AOS ANOS QUE NÃO VOLTAM MAIS

Era uma casa simples, feita de madeira escura, com uma varanda que tomava toda sua frente, ao lado da porta, uma cadeira de balanço surrada pelo tempo. A casa parecia bem acolhedora, fincada entre algumas árvores que pendiam sua folhas sobre o telhado, alguém assava alguma coisa na lareira, era evidente, uma leve fumaça era expelida, parecia dançar ao som do vinil que parecia fritar no toca-discos. Ele ouvia “Parabéns pra você”.

Thomas – era o nome do proprietário da casa – tinha cabelos ralos e embranquecidos, mesmo sentado podia divisar a corcunda que avolumava-se, seus olhos de um negro intenso, auxiliados pôr um óculos de aço negro e aparentemente pesado. Ele observava com uma saudosa angustia as fotos que espalhara pela mesa. Em uma das fotos tinha um rapaz com uma criança no colo, a felicidade estava estampada em ambos os olhos. Ele tirou os óculos, e após um suspiro profundo, levantou-se com certa dificuldade e caminhou da mesma forma. Abriu lentamente a geladeira azul desbotada, pegando um pedaço de bolo. Colocou sobre a mesa e depois colocou a música que tocava desde o começo.

Thomas sentou-se novamente, agora de frente para o bolo. Acendeu a vela com sua mão tremula, olhou mais uma vez para as fotos, começou a organizá-las na mesa para logo em seguida começar a bater palmas. Agora as lágrimas escorriam de suas faces como cachoeiras, finalmente a música acabou e Thomas apagou a vela, mas não tocou no bolo, tirou um lenço do bolso e limpou as lágrimas. Guardou o bolo na geladeira, desligou a radiola e encaminhou-se para varanda.

O velho apoiou-se nos batentes da porta por um instante para apreciar seu quintal. Muitas folhas secas estavam caídas ao solo, a mercê dos ventos que sopravam levemente. Com certo cansaço ele começou a caminhar em sentido a cadeira. Sentou-se cuidadosamente e com os braços repousados sobre as pernas tremulizantes, apreciou mais uma vez o seu redor, para depois de uma tosse seca e profunda, tirar do bolso da camisa surrada que vestia uma foto, já amarelada pelo tempo.

- Quantas saudades tenho de ti Esmeralda – dizia Thomas com um pesar saudoso, continuou – Lembro-me de tudo. Infelizmente, quem dera poder esquecer, às vezes as lembranças só existem para nos causar dor, mas... o que adianta lembrar do passado sendo que vivemos o presente? Não entendo meu amor... não entendo. O mesmo destino que nos uni, também nos separa. O mesmo amor que nos faz dependente, também nos força após anos, viver sem o calor do sentimento no peito, e o inverno se instala sem o calor de seus lábios, sem o calor do seu abraço e sem a paz que tanto trazia para mim. O que restou? Após tantos anos de dedicação? – o velho mordeu os lábios com certa raiva – Nada, a não ser este sentimento de vazio... que é acompanhado pelo abandono... – Thomas por alguns instantes ficou olhando para os lados. Contemplava as folhas que eram arrastadas pela brisa que a cada momento se tornava mais intensa.

A noite se aproximava lentamente, trazendo consigo o frio. Thomas beijou a foto com extremo carinho para logo em seguida guardá-la no bolso. Levantou-se cuidadosamente apoiando na cadeira, por alguns instantes, com as mãos no bolso apreciou mais uma vez seu jardim de flores esquecidas e entrou.

A lareira continuava acesa, não tão intensa como horas atrás, mas ainda fazia as sombras dançarem nas paredes. Ele se aproximou da lareira, agachou e antes de atirar mais lenha, uma lembrança veio em sua mente:

Era um dia de festa, cinco crianças corriam alegremente em volta da árvore de natal. Thomas, aparentava uns 40 anos, era um homem forte, de cabelos negros e olhos da mesma cor, suas sombrancelhas grossas, o modo de olhar, o tornava, aparentemente um homem rude, aparentemente, pois olhava com extremo carinho a algazarra dos filhos. Esmeralda também estava lá, como sempre, na cozinha, envolvida com seus afazeres domésticos, seus cabelos eram harmoniosamente enrolados, não crespos, seus olhos continham um brilho que só uma mãe poderia Ter.

O grande relógio da sala, marcava 23:50, breve o natal chegaria por completo. Todas as sete pessoas estavam sentada à mesa, o silêncio reinava, estavam em oração, agradecendo pela refeição e por estarem vivos compartilhando tal momento. Thiago, o filho mais velho do casal – e o mais arteiro – importunava a irmã com sua perna por debaixo da mesa, esta com receio do pai perceber, permanecia quieta, apenas olhava o irmão com desaprovação. O pai ao término de suas palavras fez o sinal da cruz que logo foi imitado pelos demais. Começaram a comer, mas foram interrompidos pelo relógio que bateu doze vezes, era o natal chegando em todos os corações.

