As lágrimas de um militar

Numa noite escura, fria e sombria, a dor e desespero desfilavam doce e serenamente nos corações humanos. Tudo era calmo, só a morte se agitava e saudava o medo que desmaiava nas almas dos militares. Nas entranhas das brenhas de Moxúnguè, quando aquela terra se afogava na guerra, entre os homens imperava o falecimento da razão, perante um morticínio infernal, estava um militar com o cadáver do seu melhor amigo nos braço.

Dirigindo-se ao morto, o militar delirou: - Que palor é esse que te beija as frontes? Onde vais assim com tantas blandícies? Por que são gélidas as tuas mãos? Será que suportas repousar no ventre da terra? Será tão doce livrar-se do peso da existência?

Sei que nada valias, sei também que a tua existência leviana era só o rascunho do que poderia ter sido vida. Será que sabes o que te trouxe aqui? Sabes por que tanto guerreavas? Quem pariu a guerra? É o teu patrão, o teu inimigo, os dois juntos ou uma outra força estranha e ignota? Será que tu és, pelo teu patrão, conhecido ou sonhado?

Parece ter sido triste a tua morte, mais triste porém foi a tua vida. Tanto almejaste a utopia da vida sumptuosa e feliz, porém sabias que continuares vivo era tanta esmola, favor em excesso. Ó sonhador primaveril, como te atreves a fantasiar futuros felizes?

Sei que agora que jazes morto e apodreces, sonhas em ter um funeral. Como ousas? Até morto, continuas o mesmo romântico! Pensas que, por ti, uma lágrima molhará a pálpebra de uma dama consciente? És o mesmo cagão! Pensas que uma lágrima poderá resvalar no teu leito? Não será excesso de fé pensar que uma linda donzela sobre ti se vai reclinar, pondo flores no túmulo? Deves estar a pensar numa laje tumular de mármore? Seu gabarola! Quem se vai lembrar de ti, se o próprio tempo não te amou?

Oh, filho do belicoso fenómeno, bravo guerreiro, pobre criatura de Deus, de novo, a tua fé mentiu. Não há beijo de princesa que te vai cair na testa, não haverá a mortalha que um dia viste cobrir outros cadáveres, nem há pijama de madeira. Saiba que porque aqui não havia espaço para morreres, não te foi reservada a sepultura. Agradeças que os Doutores da lei não te processam pela morte ilegal, como se não bastasse, em terras alheias. Com tantos espaços no mundo, só te lembraste de vir morrer aqui? É tanta negligência, tanta inoperância.

Olha para aquele montão de areia. É o túmulo mais nobre daqui, juro-te, só tem paz quem ali tombou. Se ali tem um punhado de murchas flores, é porque é um ser épico quem ali repousa, um brigadeiro com divinal sapiência, com tanta agudeza de espírito e sagacidade filosófica, nunca tinha perdido uma batalha. Se ali baixou, é porque previa a sua primeira derrota e resolveu, por si só, ascender para junto do ente supremo, o organizador do cosmos.

Veja ao lado, uma caveira putrefacta. Antes de ser expurgada do seio da terra, já tinha uma sepultura, embora sem esquife. Foi desprezado pelo tempo, a natureza defecou na sua cara, por isso, agora rebola no berço da morte, sabe-se, contudo, que era um grande sábio. Aquele crânio já foi uma biblioteca onde estratégias militares descansavam as suas perfeições e os planos de guerra ferviam.

Veja aquele esqueleto que desfila nu na superfície, veja como o frio lhe roça os flancos, veja como se embebeda com as águas das chuvas e fuma o charuto das poeiras cobardes excrementosas que fogem da terra quando o céu bombardeia a terra com os seus mísseis pluviais. Haverá alguma gota de paz ali? Poderá a sua alma sorrir, se da celestial janela visualizar este cenário? Se se rouba a paz da funéria criatura, não será ela quem deambula de noite pelas matas, choramingando a entoar hinos necromânticos na idealização de um funeral condigno, que nunca poderá ter? É do teu nível quem ali tombou. Traído pelo tempo, Deus e os seus benfazejos foram apagados da vida dele quando tentávamos capturar o líder dos oposicionistas, acabando por comer a pólvora ardente do inimigo.

Assim, termina a aula, deves agora estar preparado para enfrentar a triste sina, um destino sombrio. Eu que falo, sou um inválido, que uma mina há pisado, imobilizado pelo efeito do explosivo engenho, só sei chorar.

De novo, o militar olhou para a face macilenta do cadáver e disse: Tu não morreste, apenas ascendeste ao acento etéreo, tu já nada temes, pois desfrutas do efeito anestésico do sono eterno. Os meus olhos sanguentos estão cansados de chorar, roga a Deus que, com a mesma bala, me liberte dessa prisão chamada vida.

O militar olhou para o sanguinolento chão circunjacente, contemplou com indiferença o rubro líquido que lhe vertia dos membro recém-amputados pela mina, sentindo-se já a perder as forças, disse: - venha a mais violenta morte, seja quão forte a dor de que padece o corpo físico, apenas fará sucumbir os níveis mais baixo do meu ser. Temo, porém, a patologia da alma, quantos militares sucumbiram por a travessar a minha mira? Quantos inocentes, na foca, suas almas fui obrigado a soprar para o além?

O tempo poderá ter envenenado a minha alma, quando mata a alma, o tempo chega a ser mais abominável que qualquer arma do mundo. Tem razão o mundo quando erra, ninguém é culpado pelos crimes que comete, pelo fogo que lhe arde no peito, nem por possuir a alma sangrenta, pois só o tempo conhece a fórmula química usada para envenenar o espírito.

Agora sei que vou morrer, sinto uma energia suprema a minha aura dissipando, por isso, rezo uma oração a Deus ou não. Se Deus não há, rezo para aquilo que há no seu lugar, àquele ser perfeito que terá organizado os movimentos harmónicos que nunca se contradizem, mas que suave e docemente marcham para o abismo, àquele ser que laboriosamente concebe a vida, juntando o corpo físico ao corpo espiritual e, mais tarde, oferecendo-o às larva tumulares.

Senhor, nosso Deus, responsável pela organização da força mecânica que combina e desagrega os átomos para dar forma às coisas, oiça a voz, ainda que vinda de uma minúscula substancia, eu que falo, o mais insignificante entre os órfãos de importância, peço-te, esta é a última coisa que te peço, ó Deus, dá-me apenas uma sepultura. É só isso que te peço e mais nada.

Mutxipisi
Enviado por Mutxipisi em 30/10/2017
Reeditado em 28/02/2023
Código do texto: T6157294
Classificação de conteúdo: seguro