Os Inocentes

Lembro com muitas saudades da minha tia Marieta, ainda sinto na “memória” das minhas papilas gustativas o sabor da maravilhosa sopa que ela preparava.

Muitas vezes por ocasião das férias escolares me levava para passar uns dias em sua casa, era viúva e mais tarde teve outro relacionamento que não sei por qual razão durou pouco. Ela morava num sitio que era propriedade de sua irmã, a tia Nena, esta tinha cinco filhos, três meninas e dois meninos, entre eles quem mais se aproximava de minha faixa etária (mais ou menos doze anos) era a Ivonete, que morria de ciúmes da tia Marieta.

Toda vez que algum sobrinho estava por lá de visita, ela tratava de demarcar seu território, assim como um galo que põe a correr qualquer frango novo que venha cantar em seu terreno, ou como um cão que molha cada canto do pátio pra deixar lá o seu cheiro, definindo assim o limite territorial, mas ninguém dava muita importância para isso.

Sempre tive muito cuidado com a sagacidade dela, chegava de mansinho como uma serpente e logo dava o bote, tipo assim, fulano disse isso, beltrano falou aquilo, mas perdia seu tempo, pois não lhe davam muita atenção, por saberem das manhas da velhaca.

Numa das minhas temporadas por lá, fiz um amigo, chamava-se Julio César, (como o imperador romano) ele morava nas proximidades do sitio, juntos inventávamos muitas brincadeiras, pescarias, carreiras com cavalos de taquara, e até algumas pequenas artes como montar nos terneiros que ficavam separados das suas mães, às vezes me estatelava no chão da mangueira que era coberto de esterco e urina dos animais, e ia para o banho em estado deplorável.

Tia Nena tinha varias “vacas de leite”, acho que assim era mais fácil garantir o sustento da sua prole, os terneiros ficavam presos para não beberem o leite que seria tirado mais tarde, ou seja, quem menos corre voa, nós humanos roubamos o leite materno dos animais e eles que se danem.

A produção era vendida todos os dias, ao final da tarde os “fregueses” vinham um a um para buscá-la.

Fazia mais ou menos uns quinze dias que eu estava por lá, quando eu e Julio inventamos uma guerra de sabugos, nos municiávamos com sabugos de milho que achamos no galpão, estes eram debulhados e depois jogados fora, a guerra com esterco de vaca deixava nossa roupa em péssimo estado, então depois de ouvir muitas broncas da tia Marieta optamos pelos sabugos, eram mais limpos secos e não cheiravam mal, eram perfeitos, e ainda tinham a forma de uma granada de mão, assim como víamos nos filmes do Jonh Wayne.

Num destes ferrenhos combates ouve um “pequeno” incidente, uma de minhas “granadas” foi ao encontro de um alvo indesejado, a vidraça da janela do quarto da tia Marieta, foi um momento mágico ver aquele vidro explodindo em mil pedaços, mas a magia durou pouco, de repente um arrepio de pavor correu pelo meu corpo tremulo, e eu quase não acreditava no que estava acontecendo, logo senti também um frio na boca do estomago, uma sensação horrível... a guerra havia acabado.

Antes que alguém chegasse, Julio teve uma crise de covardia aguda e “picou a mula” para casa, fiquei quase sozinho, digo quase, porque minha prima Ivonete que havia visto tudo, aproximou-se com um jeito debochado e disse:

– Quando a tia Marieta chegar a coisa vai ficar feia.

Fiquei calado e engoli o sapo, pois não havia o que falar.

Ela insistiu:

– O Julio fugiu, mas tu não pode! Que pena.

Só então revidei:

– Não foi o Julio quem quebrou a vidraça.

– Eu sei, foste tu. – disse ela.

– Mas foi sem querer, foi um acidente e tu não tens que meter teu nariz nisso.

Ela sorriu e com um ar de deboche disse:

– Nem vai ser preciso! Teus dias aqui estão contados.

Ela virou e foi embora, teve sorte porque a guerra estava prestes a começar novamente, só que desta vez seria com ela.

Quando tia Marieta chegou eu estava sentado cabisbaixo no degrau da pequena escada que dava acesso para a porta da frente da casa, ela olhou para mim com um sorriso no rosto e falou carinhosamente:

– Cansaste de brincar, querido?

Respondi, com certo desanimo:

– Não tia, é que ouve um pequeno acidente na nossa brincadeira.

Ela alterou-se de repente, talvez por susto:

– Onde está o Julinho, alguém se machucou, o que ouve?