¬- Lembranças – pensou Thomas jogando a lenha na lareira com certa raiva – Cadê vocês agora quando preciso... – Ele sentou-se na poltrona, de frente para a lareira – Aposto que estão em suas casas. Sentados, assistindo algum jornal despreocupamente, enquanto eu, estou aqui, sozinho, aberto aos pensamentos que gostaria de esquecer, mas tudo bem, vocês são pais agora, ainda são jovens, um dia saberão o que sinto... – seus olhos encheram-se de lágrimas e com certo arrependimento, continuou – não quero que aconteça a mesma coisa, mas quero que apenas tenham medo... assim saberão. Infelizmente é assim que aprendemos... cometemos os erros, estes, muitas vezes passam desapercebidos, nem nos importamos, até que o erro se volta contra nós... Mas o que mais doí é o fato de estarem sempre perto quando Esmeralda estava viva... era apenas ela que faziam vocês virem até a mim? Dizem que mãe é uma só... e que pai temos um monte por aí... Realmente, rezo para uma série de deuses... Às vezes penso que disperdicei minha vida por nada... Quantos anos dela dediquei a terra, para trazer alimento para suas bocas, para terem um estudo decente, tornando-se doutores e professoras, ou até mesmo profissionais da area que escolhessem, tudo para não trabalharem de sol à sol sem nenhuma segurança. Consegui realizar meu papel... até melhor do que imaginei pois hoje, não os vejo ao meu lado, quem sabe se fossem homens do campo saberiam o valor que a família tem para todos. Mas minha vida passou diante de meus olhos e hoje, o que restou foram apenas recordações, tudo bem, tenho muitas em minha mente, não somente ruins, mas também boas... mas, como todo ser humano normal, deixo de pensar nas boas para ocupar-me com as más, afinal, são elas que nos fazem pensar...

Thomas após aquele surto de revolta, apagou a lareira com um balde d’agua e dirigiu-se para sua cama, ajoelhou-se e com as mãos unidas começou a rezar, para logo em seguida, com certa dificuldade, estirar seu corpo velho e cansado na cama. Olhava para o teto com os olhos vazios, ainda brilhantes pelas lágrimas, ele virou-se lentamente e para sua surpresa, Esmeralda estava sentada na poltrona próximo da cama.

- Esmeralda – murmurou o velho abismado com a visão. Ela apenas sorriu docemente – Não pode ser – disse o velho com a voz tremula, continuou – Veio para buscar-me? Finalmente, sempre estive pronto para este momento. – Não Thomas – respondeu a mulher quebrando o silêncio – Ainda não é sua hora, vim apenas para acalmar seu interior, e para dizer que não estas sozinho, sempre estou por perto, mas seus pensamentos impedem de divisar a sensação... esqueça os outros, criamos os filhos não para nós mas sim para o mundo – concluiu a mulher com uma voz calma e sublime – Mas, Esmeralda – disse Thomas sentando-se na cama – Eles não vem ver como estou... parece que não se importam comigo... – ele fez uma pausa e logo complementou – depois de tudo que fiz por eles... acho que era o minímo que poderiam fazer...

Esmeralda caminhou lentamente para a cama. Thomas tentou tocá-la, acabou se esquivando. Thomas a olhou com certa surpresa – Não posso tocá-la? – murmurou ele. Com um sorriso nos lábios ela respondeu – Não pode tocar meu querido amor, não faço mais parte deste plano... – Thomas tomado por uma revolta subita, levantou-se e começou a falar alto – Então porque reapareceu? – Esmeralda arregalou os olhos, perplexa com o surto de raiva do marido, ele continuou – Você deixa seu santo sepulcro, para dizer sobre o que devo fazer? Não sabe como são essas coisas... mesmo morta eles visistam sua sepultura, depositam flores, fazem orações. Deverei morrer para Ter um carinho assim?! É isso que tenho que fazer... – Os dois se entreolharam, nos olhos do homem uma raiva dominante se transformava em lágrimas, enquanto nos olhos da mulher um vazio começava a residir – Pensei que tivesse vindo me buscar – continuou Thomas com a voz dominada por imensa dor – Às vezes, quando a noite chega e, sozinho neste quarto, penso em tudo que passou. Eu queria estar perto de você naquele dia, pelo menos teríamos partido juntos, não ficaria ninguém para lamentar-se... – Tem os filhos Thomas – sussurrou a mulher – Eles me esqueceram minha querida – respondeu o velho sentando-se na cama – Eles não esqueceram você Thomas, depois que parti, você acabou perdendo a noção de tudo, trancou-se em seu mundo, deixou de caminhar pela vida, prendeu-se em recordações, eu imagino como deve ser difícil para você, mas as coisas não podem ser tão ruins quando aprendemos a observar o sentido delas... – E qual é o sentido para tudo isso Esmeralda? – perguntou o homem com certa impaciência – O de continuar sem saber onde chegará – respondeu a mulher serenamente, continuou – A vida só termina quando deixamos de acreditar no próximo amanhecer... e por que esperar as pessoas virem quando pode ir até elas? Lutar pelas coisas que deseja não é se rebaixar, é demonstrar o que deseja... você lutou tanto para Ter tudo que tens hoje... – Thomas gargalhou sinicamente e disse desdenhosamente – Tenho uma vida maravilhosa... – Seus filhos estão criados e não observou isso... Reclama das coisas que deixou de viver por causa deles. E será que não impedi também?! – Esmeralda tinha um sentimento amargo nos olhos, o tom de suas palavras rasgaram a mascara de ira que até então, escondia o rosto do marido, ela continuou – Responda-me Thomas. Acha que tudo que fez não teve nenhum significado? Desperdiçou os anos de sua vida. É tão difícil olhar para os lados e perceber o quanto foi, e é importante para a vida das pessoas. Como nossas crianças encontrariam seus caminhos sem você para guiar? Se eles são o que são hoje é porque tiveram um grande exemplo em suas pequenas vidas, tente observar isso e não arrepender-se das coisas que deixou para seguir outro caminho, a vida é feita de opções meu velho, seguimos as que convém, as quais acreditamos, que um dia nos levarão há algum lugar...

