asa de amor

- Só pra você parar de me torrar a paciência. Você vai ver!

Estela sorria convulsivamente. Achava engraçado o irmão tão atrapalhado com o frango estirado na pia. Depenado já estava, mas cortar e temperar seria trabalho árduo para suas mãos e para o paladar da família.

- Por quê mamãe não deixou isso pronto? Tales se perguntava, segurando o frango.

Estela sorria daquele jeito só dela: apertava os olhinhos miúdos, como se quisessem escapar e mostrava os dentinhos pequeninos, a boca esperando ainda mais um, para fechar a porteira.

Estranhamente, neste dia ninguém foi almoçar. Mas o frango tinha um aspecto interessante, estava meio coradinho. Estela olhava o irmão pelo canto do olho, com um sorriso bobo. Mesa posta, talheres em mãos.

- Faço questão de fazer seu prato. E você ainda vai repetir. Quero só ver!

Estela, séria, esperava Tales entregar seu prato já feito. Tete-a-tete com o prato, ela pegou a colher e foi com vontade para a asa do frango, que saltou fora do prato e manchou de gordura a toalha branca, novinha. Olharam-se. Ela com vontade de sorrir, ele com vontade de sorrir mais ainda. Não contiveram-se. Estela subiu na cadeira, agarrou o pescoço do irmão e os dois caíram no chão aos risos.

E cresceram assim. Nos passeios de carro Estela adorava sentir o vento. No banco de trás, os dois ficavam juntinhos e Tales observava o trânsito como se também estivesse dirigindo. Aquelas lembranças tinham um perfume claro, uma cor límpida, uma textura doce. Era bom lembrar.

Num dos passeios, Tales adormeceu. Já era um rapaz e não tinha mais paciência em se manter acordado durante a viagem, a prestar atenção na irmã. Estela também já era quase uma mocinha. Pela estrada várias outras coisas passavam, seus pensamentos percorriam outros campos e estradas. E os bichos eram apenas bichos, as árvores apenas árvores e o vento assanhava seu cabelo.

Estela sentiu vontade de livrar a mão. E repetiu a ação esquecida. Entregou-se à sua vontade libertária e imaginou uma série de coisas que lhe fariam feliz. Quis ter asas.

Depois daquela viagem a família não mais viajou. Tales queria outros horizontes. Sozinho. Saiu brigado com o pai, que não entendia nada e exigia explicações. Estela ouvia tudo calada. A mãe chorando na sala, o pai cuspindo mágoas e Tales abrindo o portão e ganhando a rua estreita, vazia e farta. Ela queria ir junto. Não chorou. Entendeu o irmão ir embora sem deixar pelo menos um bilhete para ela.

Depois de uma semana sem dar notícias, um telefonema apressado confessa onde está e a saudade que sente surgir em cada melodia, cor e forma do mundo. Estela consegue convencer o pai a ir buscar o irmão. Os três. Ela vai feliz e no banco de trás. Sozinha, volta a ser a menininha a brincar com o vento. E, como sempre, se entrega aos galopes da imaginação e traça planos de fazer feliz o irmão, aproveitar cada gota de sentimento, de sorriso que os dois tiverem juntos.

De repente o ar se tinge vermelho e um grito rasga a imensidão da estrada. Estela consegue apanhar uma pena no ar e tem sua asa levada pelo ônibus que trazia seu irmão de volta.