humanas e costumam aparecer com mais intensidade em momentos de mudanças ou de ruptura social.

Ele foi construído com idéias nazistas, como se tivesse exsurgido um deus brasileiro. Não era exatamente um fascista. Na verdade, ele soube jogar dos dois lados. Era como um jogador que quase sempre blefava para não perder os seus objetivos. Um gaúcho baixo, barrigudo, nacionalista, capitalista, autoritário, carismático, antipático, que se tornou um ídolo, uma referência em todo o Brasil e, após sua morte, elegeu-se um mito. Isso mesmo...elegeu-se. Sua morte não passou de um plano.

- Alô – disse Getúlio Dornelles Vargas com a voz trêmula.

- Senhor, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica romperam – gritou Gregório Fortunato – chefe da guarda pessoal de Getúlio.

Desligou o telefone, dirigiu-se à janela, contemplou a bela paisagem em frente ao Palácio do Catete – Rio de Janeiro. Sua vida estava perto de chegar ao fim. Era o início de uma segunda revolução. Em algumas horas, se tornaria um dos maiores mitos que passou pelo Brasil. Entraria na história quando saísse da vida. Percebeu o quanto a vida é efêmera, o quanto o mundo nos abandona em situações adversas, o quanto os “amigos” nos derrubam quando perdemos o poder.

Voltou-se para o espelho, olhou-se durante uma hora, caminhou em direção ao cofre, tentou lembrar-se do segredo. Folheou alguns papéis, separou uma folha velha e amarelada do meio do restante. Perdeu algum tempo lendo-as diversas vezes. Ergueu-se. Descerrou o cofre novamente, retirou um revólver calibre 38, o contemplou como se fosse ouro. Ele estava feliz e triste. Sua missão foi cumprida. Abriu a porta do closet, escolheu a melhor roupa, vestiu-se, olhou-se no espelho outra vez, sorriu. Sua aparência teria mudado. Estava radiante, como uma criança que acabara de ganhar uma nota dez do seu professor de matemática.

Sim...era um plano assustador, talvez macabro. Os militares o cercavam, obrigando-o a renunciar. Uma nova ditadura estava preste a começar, essa seria comandada por militares do exército. Eles redigiram o Manifesto dos Coronéis, estavam insatisfeitos com os patamares salariais das forças armadas. Em pouco tempo, provavelmente, o Brasil seria vítima de um grande golpe pelo poder.

Há uma semana, Getúlio Vargas reunira-se com seus assistentes e com sua guarda pessoal. Combinara um suicídio para impedir a concretização do golpe militar e estabilizar as manifestações de violência que ocorriam. Um suicídio seria ideal para sensibilizar o povo brasileiro, que sairia às ruas proclamando o seu nome, lutando por justiça, exigindo democracia e paz, alguns representando aquela piedade falsamente respeitosa que a tragédia costuma inspirar.

Vargas era adepto de uma seita originada na Idade Média intitulada de Quesnay-Leade. Ela foi criada pelo profeta espanhol Frank Perón Quesnay, e adoração à morte era a característica mais marcante dela. Segundo Quesnay, na iminência do segundo milênio, três grandes homens seriam suscitados para se tornarem guias de uma nova ideologia, estando predestinados a revolucionar a humanidade, a fim de construir, a partir deles, um novo mundo, um novo pensamento, uma única raça e uma única teoria política, trazendo, com isso, paz aos homens. Receberiam do deus Aura poder, autoridade, honra, riqueza e seriam chefes de Estado para a concretização da profecia milenar. Os três homens foram escolhidos para se tornarem verdadeiros deuses vivos e para se unirem na defesa de um único plano a acontecer por etapas. Um deles introduziria o comunismo aliado à defesa de um Estado centralizado, outro tornaria o mundo enfronhado de uma excepcional raça indo-européia a ser preservada, e o último montaria um sistema nacionalista e populista em diversos países, para a plena concretização da predição do futuro escrita por Perón. Seriam enviados para governarem em três locais estratégicos da Terra, América, Ásia e Europa, e uma grande guerra global anunciaria o sucesso. No entanto, todos os prestígios lhes concedidos teriam um alto preço a ser pago. Por conseguinte, semelhante ao Verbo, varão de origem semita que morreu, há algum tempo, para trazer o amor aos homens, ofereceriam também suas vidas em holocausto, após suas missões serem cumpridas.