– Não tia, ninguém se machucou, o Julio está bem. – Respondi a ela.

– O que ouve então? Me conta!

– Nós brincávamos no pátio, de repente apareceu um gavião e pousou na borda do telhado, achamos que ele poderia pegar os pintinhos das suas galinhas e afugentamos ele com uma saraivada de sabugos.

– Muito bem Maninho, (era como ela me chamava) vocês fizeram a coisa certa! Mas tu disseste que ouve um acidente, o que foi?

– Acontece que um dos sabugos que jogamos nele, acertou a janela do seu quarto e espatifou o vidro.

Ela parou pensativa, e disse;

– Não te preocupa querido! Amanhã a tia vai mandar consertar o vidro.

E assim aconteceu! No outro dia o vidraceiro colocou um novo vidro na janela.

Tudo resolvido, mas eu tinha medo que a Harpia Carpatiana da minha prima desse com a língua nos dentes e denunciasse minha “pequena” mentira. Mas isso não aconteceu, tia Marieta não costumava comentar coisas irrelevantes com os outros, e Ivonete deve ter achado que ela sabia da verdade. Dois dias depois o caso estava “arquivado” ninguém mais lembrava o acontecido.

O Julio andou meio sumido, talvez estivesse envergonhado pelo que acontecera, mas logo se achegou novamente e esquecemos o episódio.

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As tardes de janeiro eram lindas e ensolaradas, a brisa do entardecer amenizava o calor do verão, havia muitas arvores pelo sitio, belas sombras e muito espaço, um cenário perfeito para uma criança de doze anos inventar novas brincadeiras, e assim fazíamos todos os dias, mas agora com a cautela de avaliar melhor as conseqüências.

Uma tarde quando nos preparávamos para uma pescaria, a tia Nena me chamou com um gritinho meio esganiçado.

– Maninho! Pode vir até aqui?

– Já estou indo tia. – respondi.

Tia Nena era uma mulher miúda, mas trabalhava muito, ocupação era o que não faltava no sitio.

Quando me aproximei, vi que ela segurava uma garrafa de leite, passou a mão sobre minha cabeça e falou:

– Faz um favor pra tia! Entrega o leite da dona Dica. Acho que ela não teve tempo de vir buscar.

– Mas onde ela mora?

– O Julinho vai contigo! Ele sabe.

Saímos os dois “mundo a fora”, eu e o Julio, andamos um pouco e avistamos uma espécie de bifurcação no caminho, a estrada atravessava os trilhos da viação férrea, paramos no cruzamento e o Julio teve uma idéia:

– Vamos pelos trilhos,assim chegaremos mais rápido.

– Será que não vamos arrumar confusão? – perguntei.

– Já andei varias vezes sobre os trilhos. – falou Julio querendo exibir-se.

Andamos quase 1 km e entramos em uma pequena trilha que encontrava mais adiante a estrada que deixamos, logo em frente havia uma casa de madeira, era onde morava a dona Dica, entregamos a “encomenda”

e voltamos para casa, só que desta vez pela estrada, para variar o caminho.

O sol já estava se pondo, apressamos o passo para chegar ligeiro, pois as tias poderiam ficar preocupadas com nossa demora. Na ultima curva da estrada passamos por um sitio, onde havia uma pequena casa branca de alvenaria, com uma varanda na frente.

– A Isabela mora aqui. – disse Julio.

– Quem é Isabela? – perguntei a ele.

– É uma colega da escola. Ela é muito bonita.

Com um ar de deboche articulei:

– Ah! Já entendi tudo.

– Entendeu o que? – disse ele com a voz alterada.

– Nada! Deixa pra lá.

Talvez pelo “lusco fusco” do entardecer, quase não percebemos que alguém nos observava na varanda da pequena casa, era ela, a menina que estávamos falando. Julio fingiu não vê-la, acho que estava com vergonha pela minha chacota.

Olhei disfarçadamente e apesar da pouca luz que havia, pude ver que era bonita mesmo, era alta, magra, pele clara e tinha longos cabelos negros.

Seguimos caminho e logo chegamos, Julio resolveu ir direto para casa, pois já era quase noite, e eu já sabia o que me esperava depois de um dia de correrias e brincadeiras, o banho, tia Marieta não abria mão disso.

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No dia seguinte levantei cedo e assim que saí, já pude ouvir todo o burburinho que tia Nena fazia com as vacas ao tirar o leite, cheguei mais perto e fiquei observando.

