"Tudo é muito perigoso lá fora" Foi a frase que marcou a família durante algumas décadas. Talvez esse tenha sido o início de uma longa jornada em frente a tela dela: a televisão!
Vieram os filhos, os sobrinhos, os cunhados, e os avôs, que se felicitavam a cada neto.
Uma família como outra qualquer, não fosse o que pouco a pouco se sucedia vagarosamente com dois pequeninhos na família, irmãos gêmeos, de nomes Telê e Ione, oriundos da nova geração de aficionados em telas de computadores e tudo o mais que emitisse luz e movimento.
Seus pais, autênticos representantes de uma geração metade rua/metade televisão, viam-se agora diante do desafio de criar seus filhos dentro de casa, com rápidas saídas diárias para as necessidades solares e um pequeno indulto de brincadeiras ao ar livre ou sob o teto de shoppings centers.
A rua, diziam eles, havia ensinado demais, mas agora "tudo é muito perigoso lá fora". Rememoravam junto aos filhos as aventuras de uma infância prazerosa, recoberta de liberdade e de opções diversas.
Ione e Telê se maravilhavam com as histórias paternas contadas rapidamente enquanto viam televisão juntos.
A mãe dizia para Ione que a televisão havia sido muito generosa com ela, direcionando programas quase sempre para o público feminino, uma vez que, muito trancafiadas em casa, as mulheres podiam dividir a angustia de seus pesados trabalhos ao assistir as repetições de novelas da tarde e noticias quentíssimas sobre celebridades diversas. Era uma forma de se sentir menos só e aprender mais sobre o mundo.
Um mundo que a própria televisão dizia ser imenso, mas que só transmitia um pequeno recorte ao sabor das novelas da noite.
Ione ouvia deslumbrada aquelas histórias e queria, ela também, entrar nesse mundo de diversão e possibilidades da mãe. Telê por sua vez, começava a entrar em problemas com a saída da infância, gostaria de beijar a menina da escola, apesar de não saber bem ao certo por que a deveria beijar, sentia que era necessário fazer isso. O pai, sensível que era, percebeu logo as mudanças que se processavam em seu garoto. Em uma tarde sentou-se com ele, em frente à televisão e como se a usasse como porta voz, assistiram um filme sobre o início do primeiro amor e o primeiro beijo. Telê logo se encantou com tudo aquilo e gritava ao pai que: por coincidência, a garotinha, fruto de sua paixão, era igualzinha àquela do filme, seus gestos, seu cabelo clarinho, seus olhos semi-abertos devido à exposição do sol. Ah... Quão linda eram as paixões infantis, rememorava o pai por meio de seu filho!
Nesta mesma tarde, o pai notou que o filho lacrimejava em excesso, em frente a tela, pensou de início que fosse emoção por conta do filme, mas depois constatou surpreso que a córnea, a íris, e a totalidade ocular estavam negras, tal como uma televisão desligada.
Gritou à esposa em desespero enquanto corria para alcançar qualquer tipo de colírio na caixa de remédios.
A mãe vinha correndo do outro lado, trazendo Ione aos prantos com a cabeça para baixo, como se quisesse entrar dentro do peito e por mais que se fizessem esforços para reajustar o pescoço da menina, nada adiantava.
Uma cena de terror e paranormalidade se mostrava diante dos olhos da família e da televisão, que testemunhava uma bizarrice, que somente ela poderia produzir.
Após duas semanas de agonia e infinitas visitas médicas, tanto os pais como as crianças estavam entrando na ideia de irreversibilidade daquele quadro. Ione com a cabeça grudada no peito e Telê com a vista negra, perdiam as esperanças de retorno à normalidade. Aquele era um dia de imensa tristeza na casa, pois além da desesperança com as crianças, o Brasil acabara de perder uma grande celebridade que a televisão havia gerado, criado, alimentado e agora, fazia todo um país chorar por ela, convidando cada qual para dividir um pouco do velório ao sofá.
O momento exigiu novamente uma reunião familiar em frente à televisão, pai e mãe viam Telê esforçando-se para decifrar luzes enquanto ouvia os sons televisivos, e Ione se contorcendo de lado para assistir a retrospectiva da celebridade junto aos pais. Tratava-se de um crime Bárbaro cometido sem escrúpulos, sem pena, sem motivos, como tantos outros noticiados durante as tardes televisivas. Os pais, mais uma vez, um após o outro, pronunciavam o lema da família: "Tudo é muito perigoso lá fora" enquanto afagavam os cabelos dos meninos.
