Conto para Meu Pai - 1

Conto para Meu Pai - 1

Ontem contabilizei quatorze anos de sua ausência.

Procurei levar meu dia com naturalidade, mas lágrimas

insistentes ameaçavam lançar-se dos meus olhos que ardiam

de tristeza.

E eu fugindo da minha memória detalhista, fotográfica, holográfica. Memória mais que cruel,essa, que sequer me poupa das sensações dos passados mais longínquos.

Memória que materializa meu pai novamente , a me olhar doce, carinhoso, protetor. E depois sorri um sorriso maroto, afasta os móveis do centro da sala, encostando todos nas paredes.

E me convida para dançar. Vamos da valsa ao puladinho, gafieira rasgada . Rodopiávamos às gargalhadas.

A música alta que ouço até hoje me fere contundente.

Quase não danço mais.

Vejo sua concentração ao preparar meu refresco diário na hora do almoço. Uma parte de vinho e três de água gelada. E açúcar. E gelo. Essa herança docemente etílica da velha

Toscana, onde as crianças eram criadas com vinho.

Que proporcionava saúde, sangue forte, bochechas vermelhas.

Soninho tranquilo...

Nossos passeios na praia, e o perigo que passamos juntos. Eu distraída, boiando.

Já após a rebentação e muito longe da areia. A correnteza me levando. Olhava para a praia e as pessoas pareciam

formiguinhas, de tão longe que estavam.

Em pouco tempo localizei sua silhueta, o gigante se

atirando decidido nas ondas. Por mim. Estava

tranquila, sabia que ele, e só ele viria. Estranho, isso. Nunca senti pânico nos momentos mais assustadores e definivamente perigosos pelos quais já passei.

Por causa dele, que chegou até mim já arfando.

O grande nadador estava ficando cansado. Meu amado pai já não tinha o mesmo fôlego de antes, dos tempos de atleta e jogador do América.

Ele se colocou atrás de mim, servindo de " parede " para que eu pudesse dar impulso e atravessar a corrente que nos

arrastava para longe. E contava então com onze anos de

idade, e nadava muito bem.

Na terceira tentativa, consegui. Olhei para trás e percebi seus gestos, me dizendo que nadasse até a praia. Mas seu

esforço de me lançar para a vida o empurrou mais longe, para a parte mais forte da correnteza, que começou a

levá-lo rapidamente.

Fiquei parada, gritando para que ele lutasse contra a

a for;ca do mar, como já havia visto tantas vezes.

Mas ele não conseguia mais. Estava exausto.

Disse que não voltava sem ele, que respondeu com gritos imperiosos. - " Volte agora. Eu estou mandando ! " Mas vi em seu olhar uma ponta de tristeza,um breve aceno de adeus...

Olhei então longamenta para a areia que já quase não via. Calculando a distância.

Sabia que conseguiria chegar lá. E estaria salva.

Então comecei a dar fortes e decididas braçadas ... na

direção de meu pai, que ficou perplexo com essa atitude

Brigou muito comigo, mas em seus olhos agora brilhava uma

luz de profundo amor .

Disse a ele : -" Pai, eu só saio daqui com você. Não tem jeito. Se você ficar, eu fico também. Somos uma equipe, lembra ? ". Então ele me olhou calado, reunindo as poucas forças que lhe restavam.

E empreendemos um retorno estratégico, nos deixando levar

pela correnteza até um determinado ponto onde ela se estreitaria, e nos daria uma chance de atravessar. E assim

o fizemos, sendo arrastados por cerca de 7 kilômetros.

Estavamos em Paz. Tínhamos um ao outro. Não havia medo.

Conseguimos encontrar o "portal" do mar, nosssa janela para a vida. Voltamos bem devagar, sem ansiedade, poupando a pouca energia que nos restava. No caminho conversávamos naturalmente. Parávamos de vez enquanto para descansar, boiando. Flutuando...

Hoje imagino que ele sentia a mesma Paz.

A mesma confiança. O mesmo elo indestrutível que nos

uniria infinitamente.

Quando chegamos ao local de origem na areia, encontramos muita confusão. Salva-vidas e banhistas de binócuculos, ambulância a postos. Minha mãe e irmão chorando muito, a pequena multidão que se formou.

E como não podíamos deixar escapar uma chance daquelas, fizemos cara de curiosos e perguntamos aos salva-vidas, com um ar bem sério :

- " Afinal, o que vocês estão procurando ? Não tem ninguém na água. O mar está muito forte hoje."

- " Um pai e sua filha que se afogaram. Não chegamos a tempo de resgatá-los. E tristemente os perdemos ".

- "Ha, ha ha... ! Estão perdendo é seu tempo, porque os

afogados somos nós aqui!

Nesse momento minha mãe nos viu e correu para nos abraçar. O salva-vidas ficou abismado pelo fato de termos conseguido

sair do mar bravio. E mais ainda pelo nosso bom-humor.

E no fundo achamos muita graça daquele aparato todo.

Meu Deus, será que ninguém percebia que juntos sempre

seríamos indestrutíveis ?

Hoje ele não está aqui. E sempre me afogo no mar salgado que verte de meu olhar. Estou há muito tempo assim, à deriva, esperando...

Tal qual uma Penélope pós-moderna e seu eterno bordado,

montando um interminável caleidoscópio com estilhaços de

meu coração.

De quando em quando encontro um pedacinho por aí...

Claudia Gadini

26/04/05