O mundo esteve muito próximo de sua total destruição. Os resultados da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918) foram experimentados em todo o Planeta. Fome, pestes e miséria debandaram-se por todas as regiões. Diante dessa situação, a humanidade iniciou um clamor a quem fosse capaz de instaurar a paz no mundo.

Alguns anos passaram, e novas idéias difundiram-se nas mentes de diversas pessoas. A luta por mudança era o sonho de grande parte da população mundial. Destarte, levar um líder forte e centralizador ao poder parecia uma solução imediata. Para isso, na Rússia, em 12 de outubro de 1923, Ióssift Vissariónovitch Djugashvili, também conhecido pelo nome de Josef Stálin, secretário-geral de Partido Comunista, foi apoiado para tornar-se o chefe de Estado. Com isso, a tão desejada paz foi, inicialmente, estabelecida em muitos países.

Alemanha, 21 de março de 1933. Foi proclamada a criação do Terceiro Reich e teve Adolf Hitler como o líder supremo, governaria por mais de dez anos sob o Partido Nazista, propagando a pureza da raça ariana, prometendo , com isso, uma possibilidade de paz. A sua popularidade foi deslumbrante, os cidadãos alemães acumularam uma grande estima por ele. Tudo parecia um presságio de bons tempos.

Hitler, quando criança, freqüentara algumas reuniões Quesnaiana em Berlim. Sempre sentira muita afinidade pelo deus Aura. Algo lhe estava reservado, no entanto ainda não sabia a respeito da grande obra confiada em suas mãos, segundo Perón.

No Brasil, há três anos, ocorrera a Revolução de 30, liderada pelo populista e nacionalista Getúlio Vargas. Grandes mudanças estavam ocorrendo, o povo brasileiro parecia em êxtase. O país cresceu em um intervalo de tempo breve, e um clima de segurança nacional foi criado. As leis trabalhistas criadas por ele desmontaram o sistema de exploração imposto sobre o operariado do Brasil. O país entregou-se aos braços fortes de um homem que seria, futuramente, um ídolo...talvez um mito. Entretanto, alguns anos mais tarde, o planeta assistiria à maior catástrofe de responsabilidade humana: a Segunda Grande Guerra Mundial. Ela trouxe problemas que pareciam, no princípio, irresolúveis. Deixou um saldo devastador: um custo material superior a um bilhão e trezentos milhões de dólares, mais de trinta milhões de feridos, mais de cinqüenta milhões de mortos e outras perdas incalculáveis. A União Soviética perdeu mais de vinte milhões de habitantes; a Polônia, seis milhões; a Alemanha, cinco milhões e meio; e o Japão, um milhão e meio. A aspirada luta pela paz causara uma impressão de malogro. O mundo fez-se um real campo de tensão. Como se já não bastasse, duas potências passaram a pleitear militarmente, preparando-se para uma possível Terceira Guerra Global.

Irã, 13 de novembro de 1943. Hitler, Stálin e Vargas são convocados para a Conferência de Teerã. Lá, discutiram sobre diversos assuntos e propuseram um acordo de paz para o mundo. No terceiro dia de discussão, as três autoridades entreolharam-se em um exato momento, e cada um percebeu o que havia de comum entre eles: possuíam um nome bordado acima do peito, próximo à região do coração. Era o desenho de um sol do qual saia um pombo branco, abaixo dele havia uma coluna de bronze ensangüentada, servindo de sustento para a gravura, simbolizando a seita Quesnay-Leader. O sol representava a centralização do mundo; o pombo, a paz; a coluna, o sustentáculo de tudo, os três, e o sangue, o sacrifício exigido de suas vidas para transformar a humanidade. Terminada a Conferência, Vargas dirige-se a Hitler e Stálin.

