Vingança e perdão - Parte 3 - Final

PARTE 3 – FINAL

Um dia, Severino foi chamado para uma reunião com seu chefe e recebeu dele a missão de inviabilizar os trabalhos caritativos de um centro de Umbanda que ficava numa cidade da região sudeste do Brasil. Ele deveria, principalmente, acabar com a figura da dirigente espiritual do lugar. Foi um trabalho solicitado ao seu chefe por alguém influente ente os encarnados e muito bem protegido por outros sombrios. A paga seria grande e ricamente distribuída entre eles todos. Severino, porém, foi advertido de que sua tarefa não seria fácil, pois o lugar era protegido por guardiões que trabalhavam para a Luz e não titubeariam em prendê-lo e a seus subordinados. Teriam cerca de vinte e um dias para executar o que lhes fora ordenado.

O primeiro passo foi fazer um reconhecimento do território inimigo para depois planejar as ações que culminariam na destruição da dirigente e do terreiro. Mandou que três de seus subordinados fossem fazer essa verificação em dias alternados. Constataram que quando não havia sessões de trabalho no terreiro a vigilância era reduzida, mas constante. Quando havia as atividades normais, a segurança era triplicada com diversos guardiões da luz muito bem armados, tanto do lado externo como interno do terreiro. Chegaram à conclusão de que não teriam como fazer um ataque direto porque seriam facilmente subjugados.

Severino decidiu então que a alternativa mais viável seria obsediar a dirigente a fim de que ela começasse a fraquejar em seu trabalho e assim sua missão se tornaria mais fácil. Para tanto, resolveu pedir um pouco mais de tempo ao chefe. Este, a contragosto, consentiu mais quinze dias e nada mais. O próprio Severino encarregou-se dessa tarefa.

Com a ajuda de seus asseclas, descobriu onde ela morava e qual a rotina que seguia. Quando Severino descobriu quem era a pessoa que deveria destruir ficou bastante feliz. Havia finalmente encontrado Amélia. Começou a perturbá-la atingindo sua saúde com algumas dores de cabeça sem motivo aparente, de-pois quase a fez perder seu emprego provocando alguns atrasos e erros tolos. Amélia, agora com o nome de Marília, quando não estava exercendo suas funções de dirigente espiritual, trabalhava como contadora num escritório no centro da cidade. Tudo isso somado, realmente fez com que ela se debilitasse física e mesmo espiritualmente.

Todavia, sua conduta ética e moral era praticamente inabalável, o que consistia num dificultador enorme para Severino, que via seu prazo extinguir-se. Ainda assim resolveu ir para o ataque final. Ele havia planejado finalizar sua missão num dia de trabalhos no terreiro. Aproveitaria um dos momentos em que ela estaria incorporada e tomaria posse de seus pensamentos e de seu corpo.

Tudo parecia correr conforme o planejado, mas o que ele não percebera é que cada passo, cada ação e cada pensamento seu estava sendo vigiado. No dia escolhido, Severino adentrou na esfera espiritual do terreiro e aguardou os trabalhos começarem. Muitos dos espíritos ao seu lado buscavam ajuda para tratar-se e evoluir, livrando-se da negatividade e dos sentimentos de culpa, raiva, ódio que os perseguia. Severino, no entanto, estava firme em seu propósito.

Após pouco mais de uma hora de os trabalhos terem começado e os atendimentos aos consulentes terem início, Severino resolveu pôr em prática o seu plano. Tentou aproximar-se de Marília, mas foi pronta-mente impedido pelo guardião-chefe da casa. A entidade apenas impôs-lhe a mão e o impediu de continuar. Severino tentou lutar, mas, não sabia o porquê, estava enfraquecido. A força mental daquela entidade era tremenda. Mal sabia ele que os cânticos entoados e a fumaça da defumação acabaram por minar as negatividades existentes em seu corpo espiritual. A conversa a seguir ocorreu em nível mental.

