As horas (junho de 2017)

Uma pequena multidão de vinte pessoas se reunia em torno do túmulo do morto. Eram dez horas da manhã e eu estava ali fazia mais ou menos meia hora. Fora convidado pela mulher do morto, Abel. Eu tentei chegar mais perto, mas senti hostilidade das pessoas, que me olhavam atravessado como se invadisse a cerimônia sem nenhum direito a isso.

Sempre me lembro da poesia de Vinícius de Moraes que diz “Para isso fomos feitos: [...] Para enterrar os nossos mortos”. Por esse motivo, sinto-me no direito de comparecer ao enterro das pessoas por quem tenha nutrido algum afeto durante a vida. Mas é fato que as pessoas elegem os “seus mortos”, excluindo pessoas do funeral.

Esse foi o meu caso nesse dia. Não tinha direito ao luto em razão da morte do homem. Seus familiares não acreditavam, aparentemente, que o morto seria meu morto também. De fato, meu laço com o defunto existia em razão de sua esposa, Mônica. Mônica era, para não dizer tudo, minha amiga de infância.

Abel e Mônica viveram uma vida de casados muito normal, do tipo que leva alguns conflitos pela vida, mas nada que fosse pesado demais para o casal carregar. Ele trabalhava muito e ela também. Tinham uma filha adolescente na escola que crescia em um lar sem grandes conflitos. E no final eram todos felizes.

Mas vem então da família dele, da família do defunto, essa possessividade que nos afasta, e que fez com que eu permanecesse vagando por um fileira de jazigos verticais (alguns abertos) onde era possível ver os restos mortais amontoados, através de buracos na entrada dos lóculos nas paredes dos cemitérios.

Os mistérios da morte sempre me causaram curiosidade. Ver aqueles crânios e tíbias ali sobrepostos, com a aparência de esquecidos pelos parentes, não era algo que me assustava. Não conseguia (e nunca consegui) sentir pavor dos ritos que seguem a morte. No dia do enterro de Abel, então, sentia-me em casa com os “meus” mortos das gavetas.

Mônica me olhava de longe, abraçada pelos dois lados por irmãos de Abel. Tenho certeza de que notava o comportamento de poucos amigos dos parentes do marido, mas estava muito cansada e acredito que pensava que eu haveria de compreendê-los. Então, por respeito, não me aproximei do túmulo. Mas ouvi as palavras do sacerdote de longe.

Cumpri meu luto com os outros mortos então, mortos aparentemente sem donos, mas acompanhei a cerimônia quando baixaram o caixão na sepultura de Abel. Mônica não chorava, mas os irmãos de Abel cumpriam o seu luto com muitas lágrimas. Abel não era doente e não tinha mais que trinta anos de idade. Sua morte foi uma surpresa para todos.

Devagar, as pessoas foram se enfileirando para jogar uma flor ou uma pá de areia no túmulo. Primeiro a viúva, depois os parentes do morto. E assim faziam o sinal da cruz e punham-se a andar em pequenos grupos para fora do cemitério. Mônica espigou o pescoço para me alcançar com a vista. Pediu licença ao grupo e veio a meu encontro.

De primeiro, sorriu com a face sem lágrimas. Depois abraçou-me, e para isso deixou no chão o par de sandálias que estava calçando. Mônica era uma mulher bonita, mas atarracada. Gostava de dizer que era mignon. Beijei-lhe a face e apertei-a entre meus braços. Senti o cheiro das velas de candeeiros do velório exalando de seus cabelos.

Nesse dia trágico senti desejo por Mônica. De fato, haveria um motivo atrás disso para que a desejasse. Havia uns quinze anos atrás e, adolescentes que eramos, fizemos juras pueris de nos casarmos algum dia. Naqueles dias, nos beijávamos apaixonadamente, mas quando Abel surgiu na história (à mesma época), ele a arrebatou imediatamente.

O coração de Mônica não parecia recordar-se das nossas tardes de paixões tórridas quando adolescentes. Mas o meu coração, para minha surpresa, ainda reconhecia aquela pequena mulher como sendo dona dos afetos dela. Os pelos de meus braços arrepiavam-se todos. Uma pressão na nuca me deixava meio desorientado. Tudo por causa dela.

“Que bom que você veio”! Disse-me ela, “Abel teria adorado sua presença”! Completou. Eu lhe disse, “Não poderia deixa-la só nesse momento”. E repeti, a contragosto, cheio de ciúmes do defunto, “Sim, acho que Abel teria desejado minha presença”! Seguramos nesse instante as mãos um do outro.

Mônica fez com a cabeça a menção de que a seguisse. Fomos caminhando juntos em uma direção diferente daquela da multidão e isso me deu um certo alívio. Caminhando por um corredor de túmulos altos, chegamos a uma pequena igreja. Às onze horas da manhã de uma segunda-feira, não haveria de terem culto. Mas a porta estava aberta.

Entramos na igrejinha e Mônica fez sinal para que me mantivesse em silêncio. Sentamo-nos na primeira fileira de bancos, próximo aos três degraus que levam ao altar. Imitando Mônica, curvei minha cabeça para baixo e uni as palmas da mão em sinal de oração. Também fechei os olhos e procurei não pensar em nada.

O local estava vazio. Já havia duas horas que havia chegado para o enterro. A ausência de coroas de flores, algo que se encontra em abundância por todo o cemitério, indicava que as cerimônias de velório dos defuntos não eram feitas ali. Também não havia muitos símbolos religiosos, o que fazia crer que o templo era ecumênico.

Ela sussurrava. Fazia uma prece para o marido, e embora seus olhos comprimidos demonstrassem pesar, na verdade ela sorria. Eu a seu lado continha meus movimentos, que de outro modo procurariam envolve-la em um abraço e um beijo nos lábios que sussurravam. Senti que a amava muito.

Passada uma meia hora, para minha desilusão, levantou-se apoiando em meu braço e caminhou comigo até a saída da igreja. Chegando lá, despediu-se agradecendo formalmente, dizendo que Abel estimava minha presença. Eu ainda pude beijar-lhe a testa antes que nos separássemos: ela retornou ao túmulo, enquanto eu fui para a saída.