- Geht Vomo, Hitler? – perguntou Vargas

- Ich bin gesund. Einfach ein wenig besorgt – respondeu Hitler.

- E you, Stalin? – voltando-se a Stálin.

- Well, only a little thoughtful– respondeu Stálin.

Conversaram por várias horas e combinaram o grande dia: o primeiro a morrer seria Hitler, quando suas idéias estivessem difundidas pelo planeta; o segundo era Stálin, quando a revolução russa fosse instalada e o comunismo impregnado em diversas nações. O terceiro ao holocausto seria Vargas, quando a América Latina o tivesse como um referencial de Estado forte e nacionalista. Esse intento, em breve, mudaria o destino do mundo, estimulando os seus habitantes a lutarem e a se unirem pela concretização da paz. Por fim, os três seriam lembrados, eternamente, pelas futuras gerações, sendo idolatrados como deuses entre as nações.

Vargas sentou-se na cama, desabotoou a camisa branca, segurou firme a arma, orou ao deus Aura, pediu perdão pelos pecados, entregou o Brasil em suas mãos e, sem mais pensar, disparou um tiro de morte...de revolta...de egolatria...de felicidade...de bondade...de fé... de fanatismo...de esperança. Vargas deitou-se na cama pela última vez. Seu sangue púrpuro parecia consumir o tecido da camisa branca e, como se não bastasse, penetrou nas entranhas do colchão como se lutasse para alcançar o solo. O último suspiro de Getúlio foi ouvido por um pombo branco que, coincidentemente, acabara de pousar na única janela da suíte.

- Papai, papai.. Por que me abandonastes? – gritou Jandira – filha caçula de Vargas, que estava no vestíbulo do quarto lendo um papel amarelado antes d’Ela, a indesejada das almas, abancar-se.

Em poucos instantes, Getúlio Dornelles Vargas saíra da vida para entrar na história. Imediatamente, as grandes avenidas do país foram invadidas por gigantescas manifestações que imploravam a sua volta, gritando por paz e pelo fim de tanta maldade. Lutavam por mudança e por outra realidade, pois a Terra teria se tornado um grande campo de violência sem acordos ou ideais de paz. Concomitantemente, os militares não conseguiram assumir o poder, não naquele instante.

Dornelles creu em um mito e tornou-se outro. Acreditou que era possível estabelecer a paz, sendo tudo em vão. Sentiu que realmente fora eleito para acabar com a maldade entre os homens. Não sabia que a profecia e a seita Frank Perón Quesnay eram apenas um mito e que foram criadas por um espanhol desejoso de encontrar um homem que estabelecesse a paz no mundo.

Será a paz também um mito?

PS.: A paz no mundo ainda não chegou. Talvez nunca chegará...No entanto, dizem que um tal de Anti Cristo irá estabelecer a paz no mundo. Apesar de tudo, algo se tornou verdade: os três são, hoje, um mito. Talvez Vargas tenha sido o maior deles, transformando-se em um deus para muitas pessoas, principalmente para os pobres, pois sempre fora o verdadeiro Pai deles.

[...] Em muitos cantos do Brasil, ainda se houve:

“Ave, Getúlio, cheio de coragem!

O povo é convosco

Bendita seja a vossa bravura e a dos vossos colegas

Bendito o fruto da vossa imaginação

Santo Getúlio, sereis um dia Pai dos Brasileiros

Lembrai-vos de nós, pobres brasileiros

Agora e na hora de vosso sacrifício pela nossa causa

Amém!”

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David Cid
Enviado por David Cid em 11/08/2007
Reeditado em 11/08/2007
Código do texto: T602753