O elefante e o sonho (setembro de 2017)

Hoje sonhei que meu dente molar esquerdo doía muito e eu havia ido ao dentista. Chegando lá, encontrava outros cinco pacientes à espera na pequena saleta do consultório dentário. Todos tinham aparência bastante comum, se não fosse por um rapaz dentre eles muito magro que, a princípio, como meu dente doía muito, não prestei a devida atenção.

De fato, no consultório do meu sonho havia um aquário com duas lagostas pronto para prender minha atenção. Também, para me distrair, grudada na parede atrás do balcão onde se sentava a secretária, que se vestia em um vestido branco vivo, havia um televisor sintonizado no canal das novelas da tarde.

Minha dor era insuportável, mas como era uma emergência e não havia consulta agendada eu sabia que teria que esperar por um encaixe entre consultas. Não sei dizer em que momento no intervalo entre uma mirada na televisão e outra nas lagostas meus olhos cravaram na carne do homem muito magro que aguardava, como eu, atendimento.

Ele sentava-se na mesma fileira de cadeiras que eu, quase ao meu lado, ficando entre nós uma alemãzinha de olhos azuis que poderiam saltar de suas órbitas a qualquer momento. Eu vi o homem, então, de relance. No princípio ele era estranho por conta de sua extrema magreza. Não havia visto sua face.

Como tudo em um sonho estranho só pode ser estranho, a secretária soltou uma gargalhada infernal, anunciando a entrada de Fräulein Strudell no consultório três. Ainda pensei: como por diabos poderia existir uma mulher com o sobrenome de comida? Strudell é um tipo de massa folheada! Mas eu sabia que sonhava.

Quando a alemãzinha já se havia levantado de meu lado e entrado para o atendimento, tentei ser simpático com o moço magricela, agora que não havia nada entre nós dois e podíamo-nos olhar face a face. Eu então abafei um grito, para não cometer uma grande indelicadeza: o rosto do homem pedia piedade para quem o visse.

Ele, talvez já muito acostumado com isso, adiantou-se oferecendo sua mão, quebrando qualquer mal-estar entre nós. E nós nos apresentamos: ele, “Hermógenes, encantado”. Eu, “Marcílio, muito prazer”. Por alguns segundos, não surgia qualquer palavra para quebrar nosso silêncio. Até que o jovem homem desfigurado rompeu com nossa mudez.

“Não te sintas mal, não é a primeira vez que alguém se espanta com minha aparência”. Disse ele. Eu tentei argumentar, mas minha voz simplesmente não saía de minha boca. E ele continuou, como um verdadeiro filósofo orador, “Isso que você vê foi obra de meu pai, muitos anos atrás”. E arrematou, “de fato, vem de quando eu era ainda criança”.

Eu já não prestava mais atenção em nada. Mesmo meu dente, que latejava, já não representava a maior preocupação para mim naquele consultório. Eu estava ávido por entender a fisionomia facial do meu novo amigo. Notei que ele não era pessoa de dar muitas voltas para dizer o que era necessário, então o deixei livre para que falasse.

A deformidade de Hermógenes era coisa de circo, como uma mulher barbada. Mas não era engraçado como a mulher do circo, ele era de fato perturbador. Da altura abaixo de seus olhos, seu nariz pendia junto com a face sobre a boca. De fato, de seu nariz restava apenas a lembrança de algo que deveria haver e não havia.

Uma analogia, talvez leviana, seria dizer que Hermógenes tinha cara de pênis. O nariz que pendia mole sobre a boca, e o par de bochechas protuberantes, faziam alusão ao órgão genital masculino. Eu enchi-me de curiosidade para saber a razão de sua deformidade severa, mas por não conseguir pronunciar nada fiz de mim todo ouvidos.

E Hermógenes continuou, “Já passei por situações que um ser humano não acredita possíveis”. E continuou, “Não faz muito tempo a filha de um rico comerciante teve um desfalecimento ao ver-me pela primeira vez. Contornado o incidente, e tendo seu pai me enchido de desculpas, ofereceram um emprego num pequeno e lucrativo negócio”.

“Tinha certeza de que o comerciante desejava tirar vantagem de minha diferença e sair-se bem para os de sua classe, como homem generoso que desejava ser. Aceitar uma aberração como eu, para lidar com seu comércio, era certamente ação de um homem de bom coração. Mas, como tudo que é feito sem verdade, seus planos falharam”.

“Em um mês de trabalho perdeu mais fregueses que pôde conquistar em um ano e, por esse motivo, o comerciante pediu a sua filha para presentear-me com uma modesta quantia de dinheiro e dispensar-me de meus préstimos. Como andava necessitando ir ao dentista, tomei o dinheiro de suas lindas mãos e despedi-me. E aqui estou hoje”.