Thomas se levantou lentamente, ficou parado diante da janela. Ele observou que o vento aumentara desde àquela tarde, anunciava uma tempestade, as folhas das árvores balançavam fortemente, e assoviam com tal ato. As folhas que estavam caídas na calçada, já haviam sido varridas pelo vento forte – Eu não sei o que fazer Esmeralda – disse ele virando-se para a mulher, mas para sua surpresa, o espectro da mulher não estava em sua presença – Esmeralda, Esmeralda – chamou ele, olhando para os lados, procurando pela mulher, mas percebendo que realmente tinha partido, voltou ao leito, entregando-se ao sono.

Era uma manhã fria e nublada. Uma garoa fina caía suavemente nos campos cobertos por uma relva aparada. Um grupo de pessoas avançavam lentamente, pelo caminho de pedras redondas, seis pessoas se adiantavam carregando um enorme caixão negro, lágrimas desciam dos olhos dos seis rapazes. O silêncio poderia ser absoluto se não fosse pelos sussurros e murmurios da multidão. O grupo andou por mais alguns minutos, até que, por fim, depositaram o caixão em um buraco aberto no chão. O padre estava vestido completamente de branco, após o sinal da cruz começou a dizer algumas passagens da biblía. Thomas observava tudo com muito atenção de trás de uma árvore, ele não sabia o que estava acontecendo, sua mente parecia mais leve que o normal, e percebeu que caminhava facilmente – Não pode ser... – apenas pensou ele. – Claro que pode – Thomas assustou-se com a voz que surgiu de repente, olhou para traz e percebeu que Esmeralda estava de braços abertos. Ele caminhou lentamente até ela e entregou-se em seus braços em prantos. Ele olhou para a multidão que começava a jogar terra sobre o caixão, olhou para a Esmeralda, e como soubesse o que ele diria, adiantou-se, com um sorriso angelical nos lábios – Sim meu querido... Você deixou-os, agora eles estão por si próprios no mundo. Chegou a hora de descansarmos... – Mas... como assim tão rápido, nada senti... para onde vamos? O que existe além da nossa compreensão... – Thomas estava agitado com toda aquela sensação, a maioria de seus problemas com a saúde haviam desaparecido, e a dor do esquecimento também, mas agora, o vazio estacionava em seu interior. Num sobressalto ele correu em direção a multidão que se distanciava de seu novo descanso, passou por alguns deles e ajoelhou-se perante sua própria sepultura, fincou os dedos na terra e se pôs a chorar, de repente uma mão repousou em seu ombro e uma voz familiar ressoou – A única certeza da existência é a morte meu querido. Sinta-se feliz, pois todas as opções que fez deram certo, foi um grande pai, mas errou em alguns pontos... – E qual ponto errei? Diga-me então – perguntou Thomas ainda de cabeça baixa – Fez tudo que podia, e, acabou esperando algo em troca, e isso é péssimo, pois quando não ganhamos o que esperamos, um sentimento amargo acaba dominando toda nossa imensidão e acabamos nos sentenciando em uma masmorra de dor e lamentações... São filhos, mas os filhos são seres humanos como nós um dia fomos, e para que questionar suas atitudes, sendo que um dia, também tivemos falta de razão perante os nossos próprios pais?! Erga-se – disse ela ajudando-o a levantar – Agora é o momento de silenciar nossa alma e voltar para o lugar que viemos, observando nossos erros e nossos acertos... Vamos meu amor, a paz finalmente chegou.

adriano villa
Enviado por adriano villa em 14/08/2007
Código do texto: T606226
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