– Por que queres perturbar a ordem e a paz aqui dentro, criatura trevosa? Não vês que este é um lugar de amparo a quem necessita de ajuda? – perguntou o guardião a Severino.

– Estou aqui a serviço. Tenho uma missão a cumprir e desejo levá-la a cabo. Não adianta tentar me impedir. Nunca fui de deixar trabalho pela metade. – redarguiu, já inseguro, Severino.

– E qual seria esta tua missão? Posso saber? – a pergunta foi feita pelo guardião como se ele não soubesse já a resposta que vira no mental de Severino.

– Fui incumbido de destruir a dirigente e a reputação desta casa. Não será você que irá me impedir. É melhor me soltar, caso contrário, darei um comando a meus subordinados e eles invadirão este local.

O guardião não pôde conter a gargalhada e perguntou a Severino:

– Que subordinados? Olhe em seu redor!

Severino olhou e percebeu que todos os seus subordinados haviam sido capturados pelos outros guardiões. Estava só agora. O guardião continuou:

– Os mal intencionados aqui não entram para atrapalhar e nem para zombar. A minha função e de meus falangeiros é proteger o local de seres como você. Agora a decisão é sua: ou se entrega de livre e espontânea vontade para o encaminharmos ao local de tratamento adequado ou o levaremos à força.

– Eu me entregar? Jamais! Se não tenho meus subordinados, vou pedir ajuda a meu chefe. Ele si, virá me ajudar e destruir todos vocês.

– Quem? Aquela serpente traiçoeira e covarde? – o guardião perguntou e riu escancaradamente. – Quer ver o que houve com seu chefe?

O guardião apenas tocou com as pontas dos dedos na testa de Severino, que pôde ver seu chefe sendo derrotado e preso. Estava sendo levado para uma prisão especial no submundo das trevas. Nesse mo-mento, Severino compreendeu que a Luz tem trabalhadores mesmo onde não se imagina que pudesse haver.

– Estamos seus passos e os de seu grupo há tempos. Nada passa despercebido por quem trabalha para a Luz e para o Bem. Portanto, este seu ataque já era esperado. Por isso nos precavemos. Além do mais, a conduta de nossa dirigente e as ações que pratica em nome do próximo garantiram a ela a constante proteção e amparo da Espiritualidade Maior.

Severino viu-se completamente abandonado, sem ter como lutar com aquele ser que era muito mais poderoso do que ele. Não teve alternativa a não ser render-se. Antes, porém, perguntou ao guardião o que aconteceria dali por diante.

– Nós o levaremos a um “hospital” astral, onde você receberá os cuidados necessários para livrar-se desta negatividade toda que lhe consumiu. Como você está indo por sua própria vontade, será um processo pouco doloroso. Depois disso, você poderá decidir seu destino: se prefere ficar conosco e trabalhar em prol da Luz ou, caso venha a merecer, preparar-se para o processo reencarnatório. Antes de tudo isso, porém, quero mostrar-lhe que sabemos quem fez a encomenda para o seu chefe. Olhe para a parte do terreiro em que ficam os assistentes encarnados. Repare naquele homem de camisa amarela bem no meio das fileiras.

Severino olhou na direção indicada e viu o tal sujeito, que de repente começou a tremer e a estrebuchar. Depois de um tempo, viu que uma espécie de névoa negra saía de dentro do corpo do homem. O guardião esclareceu a ele que aquela névoa era alguém que havia sido desafeto da dirigente numa vida passa-da e que agora buscara vingança, pois se julgara prejudicado. Só que os sentimentos de vingança são extremamente danosos a quem os manifesta e as consequências acabam voltando contra quem emanou.