Em um desses tristes afagos, a mãe notou que os cabelos de Ione haviam esbranquiçado de repente, e ao gritar de susto, viu Telê com os cabelos totalmente acinzentados. Já sem saber o que fazer, munidos com a descrença dos inúmeros diagnósticos médicos, resolveram procurar as emissoras de televisão.
Todas ofereceram ajuda e seguiram-se longos meses de convites para entrevistas, cafés da manhã com apresentadores e outros eventos. A história dos meninos emocionava outros telespectadores por todo o mundo e enquanto os meses se passavam, os sintomas tornavam-se cada vez mais bizarros. O primeiro filme sobre Ione e Telê foi produzido ao mesmo tempo em que a pele dos meninos se plastificava e o corpo começava a refletir luz de outros objetos.
O que antes era agradável aos olhos e causava comoção agora era agoniante e já não se aproximava da forma humana, causando por isso, ojeriza. Ione, já não se podia chama-la assim, foi adquirindo formato quadrado enquanto Telê, foi se retangulando dia após dia com uma velocidade espantosa. Os filmes sobre os gêmeos se multiplicavam, series foram produzidas, mas não mais haviam entrevistas com a família, nem mesmo ajuda aos meninos que padeciam pouco a pouco em sua agonia plastificada. A etapa mais dolorosa para os pais foi ver seus filhos perdendo a voz e se plasmando em uma mistura de cristal líquido. Sim, os filhos haviam se tornado televisores!
Por mais horrendo que isso possa parecer foi justamente isso que se passou. E o que também passou foram os anos, e seguia-se assim, a sala de estar com um sofá, uma televisão central e duas Tvs-filhos ou filhos-Tvs ao lado, compondo com certeza a família mais estranha a qual já se teve notícia.
Passada a dor desta presença e perda ao mesmo tempo, os pais de Telê e Ione resolveram que o natal daquele ano seria em sua casa, pois acreditavam que seus filhos-televisão sentiriam a seu modo uma presença agradável com a família reunida. Vieram os avós, tios e tias, primos, cunhados, amigos.
Era um dia especial e seria mesmo um dia para superações. Se aquilo tinha acontecido à família, algum motivo poderia se esconder por detrás, era o que dizia a vovó dos meninos. Devido a quantidade de crianças na casa e a consequente bagunça envolvida, um dos primos da família puniu as crianças exigindo que estas parassem de correr desembestadamente e se pusessem caladas para assistir televisão. O constrangimento foi geral quando uma das crianças disse que queria assistir Ione e outra disse que Telê devia estar estragado, pois nunca havia visto tão feia televisão.
A tristeza se abateu e até pensaram em deixar as crianças para fora por um tempo, mas logo alguém disse: "Tudo é muito perigoso lá fora".
As crianças, percebendo o peso que se lançara no local, ficaram caladas, uma ao lado da outra, sem saber ao certo se o que acontecia de ruim era culpa delas. A pequenininha do grupo estava no canto do sofá com um livro infantil nas mãos e perto de Ione quando sua mãe trouxe um lanche, composto por suco e torradas. A menininha, ainda sem manejo motor adequado, percebeu que tudo iria ao chão se ela mantivesse tudo aquilo em sua mão.
Deixou, então, o livro em cima de Ione e sentou-se novamente no sofá para comer suas torradas e tomar seu suquinho. O displicente livro deixado sobre Ione foi mudando a cor da televisão, rapidamente, e já com gritos e olhares perplexos, Ione  desplastificando a criatura televisiva que se tornara e resgatando os traços humanos, estralando  restos de cristal e plástico enquanto escorria um suor por entre sua renovada pele.
Mãe e pai bradando a volta de Ione e ela tentando manter o livro sobre si! Fato que ajudou os presentes a perceberem que o livro estava fazendo isso com a criatura. Puseram outros livros ao lado e o processo se acelerou de maneira brutal. Ione estava voltando a vida humana, enquanto Telê, rodeado de livros, começava a se desplastificar. Em uma hora, os garotos recebiam abraços apertados, emocionados e a impressa já estava no local quando o  milagre se deu por completo. Foi um momento glorioso para aquela família!
Hoje, eles podem sentar no sofá tranquilamente, ao lado dos filhos, de domingo a domingo, como qualquer outra família normal assistindo sua televisão, pois, é sempre bom lembrar que:
 "Tudo é muito perigoso lá fora"