A pele branca (maio de 2017)

Eu já não me vejo com os afãs, ou com os desejos, de um jovem. Mas reconheço que o que me falta é isso para ir em frente. Faltam-me quimeras perdidas na minha própria falibilidade humana. Sei, no entanto, que o que busco é o contrário do que se admite valorizar tanto: o clichê social. No Brasil o que vale é o clichê.

Sentado nessa saleta de um escritório de cobranças, eu gerente valendo a sala que ocupo, filosofo isso para a janela do edifício com a esperança de que minhas palavras murmuradas voem de mim e ganhem a rua, lá embaixo; lugar a que pertencem verdadeiramente minhas filosofias de escritório.

Tenho quarenta e poucos anos vividos, e isso talvez me dê a permissão que preciso para emitir minhas próprias opiniões, minhas preciosas filosofias, que emanam em abundância de minhas experiências fracassadas de vida. São minha possibilidade de buscar compreender o que se passa com o mundo a meu redor.

Conheci na empresa uma italianinha, do bairro do Brás em São Paulo, que por motivos de trabalho resolveu abandonar sua cidade e aderir qual aranha em sua teia às divisórias envidraçadas do escritório em que trabalho. Sou seu superior, aquele que está sempre pronto a dizer balelas tão difíceis para mim de serem ditas.

Eu assim me apaixonei por uma paulistinha de sotaque forte que à luz das primeiras horas de trabalho da manhã brilha tão alva quanto a lua cheia. Quisera eu poder dizer-lhe, “você tem a verdadeira cor da lascívia”. Mas não me atreveria a tanto porque tenho que zelar por um casamento – e por um trabalho limpo de carreira mais ou menos certa.

“Ó Gabriela, aquela que não tem nem de longe cor de cravo e canela, vinde a mim! Ó flor de tez branca como aquela que brilha com a garoa de tua terra sob o luar da lua cheia”! Quisera eu poder dizer-lhe isso. Sempre que passa por mim, dissimulo o olhar e forço-a acreditar que não gosto dela. Faço-me de mau toda vez que os olhares se tocam.

E então não tenho escolha: tenho que voltar ao meu lugar, retornar à formulação de ideias que me ajudam a compreender o que se passa nesse meu mundo confuso e, por vezes, imoral. Imagino-me cavalgando Gabriela, como um deus grego decido do Olimpo para fazer amor com uma mortal, disfarçado de búfalo.

Mas a realidade não demora a bater à minha porta: tenho três lindos filhos e uma esposa que não me ama, mas que é gentil. Unido a essa realidade, a esse casamento, usufruo de um status quo que me permite gozar de uma intocabilidade no trato com meus clientes e superiores no trabalho. E também é útil nas festas de fim de ano, torna as coisas fáceis.

Todo o meu desejo recai sobre a italianinha, na esperança (falsa) de que me liberte de meu mundo de descontentamento. É falsa essa esperança, porque de fato morro de medo da menor menção de separação de minha mulher. Divisão de bens, de amor dos filhos, necessidade de trabalhar mais para sustentar o padrão de vida: não desejo mudanças.

Retorno ao que mais desprezo na minha cultura brasileira, que é o clichê. Pode soar incoerente isso que digo, uma vez que vivo uma vida apoiada em clichês de normalidade comportamental em todo trato social. Não gosto do clichê, mas sou aquele que tem três filhos e uma mulher bonita que, embora não me ame, ninguém sabe disso.

A força que retiro desse clichê matrimonial que vivo vai para minhas divagações acerca de outros clichês sociais. Gabriela, a bela escriturária submissa ao gerente de contas da empresa, apaixona-se pelo superior casado. Ele, mentindo para ela, promete abandonar a esposa, e ela acredita que um dia será feliz. Esse é o clichê do adúltero.

Não, não. Sei da minha doença, é como disse antes, ela é formada pela perda dos afãs da juventude. Quando mais jovem, vivi o afã de que o amor me salvaria. Amava minha esposa e fiz três filhos como forma de acreditar no futuro de nós dois. Ainda não percebia que o que construía eram clichês comportamentais sociais. Não percebia ainda.

O brasileiro vive de clichês. Se me permitisse trocar meu casamento pelo relacionamento com a italiana, minha mulher pelo relacionamento com uma rosa branca cor de lua cheia, estaria trocando um clichê pelo outro. Acho que meu problema é não me permitir reviver a falibilidade humana das escolhas da juventude. Fujo desse clichê.

Desejar conquistar Gabriela para vivermos juntos um clichê, estava fora de cogitação. Mas, e se dos meus anos de juventude viesse a força para pedir-lhe inocentemente um dia que me segurasse a mão para me proteger da escuridão? É tudo que queria daquela mulher de pele branca: minutos de um inocente enlaçar de mãos na escuridão.

Talvez você leitor tenha a curiosidade de me perguntar o que fiz de meu relacionamento com minha esposa, e o que fiz do amor pela italianinha Gabriela. Havia muito o que pudesse fazer, mas pouco que não pudesse solidificar-se em um pesado clichê. Eu não buscava o malogro, mas tudo o que o clichê tem a oferecer no final é um puta malogro!

Afinal, não fazer nada não pareceria a alguém a melhor coisa a ser feita para manter-se protegido do infortúnio? Livre da infelicidade certa? Se o leitor apostou em ser essa a melhor escolha dentro das opções que teria, caso fosse eu, acho que apostou certo. Não deixei de seguir Gabriela por suas costas, e tampouco abandonei minha família.

Nos afãs da juventude residem, sem dúvida, a sabedoria. Entretanto, permitir-me ser guiado pelos desejos de vinte anos atrás não é o que eu desejo. No final, eu reconheço em mim um desejo não contrário à sabedoria juvenil, que reside na preservação de meu relacionamento desgastado. Não arrisco aposta perigosa no clichê de ser feliz de novo.

A paciência, que aprendi a cultivar diante dos fatos do mundo, me levaram a colher frutos inesperados: a branca Gabriela anunciou que estava noiva de um funcionário chamado Roberto, alguém de quem eu jamais suspeitara, e alguém que de fato nunca notara. Comprei uma batedeira de bolos para o noivado. E nada lamentei pelo segredo.