– Viu, Severino, como não vale a pena o que você ainda está sentindo. Você mesmo está se auto-destruindo. Por isso que sempre recomendamos o perdão a quem nos fez o mal, por mais doloroso que seja. Mais ainda, tudo na vida, seja no plano dos homens ou no plano espiritual, é regido pela Lei do Retorno. Às vezes, o que sofremos é em virtude de algo que provocamos. Eu sei também que seu sentimento de ódio e vingança não era direcionado apenas à dirigente desta casa, mas sobre isso você irá conversar com ela e com o guardião pessoal dela. – dizendo isso, apontou na direção onde estava o tal guardião pessoal de Marília.

Estupefato com tudo o que vira e ouvira, Severino olhou mais uma vez na direção indicada. Definitivamente não conseguiu conter uma explosão de surpresa raivosa. O guardião pessoal de Marília era ninguém menos que o negro Batista. Já seria humilhação demais. Conversar justamente com quem o fizera cair. Não sabia se iria suportar mais esta.

O guardião-chefe da casa, notando os pensamentos de Severino advertiu-o mais uma vez sobre a importância de conter a raiva e começar a prática do perdão ao próximo e do auto-perdão. Severino ainda quis contar-lhe a sua história, mas foi bruscamente interrompido porque o guardião-chefe lhe dissera já conhecer o que ele pretendia contar-lhe e que tudo deveria ser resolvido na conversa com Marília e seu guardião. Como a dirigente estava em transe mediúnico devido ao processo de incorporação, o diálogo aconteceria mentalmente.

Ao aproximar-se de onde estavam Amélia e o negro Batista (Marília e seu guardião), Severino foi saudado por este último:

– Bem vindo, Severino a esta casa de amparo aos que procuram e necessitam de ajuda. Em que lhe podemos ser úteis?

– Maldito! – Severino não conseguiu conter sua ira. – Como puderam fazer aquilo comigo? Como puderam me trair por tanto tempo e em minha própria casa?

O guardião, mantendo a serenidade, respondeu:

– Calma, Severino! Controle-se! Será que fomos apenas nós que erramos? Será que unir-se a alguém apenas por interesse, sem amor de ambos os lados não é também um erro? Será que cometer o duplo homicídio, sem chance de defesa, não é também um crime gravíssimo? Será que você não foi vítima da Lei do Retorno? Aliás, vítima não, pois a perfeição da Lei de nosso Criador não faz vítimas, apenas dá a cada um aquilo que merece.

Severino estava furioso demais e partiu para cima do guardião pessoal de Marília, porém foi prontamente interrompido. Ainda havia muito ódio em seu coração e não seria fácil fazê-lo mudar de ideia. Ao ver a situação, Amélia (Marília) aproximou-se e começou a falar:

– Olá, Severino! Há quanto tempo!? Vejo que está ainda muito agitado...

– Você é outra maldita. Não poderia ter feito aquilo comigo. Era minha esposa e eu a amava. Maldita traidora!

– Alguma vez você perguntou se eu o amava? Um relacionamento só sobrevive se o sentimento de amor é compartilhado. O amor é uma estrada de duas vias.

– Ele está por demais alterado. – interrompeu o guardião (negro Batista) – Será preciso trazer-lhe à tona as memórias anteriores àquela existência, mesmo que a contragosto dele. Talvez, só assim, ele poderá compreender, perdoar-se e perdoar-nos. Guardião-chefe, por favor, faça o procedimento.

O Guardião-chefe circundou a cabeça de Severino com as mãos e deu início ao processo de regressão. Essas memórias de vidas passadas ficam “arquivadas” no inconsciente de todos os seres quando re-encarnam, uma vez que podem trazer sérias interferências para a vida atual da pessoa. No entanto, em momentos especiais após o desencarne e excepcionalmente especial quando a pessoa ainda é encarnada, elas podem ser acessadas.

Foi permitido a Severino ver que na vida anterior à que se casara com Amélia, ele fora um padre com bastante influência na vila em que morava Amélia, então Maria, junto com seu marido, o negro Batista, então Bartolomeu. Severino, o então padre Antônio, não tinha muita vocação para a batina, costumava envolver-se na corrupta política da época e também seduzir as mulheres casadas e jovens. Maria foi uma das ví-timas do padre Antônio e veio a engravidar. O problema é que o marido descobriu o caso e acabou assassi-nando a esposa e o bebê que carregava dentro da barriga. O padre Antônio teve tempo para fugir, morrendo anos depois vítima de outro marido traído.