Apojando a teta da vaca com uma das mãos e com uma caneca na outra

Ela perguntou:

– Por que levantaste tão cedo?

Respondi;

– Acho que perdi o sono, e resolvi levantar.

– Então, me alcança o balde. – disse ela.

Alcancei -lhe rapidamente o balde.

– Posso beber um pouco? – perguntei apontando para a caneca de leite.

– Será que não vai te fazer mal? Tu não estás acostumado a beber leite assim.

– Só um pouquinho, só para sentir o sabor.

– Então bebe! – falou enrugando a testa, com um ar de desconfiança.

Bebi mais ou menos o equivalente a uns três copos, quando entreguei a caneca a ela estava totalmente vazia.

Surpresa com minha voracidade, falou-me olhando o fundo da caneca;

– Cruzes! Bebeste tudo?

– Claro tia! Estava muito gostoso, acho que é por isso que os terneiros mamam tanto.

Ela balançou a cabeça para os lados, como quem reprovasse meu ato, mas nada falou, continuou o trabalho.

O dia já andava longe, estranhei a ausência do Julio, que sempre chegava pelas nove horas, mas naquele dia isso não aconteceu. Tratei de achar com o que brincar, mas estava sem inspiração. Senti algo estranho,

primeiro, uma dor de cabeça muito forte, depois, ânsia de vômito, tia Marieta tinha saído, mas antes de sair recomendou-me que se precisasse de alguma coisa pedisse a tia Nena, foi onde busquei socorro, disse a ela o que estava sentindo e ela prontamente me atendeu.

– A tia vai de dar um remedinho e tu logo vai melhorar. – falou-me com muito boa vontade.

Remexeu umas gavetas de uma antiga cristaleira que tinha as portas superiores envidraçadas e mais parecia uma peça de museu, e murmurou:

– Onde será que botei meus óculos?

Em seguida veio ela com uma xícara de chá e um comprimido branco que parecia ser uma aspirina, e falou com segurança;

–Toma Maninho! Engole o comprimido e bebe o chá, que em pouco tempo tu não vai nem lembrar que esteve doente.

Agora já estava medicado, e era só uma questão de tempo para tudo voltar ao normal, sentei na escada que dava para a porta de entrada da casa da tia Marieta e fiquei a espera do Julio, logo senti uma espécie de “trovejero” nas tripas e quase que não consigo chegar a tempo numa velha latrina de madeira que ficava nos fundos do galpão, em seguida ouvi a voz da tia Marieta, ela tinha chegado, perguntou por mim, e Ivonete respondeu num tom sarcástico.

– Ele passou correndo em direção a latrina, parecia ter pressa.

– O que será que ouve? – indagou tia Marieta.

– Quem sabe alguma coisa que ele comeu fez mal. – respondeu Ivonete ironicamente.

Enquanto isso eu estava numa situação delicada, depois do “serviço” feito, observei que só haviam uns sabugos em um canto da velha latrina,

Não tinha outra solução senão usá-los, era um pouco desconfortável, mas não tinha outro jeito. Logo que saí de lá procurei tia Marieta, que já tinha o diagnostico pronto.

– Só pode ser o leite que tu bebeste pela manhã a causa desta moléstia!

Agora tu vai ter que ficar de repouso querido.

Aquele dia estaria totalmente perdido, não fosse chamarem uma benzedeira para resolver meu problema. Acontece que a benzedeira morava nas vizinhanças, logo após a curva da estrada, e trouxe consigo sua filha, que era a colega do Julio, a bonita Isabela, era bela até no nome.

Eu estava deitado num sofá que tinha na sala, fazia parte de um “terno estofado” como diziam. Depois de todas as “mandingas” da benzedeira, ela fora para cozinha tomar um chá com tia Marieta, e Isabela ficou na sala sentada em uma poltrona, o Julio não havia exagerado quanto à beleza da menina.

Não sei se a benzedura realmente funcionou, mas eu já me sentia muito

melhor, Isabela parecia um pouco tímida, mas eu era muito mais que ela, ficamos mais ou menos uns vinte minutos calados, eu não sabia o que falar e acho que ela também não, ouvíamos as duas mulheres na cozinha conversando, rindo, numa longa e gostosa prosa, até que, para minha surpresa, Isabela quebrou o silêncio e perguntou:

– Até quando tu vai ficar aqui?

Respondi meio inseguro:

– Não sei ao certo, mas gostaria de ficar até o final das férias.

– Então certamente está gostando do lugar. – ela falou meio sem jeito.

