HAVERÁ UM FIM PARA A RECUSA? … AINDA RESTA O LUAR

Quando todos vão dormir

É mais fácil desistir.

Quando a noite está a chegar

É difícil não chorar.

In Tempo

Pedro Abrunhosa

O Luís era um miúdo. Um miúdo com ar tranquilo e de poucas falas. Um miúdo inundado por um grande sofrimento.

Podia contar pelos dedos as poucas palavras que me dirigia no início, quando ainda nem sequer se dignava a dar-me a mínima confiança. Depois aprendeu, progressivamente, a contestar-me, a provocar-me, a tentar irritar-me, a discutir, a fazer ouvir a sua voz discordante e o seu discurso querelante. Bendito programa de reabilitação que já pusera o Luís a falar! Que permitira que ele fosse capaz de discutir as questões da doença e da medicação e que, inclusivamente, lhe dera armas para contestar as prescrições médicas e o próprio rótulo que, algures no passado, um qualquer psiquiatra lhe colara ao corpo e lhe infiltrara na pele:

- Afinal, parece que estão todos convencidos que eu sou doente…

- E o Luís, o que é que pensa sobre esse assunto?

- O médico diz que eu sou esquizofrénico…

- Hum…

- Que esta história de ouvir vozes na minha cabeça é sintoma de uma doença crónica e que vou ter de fazer medicação para o resto da vida…

- Como os diabéticos ou os hipertensos…

- Já não bastava ter uma multidão na cabeça a dar-me ordens, a dizerem-me coisas horríveis e a não me deixar pensar sózinho…Vem aquele sacana dizer-me que agora tenho de sofrer ainda mais. Os gajos não percebem nada disto, não passamos de cobaias nas mãos deles. Acha que é porreiro ouvir que afinal sou a porra de um doente mental, daqueles que toda a gente foge e acha que são perigosos?! Quem é que estes tipos pensam que são?! Foda-se! Toda a gente vê na televisão gajos malucos a dar cabo do canastro às famílias e aos vizinhos. Acha que é bom saber que pertenço a esse lote de gente criminosa e nojenta?!

- Nem todos os doentes mentais são iguais, Luís…nem todos são agressivos ou cometem actos criminosos… O mais provável é que isso aconteça com aqueles que não tomam medicação e…

- E o que é que isso interessa?! Tente lá dizer isso aos gajos lá fora! Vocês estão a tentar meter-me um rótulo que eu não quero, caraças!!!

- Não vejo escrito na sua testa que tem uma esquizofrenia, Luís. As outras pessoas só vão notar isso se você lhes disser ou lhes der razão para desconfiarem.

- Claro! Para si é tudo muito fácil! Gostava de ver se era tudo assim tão fácil se tivesse esta merda…

- Não tenho, Luís, é verdade que não tenho, mas deixe-me dizer-lhe que compreendo e aceito essa sua revolta. Também me custaria muito aceitar o facto de ter uma doença crónica e percebo aquilo por que está a passar neste momento. Acredito que não seja nada fácil, Luís…

- O caraças é que você percebe! Você tem o seu emprego, a sua casa, é casada, tem filhos, tem amigos…Como é que acha que eu me sinto ao saber que nunca vou ter uma vida normal como a sua ou de outros tantos gajos que andam para aí e que até nem mereciam!?

- Está convencido que não pode ter uma vida normal e saudável porque tem uma esquizofrenia…

- Era preciso uma grande lata para me vir tentar convencer do contrário…

- Sabe Luís, os meus amigos costumam dizer que com tanta lata eu deveria abrir um ferro-velho, mas quando lhe digo que sim, que é de facto possível ter uma vida normal e saudável como qualquer outra pessoa sem doenças crónicas, não estou a tentar enganá-lo. Que poderia eu ganhar com isso?

- Nada…

- Nem mais. Aos poucos vai entender porque lhe digo que é possível e vai conhecer colegas seus que já passaram pela fase em que está agora, de descrédito e falta de confiança no futuro. Esses colegas, Luís, concluiram que a esperança é a última coisa a morrer, como diz o povo, e conseguiram construir uma felicidade à sua medida. Você não é mais, nem menos do que eles. Também irá conseguir! Tem imensa gente à sua volta para o apoiar em tudo o que for necessário. Nós vamos estar aqui sempre que precisar.

- Pois. Mas eu é que vou ter sempre esta merda a estragar-me a vida.

