Traição

— Tomaram toda a cidade, chegarão ao palácio a qualquer minuto.

— Pegue todas as correspondências da última semana, isso não pode cair nas mãos deles.

— Já estão guardadas, acredito termos uns quinze minutos para chegarmos ao abrigo, e de lá poderemos chegar ao aeropor…

— Não seja idiota.

— Senhor, há a chance; podemos ao menos tentar?

Os dois homens estavam agitados. Guardavam em pastas de couro os papéis recolhidos das principais gavetas com agilidade impressionante. Duas malas aguardavam já prontas ao pé da porta do gabinete. Esta, entreaberta, permitia a passagem de um único facho de luz amarela vindo do corredor. A primeira figura estancou, séria, e mirou o rosto do funcionário.

— Elias, quero lhe pedir um favor — anunciou, grave. — Minha esposa e minhas filhas ainda não sabem o que está acontecendo. Deixei todos os funcionários da residência em alerta, mas não quis assustá-las.

— E o senhor quer que eu vá buscá-las? — solícito, o interlocutor se aprontou para partir à menor ordem.

— Não, você fica aqui. Entre em contato com a vigilância, peça para informá-las da situação e diga para deixarem o país por terra. Não as quero no ar.

— Agora mesmo, senhor — respondeu prontamente Elias, saindo veloz pela porta.

Tudo desmoronou muito rápido. As divergências com a oposição, ora contornadas com alguns agrados ministeriais, ora amenizadas com emendas parlamentares, agora chegavam às consequências finais da sede humana por poder. Por brigas de ideologias, jogaram o país novamente aos militares. Estes, sedentos, esperavam há muito a oportunidade certa para mais uma vez derrubar um presidente do Planalto, e finalmente a hora deles chegara, e de forma alguma eles a deixariam passar. O militarismo tem suas peculiaridades. Homens fardados dançam em volta do poder a festa inteira, sem sequer flertar com ele, sem absolutamente lhe dar atenção, fingindo lealdade ao status quo até o momento no qual tudo o que lhes interessa é se banhar dele e nele fazer afagos.

Olhou ao redor, girando em trezentos e sessenta graus dentro da sala, o gabinete quase lhe implorando veladamente para que ficasse, encarasse a luta como era de sua vontade. Mas ele não podia. Sabia ser impossível comprar esta batalha. Não por falta de força, jamais, nem por vontade de menos. Parte da população já se lançaram às ruas, inflamada a defender o mandato presidencial. Movimentos sociais balançavam as bandeiras nas principais avenidas do país, tratando a pele com os mimos dados pelas polícias estaduais, estas comandadas por quem há muito tempo se voltara contra ele. Seu próprio partido iniciara uma épica luta no Congresso barrando as milhares de exceções escusas abertas no ordenamento político-legal. Mas, se ele resistisse, jogaria o país numa guerra civil sem precedentes.

Elias voltou.

— Suas senhoras estão avisadas — falou de forma eficiente — Dentro de alguns minutos estarão dentro do avião.

— Do avião? — podia-se sentir a fúria dele preenchendo o cômodo. — Elias, eu dei ordens expressas para que elas não deixem o país voando. Ponha-me em contato com o motorista agora!

Sua voz saiu guturalmente da garganta. O funcionário quase tropeçou nas próprias pernas e disparou para fora do gabinete, certamente para corrigir a ordem passada adiante.

Não queria esperar. Foi até o telefone afixado na mesa e, de pé, discou o número da companheira.

— Meu amor — atendeu ela, a voz, embora altiva, embargada pela tensão. —, por favor, diga que está indo ao nosso encontro agora. Por favor!

— Helena, você bem sab…

— Não! Eu não sei de nada, Bernardo! Entre num carro agora e vamos embora desta merda de país — sibilou a mulher ao telefone.

Ele abaixou a cabeça, os dedos da mão esquerda alisando o encontro dos olhos com o nariz. Era difícil ganhar contra aquela explosão hormonal com quem passara mais de metade da sua vida. Amava-a, sem dúvidas, mas a forma com a qual ela o cobrava era um grande pedregulho nos calçados.