Respirei fundo, tomei coragem e lasquei:

– Do lugar e das pessoas.

Antes que ela dissesse alguma coisa, ouvimos uma terceira voz na cozinha, era Julio, perguntando por mim, a tia mandou que ele entrasse,

nunca esquecerei a cara de surpresa que ele fez quando entrou na sala e deparou com a Isabela, disse um “oi” muito fraco que quase não ouvimos, mas eu respondi claramente.

Ele encorajou-se e falou:

– Me disseram que tu estavas doente.

– É verdade! Mas agora já estou bem, acho que o leite “cru” que bebi pela manhã me fez mal.

– Ouvi dizer que não foi só o leite.

– O que te disseram?

– Não sei se devo falar, mas passei pela tia Nena antes de vir para cá,

e estavam discutindo sobre este assunto.

Fiquei imaginando que poderia ser alguma intriga de Ivonete e pressionei o Julio para me contar, mas antes não tivesse feito isso.

Ele relatou tudo o que tinha ouvido.

– A tia Nena perdeu os óculos e ao pegar um comprimido na gaveta pensando que era aspirina na verdade pegou um laxante e deu pra ti,

e isso agravou a situação.

Um silêncio invadiu o ambiente por uns dois ou três segundos, até que Julio e Isabela se olharam e caíram na gargalhada, não gostei do ocorrido, pois a menina mais bonita do lugar estava rindo justamente de mim.

Mas depois até que foi bom, porque quebramos o gelo, conversamos o resto da tarde e até jogamos umas partidas de escova, a situação reverteu-se a nosso favor, foi muito legal.

Não lembro de ter visto outro verão tão lindo como aquele, tinha uma certa poesia no ar, que hoje já não se vê. O campo, as generosas sombras, o açude, tudo isso era palco das nossas ingênuas aventuras.

Numa tarde, Julio teve uma grande idéia, ao ver dona Dica passando na estrada, ele correu e falou alguma coisa com ela que eu não consegui ouvir

por estar mais longe.

Veio a meu encontro ofegante e disse:

– Tenho um plano.

Eu não estava entendendo o que passava pela cabeça dele.

– Que plano?

– Falei pra dona Dica, que levaremos o leite na casa dela hoje à tarde.

– Mas por quê? A tia Nena pediu?

– Não, mas isso faz parte do plano. – respondeu ele, e continuou:

– Eu digo à tia que falei com a dona Dica, e que ela pediu para nós entregarmos o leite em sua casa hoje.

– O que vamos ganhar com isso? – perguntei.

Julio fez uma cara irritada e disse:

– Podemos ir e voltar pela estrada, assim passamos pela casa da Isabela, na ida e na volta. Entendeu?

E seguiu falando:

– Faremos uma visita a ela, agora podemos, ela é nossa amiga.

Concordei apesar do medo, pois não desejava aprontar mais, havia me livrado do episódio da vidraça e queria andar na linha. E assim foi, falamos com tia Nena e ela concordou que poderíamos entregar o leite.

Ivonete estava desconfiada, pois havia visto nós cochichando alguma coisa sobre o plano, foi chegando sorrateira e falou com sua pose debochada.

– Ainda vou descobrir o que vocês estão tramando.

Respondi irritado:

– Não estamos tramando nada! Agora eu entendo porque tu não tens amigos, ninguém te atura, tu és muito chata.

Ela rebateu;

– Prefiro não ter, se é pra fugirem quando a coisa fica preta.

Julio ficou furioso, pois sabia que a indireta era para ele, e falou;

– Se todas as meninas fossem como Isabela o mundo seria muito melhor.

A harpia ficou vermelha de raiva.

– Eu já estou sabendo que vocês arranjaram uma “amiguinha”, mas isso não vai durar muito, é fogo de palha.

Julio interpelou;

– Hoje à tarde vamos contar a ela o que tu disseste.

– Hoje à tarde? Ah agora entendi o que vocês estão pretendendo!

Virou as costas e foi embora caminhando ligeiro.

Eu repreendi Julio pelo deslize:

– Tu ficaste maluco! Quase que tu entregas o plano todo para esta harpia.

– Foi sem querer, só queria atingi-la, mas me saí mal.

– Agora temos que ter muito cuidado, ou vai dar tudo errado.

Julio ficou meio chateado, mas logo passou, chegou a tarde e procuramos tia Nena para pegar o leite.