Na existência em que foram mortos por Severino, Amélia e negro Batista teriam a possibilidade de reconstruir a vida juntos, mas a espiritualidade colocou em seus caminhos a figura de Severino. Este, por sua vez, teria a chance de se redimir dos erros anteriores através da expiação e da prática do perdão. A traição sofrida foi a prova derradeira na qual ele não passou.

Ao ver as atrocidades cometidas por ele, Severino prostrou-se de joelhos e caiu em lágrimas. Começava ali a sua redenção. Os guardiões e Marília deixaram que ele chorasse até não poder mais porque era uma forma de lavar-lhe e levar embora as mágoas que ainda lhe restavam. Quando terminou de chorar, ainda de joelhos, Severino pediu perdão a Amélia e ao negro Batista. Este ato sincero fez com que os últimos resquícios de energias negativas que o circundavam fossem expulsas de seu campo energético e sua aura voltou a ficar iluminada.

– Pronto, Severino, – você fez muito bem. Está perdoado por mim, pelo meu guardião e por to-dos que um dia você feriu de alguma forma. Agora resta você perdoar a si mesmo. Só que isso talvez seja a parte mais difícil e mais demorada. Por ora você irá acompanhar a nossa equipe de guardiões que o levará, e aos outros, para os locais adequados de tratamento conforme as necessidades de cada um. Lá você terá a oportunidade de curar-se por completo, de praticar o autoconhecimento e o autoperdão. Vá em paz!

– Tudo bem! Eu agradeço por tudo o que fizeram, mas e quanto a vocês? Por que decidiram agir desta forma e não se vingar de mim?

– Quando desencarnamos da última vez, ficamos muito revoltados a princípio, mas nossos corações não estavam carregados de tanto ódio e desejo de vingança. Soubemos reconhecer nossos erros e trabalhamos para buscar a nossa evolução. Depois de muitas décadas de dedicação e aprendizado tomamos nossas decisões. Eu resolvi permanecer no plano espiritual por haver me identificado com o trabalho dos guardiões. – respondeu primeiro o negro Batista.

– Já eu senti que poderia contribuir mais ainda para a minha evolução e para ajudar ao próximo se reencarnasse. Escolhi vir como dirigente espiritual de Umbanda (há quem me chame de mãe de santo) porque durante todo o tempo em que estive na espiritualidade, pude acompanhar o surgimento desta religião no astral e também no plano físico. Foi uma identificação imediata com os princípios de amor e caridade ao próximo sem esquecer-se de si mesmo.

– Entendi! Agora preciso ir porque tenho muito que aprender e evoluir. Mais uma vez eu agradeço de coração por tudo o que fizeram. Espero um dia poder ser capaz de retribuir toda essa ajuda. – Severino disse isso e foi-se embora junto com os guardiões.

Amélia e negro Batista, ou melhor, Marília e seu guardião ficaram a observá-lo e a torcer para que realmente ele conseguisse se perdoar e trabalhar para a própria evolução. No terreiro os trabalhos já estavam chegando ao fim. Despediram-se, Marília desincorporou e fez o encerramento das atividades da noite. Em sua face via-se a certeza de dever cumprido e em seu íntimo ela teve a certeza de que estava próxima a viagem de volta para casa. Enquanto isso, lá na esfera espiritual, seu guardião a observava e também sorriu, pois sabia que em breve estariam juntos na espiritualidade e depois na matéria novamente para que enfim pudessem viver o seu amor há muito tempo traçado por mãos divinas.

Cícero Carlos Lopes - 27 e 28/07/2017)

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 28/07/2017
Código do texto: T6067382
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