- Essa merda, como diz Luís, só vai estragar aquilo que você deixar e eu acredito que você é suficientemente inteligente e que tem o bom senso necessário para que nada se estrague. A sua vida vai ser aquilo que você quiser fazer dela, não tenho dúvidas. Era importante que você também acreditasse nisso. Talvez um dia destes seja capaz.

Se foi capaz! Estava muito melhor, dizia-se nas reuiões de equipa, com pequenos sorrisos de satisfação. Aumentara a consciência da doença, aceitava a medicação que cumpria agora escrupulosamente, estava mais sociável, menos querelante, sorria e dizia piadas que faziam rir quem o ouvia,…Sim, sim, estava-se a progredir. Era óptimo tê-lo nos grupos de medicação e nos grupos educacionais onde dissecávamos a doença e os medicamentos, onde se falava de porquês, de culpa, de revolta, de desânimo, de raiva, de desistência, de esperança numa cura longínqua. Supercontrolado, o Luís revelava-se um acérrimo defensor da medicação como base para ter uma vida saudável e explicava o mecanismo da dopamina como ninguém:

- Pá! Isto não passa de uma doença crónica. Só morremos disto se quisermos. E só não temos o que todos os outros têm se também não quisermos. Isto é físico, mas não se vê. É assim: nós temos um defeito no cérebro que faz com que o neurotransmissor dopamina… pá! é uma substância qualquer que existe no sistema nervoso e que transmite a informação de umas células para as outras, não sei explicar muito bem… pronto! esta gaja, a dopamina, acumula-se no cérebro e faz com que a gente oiça vozes, veja coisas que não existem, tenha a mania da perseguição e de que toda a gente nos quer fazer mal e viva num mundo à parte. Os medicamentos, os neurolépticos, servem para pôr essa sacaninha a funcionar como deve ser. Se os tomarmos não temos sintomas e ninguém percebe que somos doentes. Anima-te, meu! É melhor do que ser cego ou coxo, pá!

Fixe! Científico ou não, completamente correcto ou nem por isso, quem melhor para esclarecer os doentes internados do que alguém que lhes era semelhante e que falava a mesma linguagem?! A um sujeito com a mesma doença e as mesmas dificuldades não é possível responder que fala do que não sabe e que se baseia apenas no conhecimento dos livros e na experiência dos outros, pois não?!. Claro que havia sempre alguém que contestava e duvidava dessas explicações que nem sempre compreendia na íntegra. Nessas alturas o Luís enfurecia-se:

- Olha pá! Tu é que sabes. Se achas que estou a endrominar-te o problema é teu. A vida é tua, és adulto e vacinado, faz o que quiseres. Mas digo-te que fazes muito mal e que era melhor começares a acreditar nas pessoas que já passaram pela experiência de também não acreditar e deram com os burros na água, que é como quem diz, foram parar ao internamento. Se é isso que tu queres, está à vontade. Depois vou lá visitar-te! E digo-te mais: és parvo se não acreditas nas enfermeiras e nos técnicos, porque eles não são doentes, mas já viram muita coisa! Olha, viram já muitos parvos como tu e eu que não quiseram acreditar e se arrependeram. Bem, há sempre quem nunca aprenda! Se calhar és um deles e vais ter de passar pelo internamento para aprender!

Delicioso! Tudo corria muito bem. A consciência da doença era uma realidade e a necessidade da medicação para a manter controlada já não se discutia. O Luís acreditava, finalmente, no que os técnicos envolvidos no seu Programa de Reabilitação acreditavam: que ele era uma pessoa com imensas capacidades e recursos de que poderia tirar o melhor partido se cumprisse as regras básicas relacionadas com a adesão à medicação e à consulta do seu psiquiatra assistente. Começava-se agora a planear o futuro: que projectos, que sonhos, que vontades…Gostaria de fazer uma formação, eventualmente, na área da informática, mas estava aberto a outras hipóteses ou possibilidades.

Os técnicos começaram a mobilizar-se no sentido de ajudar o Luís e desenvolveram-se imensos contactos com o Centro de Emprego e outras instituições de apoio ao emprego e à formação profissional. A desejada formação tardava a conseguir-se. O Luís estava a passar por uma fase de descrédito que a família fomentava, apesar das entrevistas familiares em que se falava não apenas dos sintomas da doença do Luís, mas também das suas inúmeras capacidades:

- Os meus pais acham que estamos a perder tempo. Dizem que eu nunca vou ser capaz de trabalhar. Para eles não passo de um grande preguiçoso e continuam a não acreditar que estou doente.