Encontramos ela na cozinha, enchendo os litros que deveriam ser entregues aos fregueses, era muito caprichosa, lavava bem as garrafas uma a uma, e depois colocava um funil no gargalo e derramava por ele o leite para dentro da garrafa com muita paciência.

Me aproximei, mas antes que falasse qualquer coisa, ela adiantou-se:

– A Ivonete quer ir junto! Mas acho que pega mal ela andar por aí com vocês, se eu deixar desta vez ela vai querer sempre.

Fiquei pensando o que dizer, mas Julio interpelou:

–A minha irmã a mãe não deixa sair assim. Menina tem que brincar com menina. – completou.

– A menos que amenina seja a Isabela! – gritou Ivonete, lá do seu quarto, em tom choroso.

– Não vai, e o assunto está encerrado! Exclamou tia Nena.

Peguei a garrafa de leite e tratamos de sair o mais rápido possível, antes de passar na porteira já havíamos dado boas gargalhadas, a nefasta tinha se saído mal. Logo estávamos na curva da estrada, passamos pela casa da Isabela, mas não havia nenhum movimento por lá, parecia estar abandonada, paramos na frente, mas ficamos com receio de chamá-la, seguimos nosso caminho, chegamos na dona Dica e para nossa surpresa

Isabela e sua mãe estavam lá, conversamos um pouco e já íamos saindo quando a mãe de Isabela falou, em tom de brincadeira:

– Os cavalheiros não vão esperar pelas damas para acompanhá-las?

Respondi meio envergonhado com outra pergunta.

– Vocês vão voltar agora?

Isabela respondeu que sim balançando a cabeça.

Julio não conseguiu disfarçar sua satisfação.

– Legal, então voltaremos todos juntos!

Despediram-se de dona Dica e aceleraram o passo para nos alcançar.

Pela estrada vínhamos conversando com Isabela e sua mãe que era uma pessoa muito agradável, falava tudo em tom de brincadeira, até disse que um dia gostaria de ter um genro que fosse como eu ou Julio, crianças prestativas, disse ela. Não tínhamos pressa de chegar, caminhávamos bem devagar para podermos aproveitar mais o tempo juntos com elas.

Chegamos ao sitio de volta já era noite, as tias estavam preocupadas com a demora, o Julio foi novamente direto para casa, cheguei e já fui repreendido:

– Porque demoraram tanto? - Perguntou tia Nena.

– Fomos devagar, porque estava muito quente esta tarde. – respondi.

– A Marieta está preocupada. – disse ela.

–Então vou me recolher, ainda tem o banho.

E fui saindo de mansinho, com medo de novas interrogações.

Tia Marieta tinha preparado uma maravilhosa sopa, daquelas que só ela sabia fazer, depois do banho, era a hora de jantar, comi até encher a barriga, ela ficava feliz quando alguém elogiava sua comida.

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Acordei com o berro dos terneiros, levantei e vi que já havia muito sol lá fora, lavei o rosto, e fui procurar tia Marieta, encontrei-a tomando mate com tia Nena e Ivonete, antes que eu falasse qualquer coisa, tia Marieta brincou:

– Bom dia Maninho! Dormiu mais que a cama?

– Dormi tia, só acordei porque os terneiros berravam muito, acho que estão com fome, porque eles não podem mamar?

– Porque as coisas são assim querido, eles são animais e foram criados para nos servir.

– Mas não é justo, nós bebemos o leite e eles ficam famintos! – respondi a ela.

Ivonete teve que dar o ar da graça:

– Está com pena? Vai lá cuidar deles.

Fingi que não ouvi a harpia carpatiana, e continuei conversando:

– Vou esperar o Julio lá na porteira, ele já deve estar chegando.

– Mas primeiro vai comer alguma coisa, querido. – falou Tia Marieta.

Mais tarde quando Julio chegou, eu já estava na porteira, fomos procurar com o que brincar, logo tia Marieta nos chamou para avisar-nos que iria a cidade com tia Nena e que era para brincar-mos por perto das casas, concordamos e seguimos em frente no que fazíamos. O dia estava muito quente e fomos até uma cacimba que havia perto do açude, para bebermos água fresca, era uma água que tinha um tom azulado, de muito boa qualidade.