— Helena, meu amor — recomeçou — Você sabe que eu não posso fazer isso. Encontrarei vocês no nosso destino, são e salvo, mas eu não posso deixar o palácio vazio para quando estes imundos entrarem aqui. Alguém precisa enfrentá-los, Helena.

Falou com tanto ímpeto, tanta paixão, que pela primeira vez em trinta anos deixara a esposa sem palavras. Empertigou-se, apreciando uma rara vitória naquele dia depressivo, e se despediu da amada, lembrando-a de viajar pelas estradas e não pelo ar e tentando não transpassar ao telefone as lágrimas que lhe umedeciam a face; não conseguiu. Trocou algumas poucas palavras com as filhas, prometeu ficar bem, vivo e encontrar as três aonde quer que elas fossem e desligou o telefone. Enxugava o rosto e recuperava a compostura quando Elias irrompeu pela porta, mais uma vez.

— Chefe… — a voz trêmula e a expressão de medo deram a notícia por ele

Disparou pela porta do gabinete. Desceu pelas escadas de incêndio, dois degraus por vez, e entrou pelo hall do palácio com a elegância de um monarca. Homenzinhos em uniformes engraçados ocupavam toda a entrada do prédio oficial. À frente deles, um velho atarracado, de barriga protuberante e bigode negro como os olhos de besouro dava últimas instruções aos comandados.

— Não será necessário o uso da força aqui, rapazes — disse por sobre as cabeças raspadas. — Provavelmente não há mais ninguém na área, mas inspecionaremos tudo. É o começo de uma nova era e vocês são os pioneiros dela!

Ergueu com força o braço direito ao ar, esperando a mesma reação enérgica por parte da tropa, mas esta quedava-se paralisada. Olhavam por cima do velho general, e espantados encaravam a imagem do presidente entrando a passos largos no salão. Ele andava com altivez, nunca estivera tão seguro na vida. O terno vestia-lhe com perfeição de artesãos italianos, a gravata roxa dando um toque de casualidade ao visual. Era uma bela visão, a dos soldados boquiabertos olhando-o tão nervosos quanto Elias, que lhe seguia ao encalço. O general virou-se para ele e seu rosto ganhou uma forte coloração rubra. Claramente a presença do chefe de Estado no prédio o surpreendera.

— Você tem muita coragem de aparecer aqui hoje — cuspiu o militar por baixo da bigodeira.

— Coragem? — abriu um sorriso maléfico — E você por acaso sabe o significado disso?

— Senhor Presidente — o general buscava paciência nos recantos mais remotos da alma —, vamos fazer tudo da melhor forma, por favor. Todos aqui sabemos como vai acabar o dia de hoje, mas você ainda tem escolhas a fazer.

— Se vamos fazer tudo da melhor forma, General, retire seus homens do palácio. Agora! — acrescentou para a tropa, que se dividiu entre sair e esperar a ordem do seu comandante.

O militar acenou com a cabeça e todos os soldados marcharam em direção à saída. Apenas o Presidente, o general e Elias estavam agora dentro do prédio. O vazio da construção gerava ecos ruidosos, e os passos dos três rebombavam como marteladas pelas paredes. Dirigiam-se ao gabinete presidencial. Qualquer tratativa naquele momento seria feita de forma a deixar claro quem mandava naquele prédio. O presidente entrou na sala, deu a volta à mesa e sentou-se na cadeira de espaldar alto de couro preto. Talvez fosse a última oportunidade de fazê-lo. O general se acomodou na cadeira destinada às visitas, propositadamente menor. Quando Elias o fitou à espera de ordens, o presidente o dispensou com um aceno de cabeça.

— Quero fazer isto da melhor maneira possível, Bernardo — começou o general — Sua queda já é iminente, não há apoio de nenhuma instituição, e hoje as Forças Armadas cumprem seu destino constitucional.

— Destino constitucional, Hélio? — questionou, a indignação expressa no rosto apoiado à mão pelo queixo. — Um golpe militar é o destino das Forças Armadas?

