BRÁS CUBAS

Fui um dos últimos a sair daquela casa junto com a coleção dos bons clássicos da literatura brasileira, entre eles, Bernardo Guimarães, Aluísio Azevedo, José de Alencar, Visconde de Taunay, Raul Pompéia e outros notáveis que faziam parte do acervo do Dr. Leopoldo Constantino Pessoa, um homem instruído, discreto e singelo nas suas ações.

O conhecir quando ele entrou para a universidade, no auge dos seus 18 anos, seu pai me fez seu presente, lembro-me das suas palavras: - Filho, esse será o amigo, que estará sempre a sua espera. Naquela época, eu residia em um praticável junto aos seus cadernos, blocos e xerox da vida acadêmica, do futuro Bacharel em Direito. Meu amigo não era muito organizado, às vezes, eu ficava amontoado entre outros documentos, todavia, toda noite conversávamos sobre o mundo, líamos em silêncio, em um intervalo e outro ele parava a leitura para refletir sobre seu futuro: terminando advocacia, entraria para a vida pública, talvez fosse um promotor de justiça, delegado ou juiz.

Após o término da faculdade, Dr. Leopoldo casou, pensei que fôssemos nos separar e o meu destino viesse a ser a biblioteca pública da cidade, mas acabei sendo salvo com os demais colegas, entramos em uma caixa de papelão e seguimos viagem ao nosso novo lar.

Pôxa! Foram emocionantes as boas vindas, fiquei devidamente acomodado, junto com os meus colegas.Tínhamos uma grande estante de madeira rústica, me senti no século passado.

Apesar de não conversarmos mais como antigamente, de vez em quando ele me levava para a cabeceira da cama, lá eu terminava dormindo em cima do criado-mudo. Pela manhã, voltava para a estante.Meus colegas ficavam com um certo ciúme, por eu ser o preferido, contudo Dr. Leopoldo amava a todos, sempre foi amante de leitura.Talvez o motivo que nos uniu fosse o valor sentimental que seu pai deixou. Recordo muito bem quando o mesmo estava em seu leito de morte e disse: - Filho, cuide bem desse precioso amigo.

Durante o período que passamos juntos, dos 18 aos 98 anos de sua vida, vivi grandes emoções, ao seu lado, passei por diversos descartes em sua biblioteca, mas sobrevivi a todos; bem quase a todos.Sua família não tinha interesse em ficar com seu acervo particular, seus valores eram outros.Fui mandado embora! A casa onde habitei durante 80 anos foi vendida, os móveis avaliados para um antiaquário e nós novamente encaixotados, dessa vez sem endereço certo.

O filho do Dr. Leopoldo sugeriu que fôssemos para a casa do professor Domingos, um quase imortal, amigo da família, entretanto, Leopoldo Neto, um garoto de apenas 16 anos, retrucou: - Por que não doá-los para a Biblioteca Pública?Lá seriam de mais utilidade.Seu pai concordou de imediato, estava louco para se ver livre de nós. Fui o último a ser guardado na caixa, envolvido pelo aconchego da sabedoria, sem saber realmente qual seria o meu destino.

Ao chegar à Biblioteca Pública, permaneci alguns dias dentro da caixa, escutando os seguintes comentários: - esse vai para o acervo, esse para a circulante, esse para a referência, esse para o hospital.

Hospital? Para que? Da abertura da caixa eu vi outra com o seguinte destinatário: HOSPITAL DO CÂNCER: reciclagem.- Será que eu vou virar papel reciclado? Finalmente chegou o dia da minha caixa ser aberta. Envolvido por duas mãos belas e delicadas, fui analisado da seguinte forma: folhearam-me, leram minhas dedicatórias, folha de rosto, até meu colofão, então uma voz feminina falou: - Ele vai para o setor de obras raras.Obras raras? Senti-me importante. No setor destinado, a bibliotecária responsável cujo nome era Josefina, recebeu-me com todo carinho e um sorriso de felicidade.Passei por outra avaliação mais criteriosa e, no final, fui elogiado recebendo o título de livro raro.

Hoje completo 100 anos, desde a data da minha primeira reimpressão, com duas histórias de vida: a que eu nasci, conhecido como Memórias póstumas... e a que eu vivi...

Marcos Soares Mariá
Enviado por Marcos Soares Mariá em 24/10/2005
Reeditado em 26/10/2005
Código do texto: T62987