CIRANDA EM DIA DE FESTA

Quem julga ver do alto, aos poucos nota diferença na perspectiva. É que a sombra do paredão que se estende por ali descobre as roças e a estrada recortada de mata-burros. Para perto da mesa, o voo de uma abelha descreve escala fria no ar da manhã. Nesse momento, a tia prepara mistura de ervas, soda e anil e diz que assim nossa roupa ficará mais clara para irmos à quermesse. De fato, isso acontece no varal agora.

Lá fora, numa ponta de vara, Rosa equilibra o mundo. Rabisca no chão um círculo perto das moitas de inhame. Mas é da serra que os homens retornam para o almoço. Entram pela porta da sala e dão com a notícia de que a chuva, em Belo Horizonte, deixou vítimas.

A fartura ignora a fama de osso duro que tem o Tio, todos comem à mesa. As palavras sobram, buscam sentidos caídas no chão.

_ Chegaram ainda noite.

– Vieram do Espigão.

– Levaram os bois pela serra.

– Tinham carro esperando.

– Arrombaram a cerca.

E mais comida é posta. Rosa distraída toca seu rebanho de dragões. Faz zunir a vara que desenhara os mundos. Esquece o ermo da serra, esquece o vazio no estômago, prefere brincar a comer. Nas camisas alvejadas a sombra do monjolo cria figuras disformes.

De outra janela, outra abelha refaz o percurso que fizemos, no sentido inverso refaz. E vai, e vai.

Nesse estado perene os dias passam em turnos de bem-te-vis. Os acontecimentos, a vida que não coube, o que chamamos precipitados de fatos, agrupam-se em ciranda. Quando mais tarde Rosa abrir os olhos o sol terá acordado toda gente, que para inventar o mundo foi preciso dormir cedo.

*

Da cama para o quintal, hoje é o dia da festa. Tem visita na sala que acabou de chegar. O aroma do café agrega lembranças à luz que vem das frinchas de entre as telhas, o resultado na fina malha parece um texto em braile.

Onde está o menino? Na caixa! Rosa pergunta e responde. E vai brincar com o boneco que está guardado em cima do guarda-roupa. Dera-lhe nome, tem cabeleira desenhada, usa sapatos e meias. É desses de pano e cabeça de papelão para os quais a Tia preferia costurar.

_ Dá mais caída no corpo de papel as roupas que faço.

O boneco foi presente de aniversário do ano retrasado, ou de antes. O boneco conserva, se não for exagero a liberdade poética, algo distante no modo de olhar quando é retirado do caixote que lembra mais oratório que embalagem de presente. Nos braços de menina a terra é plana e pequena. O boneco parece rir dessa imagem, mas é ilusão apenas dela que imagina os diálogos, as falas e os gestos que o animam. Já na conversa de gente grande é melhor não por sentido.

*

Amanhece outro dia.

Rosa não ouve, porque ainda está no quarto, o choro recortado de interjeições suspensas que vem de fora, da varanda. Quando alguém liga o rádio para em seguida desligá-lo é só para sabermos que a música não fará mais que aborrecer à todos. Ninguém irá à quermesse, os ladrões não foram pegos e...

A sala está vazia, o café esfria.

O sol faz a sombra do paredão coincidir com sua base, é meio dia. Na estrada a poeira ganha densidade luminosa quando outro carro desce pela estrada no caminho que usamos para chegar aqui. O silêncio deveria traduzir o que já é esperado, nosso pai morreu. De desgosto, dirão alguns. De avareza, outros. A verdade é que de nós sempre haverá uma história a ser emendada quando nenhuma história não interessar mais.

Essa noite todos passarão em vigília.

- Tia, o que conforta o coração? O telhado parece o céu, alto e sempre escuro.

- Nada, Rosa. Bonecos não sentem sono. Durma.

Só então, com medo que a noite nunca termine, Rosa adormece ouvindo salve-rainhas.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 18/11/2017
Reeditado em 01/04/2018
Código do texto: T6175124
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