— Não me venha com ideologias, até porque essas coisas que você acredita jogaram o país na merda.

— O país não está na merda e sabes bem disso. Não conseguirei evitar o que vieram fazer, mas dê o nome certo ao boi certo.

— Ok, tudo bem… É um golpe militar. Chegamos ao extremo da instituição e vamos tomar o país de assalto. Você não nos deixa outra escolha, Presidente — Conseguiu disfarçar a empolgação com uma voz entre o marasmo e o luto.

Bernardo fez cara de surpresa, arregalando os olhos.

— Não! Não creio — o falso desespero e a encenação agora faziam Hélio se mexer desconfortavelmente na cadeira. — Não me diga que as Forças Armadas estão aplicando um golpe!

— Para de fazer piada, porra. O momento é sério, você vai cair — pontuou o fim da frase com batidas na mesa.

— Eu sei que eu vou cair, Hélio — disse Bernardo, ríspido. — É óbvio que eu vou cair. Sua laia nojenta já preparou tudo desde o dia da minha posse. Era até engraçado te ver batendo continência para mim quando eu sabia que você só iria esperar um deslize meu para se apossar do poder. Muito bem, general, conseguiu. Mas cuidado, muito cuidado em quem você confia.

O olhar do Presidente atravessou a alma do general. Sem graça, o militar abaixou a cabeça e abanou as mãos como se espantasse uma mosca.

— Tá, tá — Hélio parecia extremamente incomodado com o diálogo, apesar de calmo — Se já sabe, vamos logo com isso — deu um sorriso — Temos um país para dirigir a partir de amanhã.

Bernardo também sorriu. Sabia desde o início do mandato que não o concluiria. Era gritante a fome de poder daqueles derrotados por ele nas urnas. Grande ao ponto de fazê-los se aliarem aos extremistas para derrubá-lo. Levantou-se pesadamente, abriu a primeira gaveta e dela tirou um maço de cigarros. Sabia da condição de fumante do militar, mas não ofereceu. Caminhou até a janela, de costas para a mesa, e acendeu. Deu longas tragadas, olhando a grama castigada pela seca lá fora, até ver uma imagem que lhe extinguiu a calma.

— General, a única coisa que você vai dirigir é a merda daquele tanque para fora do meu gramado.

— Esse tanque não vai sair dali enquanto não estiver com o presidente a bordo — sentenciou Hélio venenosamente. — Esse é seu veículo oficial ao exílio.

Bernardo virou-se para ele, e os dois se fitaram por longos segundos.

— Deve ser um fetiche seu de muito tempo, Hélio — falava sem despregar os olhos do rosto do militar —, sair comigo algemado do palácio. Por favor, contenha sua ereção, porque esse prazer eu não lhe darei.

— Como se você tivesse escolha… – riu-se o General.

— Só morto saio de algemas — a voz de Bernardo ecoou pelo gabinete.

— É só uma formalidade, presidente.

— Uma formalidade que não cumprirei.

— Tudo bem, sem algemas. Então saímos daqui, entramos no tanque…

— Tampouco entrarei naquele tanque.

— Como é?

— Não entrarei em tanque algum — Bernardo parecia mesmo decidido.

— Presidente… — Hélio se interrompeu, corrigindo — aliás, ex-presidente, deixa eu lhe explicar: não é você quem vai impôr o que quer ou não. Não tem mais uma pessoa, a não ser as putas que moram com você, que lhe deva obediência nesta nação. Esse veadinho do seu assessor pode até lamber tuas bolas, mas é por decisão dele, não por obrigação. Você está oficialmente destituído do cargo de Presidente da República.

O general se ergueu o quanto foi possível sem se levantar da cadeira. Bernardo voltou da janela e apoiou o braço no espaldar de sua poltrona. Olhava com desprezo do velho às vestes, e de volta para o velho.

— E serei substituído por você, suponho?

