VAZIO - parte 2

O bip do aparelho de frequência cardíaca sinalizava

irritantemente Cristina. A moça sentia fortes dores de

cabeça desde seu repentino desmaio no aeroporto.

Sem lembrar do que vira e ouvira, a jovem tinha guardado

apenas a lembrança da infame maleta, a qual perseguia seus

pensamentos feito um predador em busca de uma presa.

Cristina quando abria os olhos tonteava, os sons ficaram

excessivamente agudos, ou excepcionalmente baixos. Nas semanas

que passou no hospital, ela recebera inúmeras visitas de especialistas.

Visitas à sala de tomografia eram sua sina. Idas e vindas a fim de

descobrir o que sucedera para que desmaiasse antes da viagem que

fora marcada há meses.

Rodolfo, o noivo, visitava sua companheira todos os dias. Todos os dias

um arranjo de flores. O rapaz não poupava recursos para manter o quarto de Cristina bem floreado.

O filho do empresário do ramo de transportes não recuaria até que

sua futura esposa estivesse bem novamente.

Caro leitor, talvez haja algum estranhamento em relação à leitura, digo,

às informações que nela se contém. Isso é, algo além de minha compreensão, enquanto narro os fatos dessa vida, também fogem de mim as lembranças, correm de mim como a tênue passagem temporal de nossas vidas. Perdoe-me por isto, tentarei o melhor para finalizá-la adequadamente.

No final de semana, domingo, Cristina acordou num repente como se uma corrente elétrica lhe percorresse por todo o corpo. Energizada, uma voz dentro da consciência voltou a falar. Novas ordens e direções também apareceram frente aos olhos da mente.

Parcialmente a moça lembrou do encontro estranho no aeroporto.

O noivo dela a viu acordada e sem embaraços a abraçou. Cristina o evitou porque não lembrara dele. Quem era o estranho?

Com uma sensação acuada, a jovem se encolheu feito animal indefeso. Ela não gritou, mas arrancou numa única puxada todos os fios e agulhas. A cabeça doía e as vistas enxergavam com nebulosidade.

Logo, o quarto foi ofuscado por um intenso brilho que se mesclava com sombras, muitas delas. A temperatura caiu e a expiração formava uma leve fumaça que saia de suas narinas delgadas. O interessante é que o corpo dela não sentia que fazia dez graus negativos.

A menina caminhou por aquele lugar estranho, mas familiar, inóspito, mas atraente. De certa forma, Cristina sentia que estivera naquele canto, naquela sala. Como sabia que era uma sala? A voz, sim a voz, leitor. A voz conduzia seus passos.

Uma figura masculina, senil, apareceu diante dela. É você, Deus? A moça perguntou. O silêncio a respondeu com morbidade típica a ele. Uma fina chuva prateada descia naquele momento de encontro com o homem.

Aquele ser se movia levemente como quem dança balé, a cada movimento de seus pés em sua direção a fazia tremer.

Era um ancião do mundo, da existência.

Quem diria, quem diria. Eis a fala, única.

Cristina sentiu desprezo por ouvir tal voz, não compreendia o porquê.

Apenas repugnância lhe preenchia o ser. Como fumaça que desaparece no vento, o velho sumiu no ar.

Tomada por uma insana vontade de caminhar, Cristina tentou tatear algo em baixo dela como quem procura alguma porta. Foi aí que a moça foi arrebatada por tremendo susto. Abaixo dela estava toda a cidade com todas suas avenidas e ruas, tal como um corpo e suas veias, veias luminosas. Centenas de milhares de metros no ar.

Não desesperada, Cristina percebeu que não era prisioneira. Ela flutuou por horas e horas. Cansada disso, ela pensou na mãe e no pai, se é que a existência de ambos era real. Ou tudo não passara de um sonho?

Uma luz forte se moveu em sua direção outra vez, era, dessa vez, uma mulher. Cristina sabia quem era. Era ela, era ela. A mulher do aeroporto. De longos cabelos negros, baixinha, rosto redondo e negra, a mulher

cantou alguma coisa numa língua muito velha, misteriosa.

Era o canto do recomeço, da fênix, do fogo, das cinzas. Era a música do vazio. Estava na hora de iniciar uma nova vida. Vazio.

Cristina compreendia cada verso daquela canção, som que lhe preencheu a alma, o coração. Sentiu-se afavelmente quente. Depois, a mulher sem nome deu lugar a luz, luz que a fez retornar para

o quarto do hospital.

Ela se viu cercada de uma equipe médica. O desfibrilador fazia o agudo

som da carga elétrica. Rodolfo chorava no canto da sala.

Ela está bem, ela está bem. Diziam.

Todos se alegraram, riram, aliviaram da tensão. Exceto Cristina e Rodolfo, que ao olhar sua noiva não a reconhecia. Quem seria aquela estranha?