estória de uma sociedade corrompida

O clima é frio e o sol se foi, deixando todos sob o mesmo ponto de vista: suspeitos, sim, do ponto de vista dos fardados noturnos em que a lei é atirar pra depois saber quem é, durante o dia há uma certa cautela, mas as leis da noite são outras, ainda mais aqui no São Cosme, zona oeste, a cidade? Pouco importa, é metrópole, tem parte rica e parte pobre como qualquer uma desse Brasil. Hoje quase fui confundindo por um PM, ele achava que eu tava trazendo uma droga nova pro bairro, disse a ele que a única droga que consumo é esse ar repleto de podridão humana carregado de uma injustiça que me deixa atordoado, esse sim é meu vício, e o pior: fui obrigado a consumir dessa droga que nem precisa ser vendida, afinal você já nasce consumindo-a. O guarda me deixou ir, percebeu que eu era mais um revoltado que trabalha no centro e tem que voltar toda noite pra esse pedaço da cidade.

Conheço poucos e poucos também me conhecem, no máximo o senhor do boteco que me vende toda manhã o pão na chapa e um café, também aceno para um senhor que anda de cadeira de rodas e também para uma senhora que às vezes me leva um bolo de fubá no meu apartamento. Quem é ele?Devem estar perguntando. Eu sou o cara, não no sentido de convencimento, mas sim um cara qualquer, que se revolta com o que vê e ouve e que acredita que se me dessem o poder faria melhor ou faria igual quem está nele, é uma faca de dois gumes. Família? Tenho, mas decidi sair dela e viver por conta. Não passo necessidade, mas por que esse lugar? Sei lá!

Tem um cara que mora aqui que sempre me chama pros lugares, chama-se Oscar.

_ E ae cara, o que vamos fazer hoje?

_ Não sei, ficar em casa talvez.

_ Mas no seu aniversário?

_ Como você sabe? – como ele sabe? Faço questão de guardar isso, o cara deve ter fuçado meus documentos, só pode.

_ Você mesmo quem disse, semana passada depois que bebeu seu quinto gole de pinga, ficou todo carente, querendo atenção e disse que ninguém lembraria dos seus vinte e sete anos, pois então eu lembrei e agora trate de se arrumar, tem uma festinha legal acontecendo na rua América.

_ Você não deve ta falando sério, não saio nem a pau.

_ A Cris estará lá, é uma chance de você falar com ela, vamos lá cara, deixa disso.

Esqueci de contar, tem o Oscar, que me conhece há um tempão e me ajudou a encontrar um apê legal por aqui. E a Cris... bom quando chegar lá saberei o que fazer.

O pico ta quente por aqui, e já sinto a brisa subindo, melhor nem chegar perto pra não dar vontade, já disse que meu vicio é o ar impuro da hipocrisia social, já me basta ele, apesar de que os vícios comuns fazem menos mal do que esse vício coletivo a que me refiro.

_ E ai Cris tudo bom?

_ Oi

_ Chegou faz tempo?

_ Não muito, deixo eu ir que meu namorado ta me esperando, tchau.

_ E ai como foi o papo? – perguntou Oscar descaradamente.

_ Vazio. – vazio como a minha alma que nada na imensidão da minha estúpida existência.

_ Mas como cara?

_ Ela ta com outro e ponto final.

Fomos embora logo, antes que saísse na briga com o sujeito e não me arrependeria, pois seria como um alívio para o estressante cotidiano e me lembraria do meu acéfalo gerente que ainda acredita na prosperidade do sistema capitalista monopolista cosmopolita financeiro, que te rouba por inteiro. Se o Oscar ouvisse meus pensamentos me apelidaria de Che Guevara, sem dúvida, aliás, ele deve ter visto minha coleção de camisas contra o sistema. Numa das nossas conversas sobre esse assunto ele me disse algo que é bem verdade: O sistema é tão cretino que ele pouco se importa se você o aceita ou não, ele te suga, te estupra, te usa e quando tiver consumido tudo o jogará para a vida e lhe dará de presente uma bela cadeira para esperar a previdência social lhe pagar, promissor não é? Então não adianta você vestir essa camisa do anticapitalismo que não dá certo. É nesse ponto que eu discordo dele, afinal vou lutar, mesmo que calado, mas quando tiver oportunidade mostrarei todo meu descontentamento.