Voltamos era quase meio dia e fomos comer alguma coisa que tia Marieta deixara preparado, o silêncio era grande, talvez por causa do calor, nem o cacarejar das galinhas se ouvia. Almoçamos e fomos para uma sombra sestear, não havia sequer uma brisa, arrumamos uma cama com pelegos virados e cochilamos um pouco por ali, Ivonete tinha ficado, mas não a vi mais, desde a hora do mate. Logo chegaram as tias, ainda estávamos descansando na sombra. Ouvíamos as vozes delas, comentando sobre preços e produtos que haviam comprados na cidade, continuamos descansando,

de repente a tia Marieta me chamou, parecia muito brava, fui até lá para ver o que estava acontecendo, olhei para o potreiro e vi tia Nena e Ivonete correndo para lá e para cá, os terneiros estavam todos misturados as vacas, corri para ajudar, Julio também. Depois de muita correria conseguimos apartá-los, mas tia Nena estava enfurecida, olhou para o Julio e disse num tom muito áspero:

– Te arranca para tua casa!

Julio sem entender o que se passava disse resmungando:

– Mas, porque, o que foi que eu fiz?

De nada adiantou ela mandou-o para casa novamente, ele saiu quieto, pois era um menino educado e não tinha costume de retrucar os mais velhos.

A tia Marieta olhou séria para mim e falou:

– Porque vocês fizeram isso, o que deu em vocês? Tu bem sabes que tua tia também depende do leite que vende para sustentar a família.

– Não fizemos isso! Não fomos nós que soltamos os terneiros. – respondi apavorado.

Ivonete interferiu:

– Lembra tia, o que o Maninho falou hoje pela manhã? – e continuou - disse que estava com pena dos terneiros, que nós humanos roubamos o alimento deles, lembra?

– Lembro sim, mas não pensei que fosse chegar ao ponto de fazer esta malvadeza. – concluiu a tia.

A palavra malvadeza atravessou minha alma como uma adaga afiada, um nó formou-se em minha garganta, descobri neste dia que a magoa dói muito e fiquei calado o resto da tarde, pois sabia que éramos inocentes.

Depois do banho jantamos, tia Marieta estava muito quieta, mas quebrou o silêncio com estas palavras:

– Junta tuas coisas que amanhã eu vou te levar para casa!

Ouvi calado, e assim fiquei, mas uma lágrima insistente teimou em rolar pelo meu rosto, o sonho havia acabado, eu teria que ir um dia, mas não queria que fosse assim, não era justo, eu gostava muito da tia Marieta, e ela estava profundamente magoada comigo.

Mais tarde fui me despedir da tia Nena, pois sairíamos bem cedo na manhã seguinte, os olhos de Ivonete brilhavam, ela enfim conseguira o que sempre quis, me afastar da tia Marieta.

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De manhã cedo, depois de aprontar-me para ir, saí lá fora e olhei pela ultima vez para aquele lugar, as sombras, o açude, a cacimba, e até a velha latrina de madeira me parecia tão agradável e bonita. Lembrei que não tinha me despedido do Julho e que não havia mais tempo para isso, da Isabela restaria uma lembrança de uma amizade que mal começara, mas que prometia ser verdadeira como era com Julio, novamente meus olhos embaçaram, uma voz me trouxe de volta a realidade. Era tia Marieta.

– Está na hora! Vamos.

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Tia Marieta prometeu buscar-me novamente no ano seguinte, mas isso não aconteceu, soube que ela andava com problemas de saúde.

Nunca mais vi Julio, nem soube o que foi feito dele, Isabela é apenas uma lembrança distante na minha memória, ainda tenho saudades daquele verão, até a luminosidade do sol era diferente, intensa, as sombras convidativas, tudo era mais bonito, não lembro de ter visto outro como aquele. O tempo passa e a vida nos leva por caminhos distintos, que pena que não podemos resgatar a inocência da infância, e que as pequenas coisas que significaram tanto perdem a importância, um pequeno e ingênuo sonho de verão, uma amizade singela e verdadeira, anseios que foram atropelados pelo ciúme desmedido e doentio de Ivonete.

Muitas vezes, no silêncio das madrugadas quando a insônia me visita, as imagens daqueles dias chegam sorrateiras nas minhas lembranças despertando um lindo e nostálgico sentimento que com certeza há de acompanhar-me para sempre.

Alguns anos depois do acontecido voltei lá, tudo estava diferente, o tempo havia modificado o lugar e as pessoas, Ivonete já era uma mulher casada e com filhos, e tinha mudado muito, para melhor é claro. Numa de nossas conversas, me confessou que fora ela mesmo quem havia soltado os terneiros. Mas agora isto não importava mais, pois tia Marieta já havia falecido.

Elson Lemos
Enviado por Elson Lemos em 20/01/2018
Reeditado em 20/01/2018
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