Hélio empertigou-se na cadeira. Obviamente, o orgulho enchera suas veias, pois estava inchado como um baiacu. Os botões da farda resistiam bravamente em segurar os dois lados do uniforme, enquanto a face redonda era preenchida com um sorriso.

— Não que seja da sua conta — era iminente que ele falaria —, mas, sim, eu serei o presidente até o fim do seu mandato. Com possibilidade de reeleição em pleito indireto — completou, radiante.

— Bom, não tenho outra coisa a fazer se não lhe parabenizar pela conquista. Claro, não é nada comparado a entrar por aquela porta — apontou a entrada do cômodo — empurrado por milhões de votos, com legitimidade dada pelo povo.

— Mas já é alguma coisa — acrescentou o general.

Bernardo concordou, rendendo-se e dando por encerrda a reunião. A última como líder da nação.

— Já é alguma coisa.

Pegou duas pastas de couro e mais alguns pertences da sala presidencial, além de uma das malas, e deixou o general abobalhado na sede do poder nacional. Anestesiado, não percebera a saída do Presidente destituído, e não se importou quando deu conta. Tudo estava previamente resolvido.

Bernardo encontrou Elias sentado ao sofá de espera, fora do gabinete. Este levantou e o seguiu no caminho até o estacionamento.

— E para o onde o senhor vai, senhor?

— Se pudesse, falaria, Elias. Eu mesmo não sei.

— Quer que eu dirija até lá?

— Não adianta, Elias, eu não sei onde é — estancou à entrada da garagem. — Muito obrigado por todos os serviços.

Os dois apertaram as mãos. Bernardo virou-se para seguir ao carro, mas Elias, nervoso e agitado, chamou-o.

— Presidente, preciso de uma carona. Por favor, não me deixe aqui com eles.

Bernardo olhou-o de cima a baixo. Com um suspiro, jogou a chave ao ex-funcionário.

Entraram no carro e deixaram o palácio, finalmente. Seguiram pela Esplanada dos Ministérios tomada por uniformes verdes, armas e cabeças de papel. Elias estava inquieto. Mexia no cinto a todo momento, como se algo ali o incomodasse. Olhava a todos os lados, os olhos não paravam em um lugar por mais de três segundos. Quando errou pela terceira vez a marcha, Bernardo, que o observava desde a partida do carro, interveio:

— Está tudo bem, Elias? — questionou segurando delicadamente o ombro do rapaz, que se sobressaltou.

— Tudo sim, Chefe. Só… só nervosismo mesmo. É, só nervosismo.

Bernardo continuou a fitá-lo. Tudo fazia sentido. Acendeu um cigarro e olhou pela janela. Prédios e mais prédios se sucediam na paisagem seca da capital. A poeira vermelha subia ao céu, enrubescendo o pôr do sol mais fantástico desde que assumira a presidência. Brasília tem seus encantos, de fato. Uma cidade erguida no meio do nada, às custas do sangue e do suor de milhões de brasileiros dos cantos mais diversos deste continente unido sob uma só bandeira. E no coração deste país, um aviãozinho de concreto, pressurizado na secura do cerrado, isolado como uma ilha de IDH astronômico e PIB europeu, dita os rumos políticos de mais de duzentos milhões. Na capital, sem dúvida, todo mundo tem um preço, e o que não falta são formas de pagamento.

— Quanto eles lhe ofereceram, Elias?

Elias ficou pálido.

— C-como, Chefe? — perguntou, trêmulo.

— Minha cabeça lhe rendeu uma boa aposentadoria, pelo menos?

Elias abaixou a cabeça, envergonhado, e, ainda em movimento pelo Eixo Monumental, tirou das costas da cintura um revólver prata. Bernardo acenou com a cabeça, resignado.

— Só me prometa não fazer mal à minha família — disse, altivo, penetrante.

— Nem se eu quisesse — Elias se virou para ele, os olhos injetados de dor. — Você fez um bom trabalho ao escondê-las.

— Faça o que tens de fazer, Elias.

— Foi uma honra, presidente.

Ouviu-se um estampido quando passaram a Rodoviária, e antes da Torre estava morto.