Fiquei furioso quando descobri que o cara com quem a Cris estava era um burguesinho que veio conhecer o bairro porque tem seus primos pobres e também pra dizer que não tem medo de morar por aqui, queria só ver se a PM o pusesse contra o muro e lhe apalpasse até a alma, ai sim ele ia gritar. Quem me contou isso foi o Buiu, eu estava no ponto de ônibus e ele tinha acabado de descer, estava voltando de um show de rap, isso eram seis da manhã, claro que depois do show rolou aquela brisa e quiçá um passeio pela polícia. Depois que ele me contou, fiquei ainda esperando o ônibus e nessa espera percebi que havia um cara me encarando do outro lado da rua, fiquei encanado e comecei a encarar também, foi então que ele atravessou a rua e veio esperar um ônibus qualquer do meu lado. Pra minha sorte o meu ônibus chegou, mas pro meu azar o sujeito também entrou. Fui lá pro fundo, o cara sentou uns bancos à frente. Estava lotado. Fiquei olhando a paisagem de sempre, os outdoors mostrando produtos caros, baratos, mostrando tênis de ultima geração, porém bizarros pra mim, o tênis parecia ter mais amortecedor que carro e uma cor que iluminaria tudo inclusive a escuridão dos meus pensamentos. Quando deixei de prestar atenção nos outdoors, percebi que o sujeito estava do meu lado e sem deixar eu virar o rosto ele começou a falar:

_ Sim, eu concordo com você, o sistema é filho da p..., injusto e sem moral.

_ Como é?

_ Eu sei o que você sente, Jonas, não é esse seu nome?! Eu vivia reclamando do sistema, mas não agia, só pensava, mas há um abismo entre agir e pensar meu caro.

_ Como sabe meu nome?

_ Não é hora de perguntas tolas, as quais você nem precisa saber a resposta, você precisa ir atrás daquilo que você precisa saber, precisa buscar um sentido, um motivo pra você acordar todo dia e respirar esse ar que você diz ser uma droga em que todos são viciados. Eu procuro mudar aquilo que não me contenta, mas cuidado, pois quando tentas mudar o meio, é ele que acaba te mudando.

_ Não faz sentido.

_ Nada faz sentido, aliás, a única coisa que faz sentido é a sua busca para encontrar um sentido para sua vida.

_ Para onde você vai?

_ Eu vou buscar um sentido para minha vida e você? Não me diz que vai pra aquele escritório mofado de falsidade e ajudar a fortalecer o sistema mais e mais.

_ Então vou com você.

_ Espera ai, cada qual tem seu caminho.

_ Então me ajude a encontrar o meu.

_ Você tem certeza de quer isso?

_ Claro, eu saí da minha casa onde esse mesmo sistema me dava de comer, vestia o que todos usavam e aprendia o que todos aprendiam: o sistema ajuda a todos. Bah! Como eu era tolo!

_ E continuará sendo se ficar só reclamando, pra reclamar você é um gênio.

_ Nem precisa me levar pela mão, é só dizer os primeiros passos.

_ Isso você sabe, mas não quer fazer, afinal o sistema também te ensina a ser acomodado, afinal reclamações aleatórias não o enfraquece.

Segui o caminho do sujeito. Descemos do ônibus, pegamos outro. Percebi que estava voltando para onde eu moro. Descemos e ele me levou até meu apartamento, abriu a porta e viu o estouro do big bang como se ele visse de camarote.

_ Se você mora desse jeito, gostaria nem de pensar como são seus pensamentos, meu rapaz.

_ Não tenho tempo!

_ É claro, esqueci que você é escravo do sistema.

_ Acertou.

_ Lógico que você vai sair daquele lugar e começará arrumando sua vida a partir de onde reside seu corpo e seus pensamentos mais profundos, tem que entrar em sintonia com o mundo que rodeias.

_ E depois?

_ Eu serei dispensável e irei atrás de outro rebelde acomodado que acha que usando camisas contra o sistema e falando como tal, poderá mudar algo, mas que não mudará nem cadeira de vereador de esquerda.

_ Por que isso?

_ Porque arrumando o seu mundo interior poderá mudar seu mundo exterior.

_ Ótimo, entendi tudo!

_ Sem ironias, deixe-as pra quando estiver com tempo.

O cara se foi pra sempre. Eu arrumei meu apartamento inteiro, depois fui visitar minha família que fazia parte da minha bagunça, depois fui até o escritório mas não pra pedir demissão, porque tenho que me sustentar, mas tive uma conversa séria com o patrão que se surpreendeu, deu-me uma promoção. Depois de algum tempo saí daquele bairro - o São Cosme - deixei de reclamar e passei a agir mais, mas não que passei a aceitar o sistema, mas aprendi a dribla-lo e não me passar a perna. E não ache que isso seja um relato que nem aqueles de auto-ajuda, longe disso,é apenas uma estória que pode ser de qualquer um e de ninguém também.

28/09/05

Miguel Rodrigues
Enviado por Miguel Rodrigues em 20/10/2005
Código do texto: T61577
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