O ator que vendia cachorro quente e o STF

Reclamildo chegou ao mundo espiritual fazendo o que fazia de pior, reclamar. Era o que mais fez enquanto no plano corpóreo, aliás.

O espírito que o acompanhava era um recém formado neste mister e estava ainda em treinamento. Mas o jovem não aguentou e foi até o superior daquela cidade, onde Reclamildo acabara de chegar, pedir auxilio. Pois nada que fazia para seu pupilo estava bom.

Sereno ouviu tudo por cerca de dez minutos e com um sorriso extremamente respeitoso, passando a mão direita na barba longa e ruiva, assim como seus cabelos, como se estivesse avaliando a situação, respondeu de supetão: vamos viajar, meu caro. Vocês dois precisam relaxar.

Reclamedio, que era o responsável pela adaptação de Reclamildo naquela cidade, arregalou os olhos, pois de fato Sereno era um pouco excêntrico, no vestir, no falar, no simples olhar. Na verdade seu olhar não tinha nada de simples, pois ele conseguia enxergar além das aparências. Ele enxergava o que queríamos esconder de nós mesmos, no recôndito de nossa alma.

Por isso tinha sempre a solução ideal para as aflições daqueles que o procuravam. E pulando da mesa na qual estava sentado, saiu correndo, puxando Reclamedio pelo braço.

- Mas diretor, diretor Sereno, aonde vamos. Precisamos de uma grande bagagem? - disse o jovem, aflito.

- Não se preocupe, meu jovem. Você já tem a bagagem que precisa para este lugar. Vamos apenas buscar seu pupilo. E num piscar de olhos lá estaremos.

E assim o fizeram. Logo estavam os três sobre um pais da América do Sul, onde habitava um povo que gostava de futebol e atalhos. Sempre que podiam pegam atalhos, mas invariavelmente eram enganados por sua ganância e empenho no menor esforço.

Reclamildo, que acabara de acordar, ainda de pijama, apoiava-se em Reclamedio e os três volitavam por entre as pessoas e as consequências de suas atitudes, que tinham formas das mais engraçadas as mais bizarras. Mas que estavam sempre ligadas aos seus criadores.

Algumas eram tão tristes de ver, que os dois mais jovens aprendizes olharam-se e depois olharam juntos para Sereno, que apenas sorriu e deixou desenrolar de sua barba um pergaminho, com inscrições que ardiam como o fogo. E que eram lidas com os ouvidos, pronunciando fortemente: "a cada um segundo suas obras."

Reclamildo e Reclamemedio não puderam conter algumas lágrimas.

Mas Sereno chegou onde queria, numa região fria, com um chão úmido. Onde a temperatura realmente incomodava os dois desprevenidos, que ao contrário de Sereno, não tinham agasalhos neste momento. Os dois se abraçavam fortemente, esquecendo até mesmo suas diferenças que eram grandes e que sempre causavam atritos entre ambos. Ou melhor seria dizer "suas semelhanças ".

Ali parecia um lugar de embriagados de todos os tipos de ilusões do mundo. Do sexo irresponsável, do pai que abandonou o filho e era perseguido pelas imagens da criança faminta e marginal ao poderoso. Os poderosos do mundo, os políticos rastejavam como répteis, com forma desses bichos, com a pele escamosa. Bebendo água suja e revirando o lixo em busca de comida, numa cena lamentável. Alguns usavam togas, deixando claro que foram desembargadores, que deveriam ser a bússola da justiça. Mas que traiaram o povo, cuja tutela lhes foi confiada.

- Mas, mas.. como, como.. - Reclamildo queria pronunciar o nome Dele em vão mais uma vez. Mas não conseguiu. E foi Reclamedio que terminou a frase:

- Como Ele permite tamanho sofrimento?

Sereno então colocou o dedo indicador na sua boca, para silencia- lo, ao mesmo tempo que com a outra mão como que atrai para o campo de visão dos dois o portão daquele lugar. Onde era possível ver uma sentinela com vestes romanas, uma mulher com uma venda nos olhos e uma balança numa das mãos e uma espada na outra.

Agora Sereno direcionava o olhar dos dois, aumentando imensamente a suas visões, de forma que não podiam entender. Mas conseguiam agora ver o interior de cada um ali presente. Viam a alma daqueles seres, como que cheia de lodo. E na região da cabeça, próximo a glândula pineal, a mesma imagem que viram no portão, a mesma sentinela em miniatura, mas tão imponente quanto a outra.

Foram então, não sem dor, compreendendo a grandeza do projeto que somos. Do destino que nos espera. Da tragédia que fazemos conosco mesmo pelo fato de não nos amarmos.

Foi quando então, na tentativa de não mais olhar, já com muitas lágrimas e chorando de soluçar, foram atraídos por uma pequena fagulha que tinha na região do coração de cada ser daquele lugar. Uma chama que os atraia e os acalmava, a medida que eles fixavam nela sua atenção. Uma chama de uma luz fantástica, de cores desconhecidas para nós. Que ia ficando imensa e tomando conta de todo aquele homem para o qual eles olhavam agora.

Mas o homem agora coberta pela chama que mais parecia uma fogueira não era mais um daqueles que habitavam aquele lugar. E nem o lugar era o mesmo. Estupefatos, perceberam que estavam agora numa linda praia, de uma areia de uma brancura jamais vista. Com águas que pareciam rejuvenescer quem nelas entrasse. E o homem, a Sereno ouviu a pergunta sem palavras de seus dois amigos de viagem. E não se fez de rogado:

- Este homem é um vendedor de cachorro-quente, que já teve fama, fez cinquenta novelas. Teve muito dinheiro, sem que esse o tivesse, e ajudou muita gente, sem fazer alarde. Que foi zombado quando fez a escolha de deixar tudo por um carrinho de lanches. Que usou o mundo como uma escola, sem fazer ninguém de degrau. Mas que soube deixar no mundo o que na verdade era apenas do mundo.