Anjos Caninos

Há momentos na vida da gente que tudo parece conspirar contra nossas aspirações, por mais humildes que elas sejam, algum tipo de energia ruim causa este desequilíbrio, mas para que entendam melhor vou contar a história do começo.

Em janeiro passado fui ao meu psiquiatra com quem me trato a mais de três anos, todos os meses tenho uma consulta com ele, até porque os remédios que uso são controlados e preciso da receita para adquiri-los.

Desde que me conheço por gente nunca fui muito apegado a cama, sempre dormi pouco e acordo muito cedo, mas nas últimas semanas a coisa piorou.

Eu vinha dormindo no máximo duas horas por noite, me sentia extremamente disposto para o trabalho, um bom humor contagiante, (ou quem sabe um chato aos olhos dos outros) a cabeça andava a cem por hora, mas o corpo não acompanhava, sentia muita dor nas pernas e cansaço ao deitar, mas não tinha sono.

Relatei este caso ao médico, e este me fez algumas perguntas, umas trinta, mais ou menos, sobre estes “sintomas” e me disse que era muito comum estes sinais nos quadros de bipolaridade, e levantou a hipótese de estar errado o seu diagnóstico inicial, que na sua analise seria uma “depressão severa”.

Como? Se depois que comecei a usar a medicação prescrita eu me sentia extremamente bem e foram três anos, não três semanas meses ou dias.

Mas não me conformei com a “sentença” do médico e fui pesquisar, descobri que nos casos de bipolaridade existem as fases de “mania” (que mais precisamente é o quadro depressivo) e a hipomania que é a fase eufórica da doença.

Em vários estudos que li sobre o assunto, em um ponto todos eles concordam, dizem que a fase hipomaniaca não chega a causar transtornos (pelo menos relevantes) ao paciente, porque ele em si se sente uma espécie de “supermam” é otimista, acha que a vida é muito bela e tem muita disposição.

Mas na recaída para a depressão tudo ficaria muito difícil, com um sentimento de culpa enorme, falta de esperança, sem vontade de viver, apenas querendo dormir e fugir de tudo á sua volta.

Parecia que aqueles textos teriam sido escritos para mim, comecei a relembrar coisas que aconteciam antes das crises de depressão e tudo foi se encaixando como num “quebra cabeça” (desculpem o trocadilho), nos dias que se seguiram aconteceram coisas que me afetaram muito, minha enteada, a qual considero como uma filha estava passando por problemas conjugais que certamente levaria a uma separação do casal, e para piorar a situação tive um problema com meus fornecedores em relação a um orçamento que inspirava urgência.

Naquela tarde o sistema da internet caiu e fiquei sem receber os documentos que requeri ao fornecedor, além disso, um cliente me ligou, pois havia tido um pequeno problema com um produto meu (coisa simples de resolver) meu humor mudou totalmente, já era umas quatro horas da tarde e se armava um temporal, sem hesitar peguei minha moto e umas poucas ferramentas e me dirigi à casa do citado cliente, mais ou menos uns vinte cinco kms de onde moro.

Um trecho da viagem fiz pela rodovia federal, mas em seguida tive de pegar uma estrada de chão e rodar por ela a outra metade do trajeto.

Chegando ao local foi muito fácil de resolver o problema, e não choveu, ficou só no barulho, depois de tudo resolvido embarquei novamente na moto e toquei rumo a casa, mas ainda dentro das terras deste cliente havia um trecho com muito barro, derrapei com a moto e caí nada grave, pois eu andava a trinta por hora, me sujei bastante de lama, parei adiante numa poça de água e me lavei um pouco para continuar a viagem. Segui andando muito devagar e pensando nas peças que o destino nos prega, me invadiu um grande sentimento de culpa, culpa por não ter estudado, por não ter um bom emprego, por ter sido incompetente na administração da minha vida, por ter dito coisas que ofenderam um grande amigo e deixaram graves seqüelas numa amizade de quase trinta anos, por não ter conseguido perdoar meu pai até hoje por ele ter sido um alcoólatra por três décadas e nunca ter me incentivado em nada do que eu fizesse.

Estes sentimentos foram crescendo dentro de mim e me sufocando, tinha um nó entalado na minha garganta, e uma pergunta que me perseguia, como poderia me libertar destas dores, angustias e mágoas? Eu precisava de um juiz que me concedesse um “Habeas Alma”, pois meu corpo era apenas a matéria que tornava mais pesado o meu andar.

Esta agonia foi tomando uma proporção jamais imaginada por mim, foi então que tive um pensamento um tanto sombrio, algo me dizia que logo ali depois da curva da estrada estava a cura para minhas dores, a liberdade, o fim dos sofrimentos das aflições e das frustrações, a recompensa enfim, só precisaria de um segundo de coragem e tudo seria resolvido, só em pensar já me sentia leve e liberto, meu plano era mais ou menos assim, quando chegasse à Auto-estrada eu apenas precisaria escolher um destes caminhões enormes que transitam o tempo todo por ali e em uma partícula de segundo eu alcançaria a tão desejada paz, mal sabia eu que logo adiante na curva da estrada estaria um anjo... Um anjo na forma canina a me esperar...

Quando passava pela curva onde há um antigo armazém, foi ali que eu vi a Canjica uma cadelinha vira-latas que por motivos que até hoje não sei, havia entregado ela aos cuidados de um dono que nem eu mesmo conhecia, ela que havia aparecido numa noite de natal e a adotei por um tempo, era inconfundível, pois tinha um olho castanho e outro azul, parei a moto e chamei-a pelo nome que eu havia dado a ela;

- Canjica!!! E ela olhou tentando me reconhecer tirei o capacete e senti naquele momento sumirem as dores e pensamentos ruins enquanto ela corria para me encontrar, deitou-se aos meus pés fez a maior festa, chorava pulava como a me dizer; eu te perdôo por ter me traído... minhas lágrimas rolavam pelo rosto ao sentir a pureza daquele perdão.

Ficamos por ali alguns minutos, depois dei a partida na moto e segui adiante, vinha pensando pelo caminho, assim como eu senti o perdão dela eu também poderia perdoar aos meus e a mim também, a angústia havia passado um sentimento de paz me invadiu, segui meu trajeto para casa a refletir sobre as linhas tortas em que Deus escreve as frases do destino, seria coincidência numa noite de natal ela (a Canjica) ter aparecido? Seria coincidência ela estar ali na curva da estrada naquele momento crucial?

Ou quem sabe um anjo possa entrar em nossas conturbadas vidas na forma de um cão, no meu caso mais precisamente uma cadelinha vira-latas chamada Canjica.

Elson Lemos

12/02/2012

Nota: Alguns dias após eu ter escrito este texto, a cadelinha Canjica apareceu no nosso portão, viajou mais de vinte km e retornou para casa, onde vive com a gente até hoje, tornou-se a grande amiga da minha netinha Manoela que tem dois aninhos de idade.

13/09/2017

No final do mês de Junho de 2020 perdemos nosso Anjo Canino para um câncer generalizado, levei-a em meus braços até o local do seu derradeiro descanso, onde estão sepultados também Pituxa e Sabugo, que como a Canjica iluminaram nossas vidas e deixaram muitas saudades.

12/07/2020

Elson Lemos
Enviado por Elson Lemos em 05/01/2018
Reeditado em 12/07/2020
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