O terceiro pedaço do pão (novembro de 2017)

Às vezes acontecimentos que nos acompanham na vida adulta têm suas razões na vida infantil. Por vezes, manias muito enraizadas na vida de um homem encontram sua razão de ser no cotidiano deste homem-criança. É o caso então procurar prostrar-se em contemplação diante do mundo infantil para então compreender o porquê das coisas.

Minha família nada aparenta em comum com a família de onde vim: pai, mãe e filho. Sim, sou filho único de uma família de operários na periferia da capital. Em casa, havia uma ordem clara para tudo. Em nossos cafés da manhã, que tomávamos juntos antes de papai ir para o trabalho e eu para a escola, havia uma sequência que era um ritual.

Em nossos cafés da manhã, comíamos o pão que mamãe comprava na padaria todos os dias – um pouco antes de papai e eu levantarmos. O pão era grande, do tipo baguete, dividido em três. A baguete era centavos mais barata que comprar três pães de sal. Mamãe colocava o pão encima da mesa e acenava para meu pai, que devolvia o aceno.

Meu pai tomava a baguete à mão e, à maneira de Jesus na Santa Ceia, o repartia em três pedaços. O primeiro pedaço ia para ele, o segundo para minha mãe, e o terceiro (finalmente!) vinha parar no prato, ao lado do prato de minha mãe. Esse era um ritual imutável, que acontecia em silêncio, sem questionamentos, todos os dias.

A rigidez com que foi criado, à modo da repartição do pão no café da manhã, era violenta, mas silenciosa. De alguma forma, sentia que, se me desviasse das normas da casa (e do meu pai) um sermão ou uma surra me esperavam. Como resultado, nunca contrariei as normas e casa, e nunca apanhei ou escutei sermão.

Como resultado da boa formação moral de meus pais, tornei-me advogado. Então casei-me e escolhi por um filho. Desejei, consciente ou inconscientemente, apenas um rebento. O custo de vida, a violência na rua, influenciaram muito nessa decisão. Eu e minha esposa concordamos em um filho único.

Tendo passado tanto tempo, papai morreu antes de conhecer Gabriel. Minha mãe faleceu no ano em que meu filho completou seis anos de idade. Gabriel adorava mamãe e mamãe o tratava com seriedade, como se desejasse ensiná-lo o mundo da maneira que um dia o ensinara para mim.

Senti muita falta de mamãe que, nos últimos dois anos com o agravamento da doença, morava conosco em nossa casa na cidade. Era muito espirituosa e sempre pronta a contar uma história de fundo moral. Eu sempre me perguntei se minha mãe houvesse tido a oportunidade de estudar não seria uma pessoa muito mais interessante.

Gabriel chorou a morte da avó, mesmo sem compreendê-lo. Mas inteirou-se rapidamente de que não iria mais vê-la. E chorava. Minha esposa, muito doce, também foi atingida pela morte de mamãe. Mas guardava o luto para si e chorava sozinha. Eu aprendi a chorar no banheiro, nas horas mais altas da noite.

Mas o assunto são as três fatias de pão, divididas com parcimônia no café da manhã. Este hábito cultuei por muito tempo, com a exceção de quando mamãe viveu sob nosso teto. Àquela época, dividíamos a baguete em quatro, o que generosamente minha esposa compreendia. Érica era muito doce, e prontamente compreendeu a importância do gesto.

O primeiro pedaço de pão ia para a nossa matriarca, o segundo para mim, o terceiro para minha esposa e o último para o Gabriel. Novamente, como se tivéssemos voltado no tempo, Ninguém na mesa contestava essa ordem. Gabriel, embora fosse natural que perguntasse o porquê daquela partilha, nunca demonstrou curiosidade a esse respeito.

Talvez um dia, meus avós e bisavós, que haviam vindo de longe, de um continente onde havia muita fome, haviam iniciado esse costume de repartir com as mãos o pão entre todos os filhos. Não acredito que tinham à disposição uma baguete de padaria, porque com muita certeza coziam seu pão eles mesmos, no forno à lenha de casa.

Era um continente em guerra, o país de onde vinham meus antepassados passava por uma unificação que tornou rei um aventureiro rei que vinha do norte. A fome, então, tomava em cheio todas as casas pobres da região. Segundo o que meu pai me contou de certa vez, emigraram chorando.

É de se imaginar que um cidadão não deseje abandonar a terra que conhecia tão a fundo e amava; terra essa em que plantava debaixo de sol durante todo um dia e, ao som de uma concertina e ao sabor de algumas taças de vinho, celebrava com alegria. Mas a guerra veio e trouxe a fome. Sem outra alternativa, emigraram a contragosto.

Nasci aqui, como meu pai, e nos consideramos brasileiros. No entanto, nossos antepassados italianos parecem habitar a mesma casa como fantasmas que não querem nos abandonar, talvez em busca que estão de um pouco de alento, em busca de compreender suas próprias vidas tão longe da terra que lhes deu a vida.

E então, hoje, aniversário do casamento de meu pai e de minha mãe, nessa manhã que apenas começa, vou em frente com meu ritual. Porém, as lembranças do que sei e do que apenas sei porque me contara meu pai, confesso que deixaram algo como uma pedra em minha garganta. É a saudade, tão brasileira como eu.

E prossigo com meu ritual, oferecendo o primeiro pedaço de pão para Érica e depois Gabriel. Essas ações tão maquinais que repito há anos, desde quando me conheço como individuo, são o que me põem em contato com os fantasmas que insistem em andar em círculos em torno da mesa. Mãe, pai, tio, tia, avós e bisavós.

Há momentos em que acredito que Érica os vê também, mas guarda segredos de mim. Lembro então que ela também tem os seus fantasmas, e que é fruto de sua generosidade não me apresentar nenhuma demanda em relação a eles. De que forma render homenagens a eles? De alguma forma, em silêncio provavelmente, ela também o faça.