- Sabe Luís, é verdade que muitos dos seus colegas usam a desculpa de serem doentes para não terem de fazer nada, mas não é esse o seu caso. Eu sei que esta procura está a demorar mais tempo do que aquele que todos gostaríamos, mas você compreende que conseguir encontrar um curso que você não tenha de pagar não é fácil

- Não sei se consigo aguentar muito mais tempo. Ainda me passo com eles.

E passou-se mesmo. No fim de semana imediatamente a seguir. Mas não com eles…Na segunda-feira chegámos ao serviço e a família telefonou. Não sabiam do Luís desde a noite de sexta-feira. Tinha chegado a casa, como habitualmente, por volta das 17 horas, depois de mais um dia em que estivera igual ao novo Luís. Ele e o pai discutiram e ele saiu, levando consigo uns cortinados velhos. Não dera notícias durante todo o fim de semana.

- Deve concerteza ter ficado em casa de algum amigo, mas hoje vai direitinho para aí.

Tranquilizámos a família, garantindo que, assim que ele aparecesse na Unidade de Dia, os contactaríamos. Sabíamos que o Luís nos procuraria para pedir apoio, caso estivesse com problemas. Mas o Luís não apareceu durante toda a manhã. E começámos a preocupar-nos. Se o Luís estava com problemas e não recorrera a nós, então, algo de muito grave se tinha passado. A única que conseguiu dizer a palavra proibida foi a enfermeira Susana: suicídio. Mas não, nem pensar! O Luís estava tão bem. Saiu daqui na sexta-feira bem disposto e confiante. Está a fazer tantos planos para o futuro. Não acreditamos. Não é possível!

Passou a tarde. Passou a manhã. Passou a tarde. E novamente passaram a manhã e a tarde. A família já contactara a polícia e estava montada uma verdadeira caça ao homem desaparecido. Não conseguíamos pensar em quase nada. A enfermeira Susana insistia no veredicto: suicídio. Se o Luís não vem ter connosco, então é porque se suicidou. Mas que parvoíce! Que insistência! Podia haver outras hipóteses!

Ao quinto dia de desaparecimento a família voltou a telefonar: tinha-se, finalmente, encontrado o Luís. Alguém havia dado com ele e com os cortinados desaparecidos que usara para se enforcar numa árvore de Monsanto. Morrera sozinho, como todos os suicidas, mesmo como os que morrem acompanhados. Morrera sozinho em castigo ou para castigar? A história dos seus últimos momentos é algo que nunca saberemos e que para sempre irá ficar guardada no silêncio de Monsanto. O Luís, os cortinados e a árvore escolhida. Meticuloso, friamente desesperado, vazio, sem esperança… Os cortinados e a árvore. O Luís. Sozinho. O desespero e a angústia são como um copo em que se vai, distraidamente, vertendo um líquido: quando nos apercebemos, já transbordou e alagou tudo em volta. No copo do Luís já não cabia mais nada e tanto líquido já lhe encharcara a roupa, os ossos, a mente, as mãos e a alma.

Bem vistas as coisas, até acho que o cabelo do Luís lhe dava um certo charme. Naquela altura usava-o um pouco mais comprido e ao que parecia o pai andava a persegui-lo para que o cortasse. Nesse dia o ataque cerrado começara mal ele tinha chegado a casa, vindo da Unidade de Dia. Discutiram. O irmão e a mãe não o defenderam, pelo contrário: aquele cabelo dava-lhe um ar de marginal e naquela casa não se aceitava tal gente. E o copo transbordou. E saiu com os cortinados velhos para se encontrar com uma árvore de Monsanto. E nunca mais o vimos.

Às vezes faço as perguntas que nos ficaram... Será que foi um impulso que no último segundo ele já não conseguiu controlar?! Será que se ele pudesse voltar atrás teria procedido do mesmo modo? Será que poderíamos ter feito mais alguma coisa para o ajudar? Que alternativas lhe poderíamos ter oferecido para o sofrimento? Será que poderíamos ter impedido o seu ritual de escuridão?

Não sei se nessa noite houve luar…

Isabel Afonso
Enviado por Isabel Afonso em 30/04/2018
Código do texto: T6323540
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