Olhares, Momentos e Movimentos - 1

Olhares, Momentos e Movimentos - 1

Hoje voltava de ônibus para casa, sentada naquele banco alto lá na frente. Estava distraída olhando pela janela, quando senti alguém sentar ao meu lado. Olhei discretamente para meu companheiro de viagem e vi um rapaz. Ele usava uma bengala e uma perna mecânica.

Estava agitado, fazendo movimentos circulares sobre a calça jeans, e sua fronte suava. Desviei o olhar e ele disse :

- Olha, não se assuste não porque eu só estou tentando apertar o parafuso da minha perna.

- Foi isso o que eu pensei, respondi .

- Imagina que tem pessoas que precisam apertar os parafusos da cabeça ! Eu só aperto o da perna !, disse sorrindo.

- Menos mal !, respondi , já sorrindo também.

Nesse instante, pela porta da frente, entra um senhor idoso usando uma bengala com muita dificuldade, e o rapaz da perna mecânica se apressa em ajudá-lo . Uma senhora que estava sentada na cadeirinha solitária cedeu seu lugar para este senhor. O rapaz o ajudou a se acomodar no assento, e iniciou o diálogo, muito simpático:

- Pronto, agora está tudo bem. De bengala para bengala !

- Sabe que o outro motorista não parou quando me viu assim ?

- É assim mesmo. Não liga para isso não ! É normal.

- Pois é... hoje sou eu que estou assim , amanhã pode ser ele ...

- Mas é melhor que não seja ninguém, não é ? E isso é por conta do amigo lá em cima.

- Ë, pode ser. Tomara que ele anote tudo ! A minha esposa ficou 15 anos internada com paralisia infantil, e foi muito tempo, e....

- Pois é , eu sei, as pessoas só sentem o que acontece com elas. Mas não se preocupe com isso, amigo.

Observei melhor o rapaz, que dava atenção ao velho, e lhe passava mensagens de otimismo, embora estivesse ainda aflito com o parafuso que não conseguia apertar. Então intervi:

- Desculpe, mas se você levantar a perna da calça não fica mais fácil ?

- Ë isso que eu vou fazer. Segura a minha bengala ?

- Claro.

- Imediatamente ele arregaçou a calça, retirou uma chave de fenda da bolsa e começou a apertar o parafuso. Insistiu várias vezes sem resultado. Então eu disse :

- Está com problemas ?

- Sim, eu perdi um outro parafusinho que fica ao lado deste e que o mantém apertado. Não estou conseguindo resolver.

- Que tal se você o prendesse com uma fita cola, ou um esparadrapo, talvez. Evitaria que o parafuso se soltasse.

- Não é que você me deu uma boa idéia ? Vou fazer agora.

Imediatamente retirou um rolo de esparadrapo da bolsa, rasgou um pedaço e prendeu o teimoso parafuso. Não pude evitar o comentário:

- Puxa, você anda bem equipado, hein ?

Então sugeri quer ele colocasse mais um pedaço de esparadrapo no sentido contrário, para dar mais segurança. E ele assim o fez. Disse-lhe que nessas ocasiões é sempre bom usar a criatividade. Ele concordou sorridente .

Terminada a "operação parafuso ", a senhora que havia cedido lugar ao velho de bengala avisou.;

- Você vai saltar no próximo ponto.

Devolvi sua bengala, ele a pegou e me estendeu a outra mão. Também estendi a minha mão, com um certo espanto, ele a beijou com extrema delicadeza , sorriu um sorriso iluminado, disse "tchau" e levantou.

Fiquei sem reação, disse apenas um "boa sorte " e fiquei observando.

Ele pediu muito educadamente que o motorista parasse no ponto, e desceu agilmente do ônibus. O velho da bengala desceu logo atrás, ainda se lamuriando ..

O ônibus partiu , e eu fiquei olhando pela janela a expressão do velho, carrancuda, séria e infeliz. Mais à frente ia o rapaz, andando da melhor forma que a prótese lhe permitia, cabeça erguida, olhar brilhante.

Então fiquei pensando ... Aí vão duas almas : uma que não alimenta rancores, e por isso , flutua livre e leve. Outra dolorida, corroída pela amargura. Arrasta-se pesadamente pela vida. Sentem a mesma dor, mas reagem de formas distintas.

De repente o rapaz viu que eu o observava, sorriu um sorriso lindo e acenou para mim.

Eu também sorri. Também acenei. Fiquei olhando para ele até onde o movimento do ônibus permitiu.

Depois chorei.

Claudia Gadini

8/7/1998