Eu disse, “Mas...” Recuperava minha voz, “e como foi que teu pai um dia teria sido o protagonista de tamanho crime, desfigurando-o ainda criança”? Heródoto me respondeu, “Meu pai era um agricultor e um filósofo. Ele achatou-me o nariz com o cabo de um machado, mas não foi um ato de ódio, como algo feito por pura maldade”.

“O bom filósofo que era pensava em minha longevidade. Havia perdido todos os irmãos muito cedo – vítimas de suas paixões – como lembrava-me meu pai. Por cautela, para que não me perdesse um dia no caminho da vida como fizeram meus tios, fez meu pai o trabalho em minha face de forma a que eu parecesse sempre humilde para os outros”.

“A minha face mutilada, de nariz esmagado, garante a humildade frente as pessoas. De fato, nunca passei frio ou fome vagando por esse mundo vasto, pois sempre encontrei uma alma piedosa que me oferecesse alimento ou um teto para descanso. Por isso, jamais odiei meu pai, embora nunca tenha tido oportunidade de agradecer pelo serviço”.

“Seu pai teve a chance de vê-lo quando moço, já homem de calças”? Perguntei. “Meu pai morreu no ano em que completei dezoito anos. Eu ainda não havia saído de casa e nada conhecia do mundo afora. Na noite em que deixou a mim, minha mãe e minhas duas irmãs, abraçou-me afetuosamente dizendo que um dia eu lhe compreenderia”.

“Em casa, sempre fui tratado com normalidade. Enquanto vivi com meus parentes, não conheci o estranhamento do mundo. Confesso que, ao olhar-me no espelho, não possuía então nenhum sentimento de curiosidade sobre meu rosto. Um ou outro primo ria-se de mim, apontava para minha face deformada, mas de fato eu nada compreendia”.

“No ano em que fiz vinte anos, um inverno inclemente levou para a terra minha mãe e minhas duas irmãs de pneumonia. Sofri muito com a perda das duas. Meu tio mais velho chamou-me a si e, calmamente, explicou-me que aquele era o momento de minha partida. Era chegada a hora de juntar minhas coisas e ganhar o mundo”.

“No dia seguinte à conversa com meu tio fiz um bornal juntando algumas peças de roupa e dois envelopes com dinheiro da venda da casa de meus pais. Fui informado que na cidade grande encontraria ajuda de um velho conhecido da família, que me pagaria bem pelo trabalho na cozinha de seu restaurante”.

“Minha compleição física muito franzina e meus poucos estudos não permitiam que conseguisse trabalho melhor. E isso, sem mencionar minha deformidade, a minha carta de apresentação. Fui embora de casa em uma manhã fria, sem olhar para trás para não chorar de saudades. Isso faz hoje onze anos. Eu tenho trinta e um anos”.

Um pequeno periquito que pousara nas mãos da secretária calou o relato de Hermógenes. A secretária beijava o bico do passarinho enquanto lhe acariciava a cabeça com o dedo indicador; e soltava as gargalhadas terríveis. Pensando bem, a mulher tinha cara de orgasmo. Era lívido seu semblante e o caso com o periquito era quente.

“Pois então”, disse-lhe eu, “Estou encantado em conhecê-lo e saber de sua história”. O passarinho então voou da mão da moça e sobrevoou o lugar; mas retornou para a mão de sua dona e ela ofereceu a ele novamente mil carícias. Foi aí que alguma coisa me lembrou da dor de dente insuportável que eu sentia. Mas eu ainda sonhava.

Com força, deixando de lado a dor, inclinei-me para Hermógenes suplicando para que falasse mais de sua história. Já compreendia como veio ao mundo, a deformidade que como favor lhe fora feita, o dinheiro que recebera do comerciante para tratar dos dentes, mas não o que planejava fazer de ali por diante. Hermógenes era um elefante.

Mas, assim que o homem se preparava para falar, a secretária soltou outra gargalhada e anunciou a entrada do Sr. Hermógenes no consultório um. Ele passou por mim com calma e ofereceu-me sua mão pela última vez. Apertei-a. Depois que entrou, procurei em vão pelos outros três pacientes da sala de espera. Mas parece que me equivocara.

Sozinho com a secretária, as lagostas e o periquito que se lançava em mais um voo, senti-me só. E senti meu corpo ser tomado de assalto novamente pela dor de dentes, acordando em minha cama logo em seguida. Corri para o telefone para marcar consulta e lembrei-me de Hermógenes. Ele existiria?