OUTRA DESDÊMONA?!...

1---Chovera muito, escoadouros entupidos e a rua ficou cheia de água e detritos. Aprendera com a tia-avó, que em tempo de menininha antiga brincava com jornal velho - recortar, intercalados, meninos e meninas de mãos dadas; nem sabiam o que era origâmi (ori-dobrar + gami-papel), tradicional milenar técnica japonesa de dobradura de papel, e assim ELA mesma - casada e eterna criança bem acima de vinte anos de idade - ensinara a garotada da rua a fazer barquinhos de jornal, após a tempestade, pedaços menores dobrados, maiores colados, ah, no balanço das ondas do escoamento nada rápido... - gôndolas (com ou sem serenata) não sabia fazer. Prometeu a eles pesquisar em site veneziano. Por acaso, o botequim pé-sujo vendia doce de batata numa canoinha ovalada em molenga papel-metal: "Serve", disse um deles. Riram muito, e ELA sentenciou sem entenderem muito bem: "Rir ainda é o melhor remédio. Humor é coisa séria." Duas semanas e esta enchente parecia esquecida. Ou apenas refugiada num arquivinho do cérebro? --- Na manhã de sábado, iria dar um passeio a três num experimental carro aberto, cor lilás, criação de CÁSSIO, mecânico íntimo de RAGNAR, ex-tenente que espontaneamente trocara de profissão sem pretensões ao ponto máximo na hierarquia das forças armadas. "Tá quente ou tá friozinho???" Espaço para o vintage, safra de outros tempos: escolheu um modelo talar (entre sacerdotal da antiga Roma e acadêmico em formaturas) um só colorido, a veste indo até aos calcanhares, super decote, na cintura uma espécie de corda dourada. Procurou um lenço fino, bonito e curto para charme na foto do celular (LÚCIA MARIA, signo de ar), porém lembrou da bailarina moderna reformista ISADORA DUNCAN - também geminiana... -, morte nada convencional em acidente de carro conversível, quando a longa echarpe prendeu-se numa das rodas e a estrangulou; assustou-com a possível premonição e desistiu. Bom, em todo caso, tirou-o da gaveta e amarrou frouxamente no pulso esquerdo, porque gente instável (bipolar é 'outra' coisa, até comportamento bastante grave) muda de ideia a cada minuto... Passeio circular e muito cansativo. Para o Gigante de casa, literato amador (ELE inventa lindas frases de amor após receber colheradas de sorvete na boca ou /contraste!.../ se a casa estiver perfumada com sândalo inspirador), ariano, signo de fogo, "nada ciumento", palavras dele, passara a véspera inteira sentada ante o notebook, pesquisando fragmentos do bardo britânico, íntimo "WILLIANZINHO, sem interesse específico sobre nenhum. Amores antigos de séculos remotíssimos... (Como foi a estória da história? Como novidade, gostou de "Ricardo II", homem honrado, mas de temperamento difícil, destronado pelo primo (impeachment?!), depois preso e enforcado: morreu, tadinho, dizendo-se vítima de um golpe!!!). Rádio de carro, samba, perfeito e feliz encontro musical de África e Brasil, música na tormenta do cansaço. O trajeto começara na porta de casa, perto da pracinha e da padaria de esquina, o giornalaio da calçada, sempre suspiroso como um PETRARCA ou um ALIGHIERI, dera um adeusinho descompromissado... No carro sem capota, após desfilarem por muitos bairros, piscou atordoada, olhos quase fechando, mistura de cansaço e tédio. Cumprimentara pessoas conhecidas e desconhecidas /explicou não ter pretensão política/ pelo caminho a quem entregara prospectos da oficina de carros. Olhos semicerrados. Sono e fome agora!

2---Na porta de casa, ciclo encerrado, banca de jornais já fechada, PAOLO os esperava com m belo 'rosso' (vinho tinto) contrariamente gelado, rocambole da padaria e sorvete de amêndoas mediterrâneas e leite de cabra montanhosa, tudo junto e (vamos mudar?)... mixado... lanche multisaboroso - parentes dele enviaram o "gelato" caseiro por avião com freezer. Entraram juntas as quatro pessoas (ou personagens?), mulher-marido-mecânico-giornalaio, e ELA os serviu em copo de vidro, um de cada cor - para a 'principessa', lilás, que depois o mecânico criativo desejou e a dona da casa aceitou a merecida troca, o dela agora azul-céu, cor do amor e da paz. Teve um tremor interno: dando um pedaço de si mesma? Ambiente calmo. Não chamou o jovem IAGO, adorador de Baco, da casa ao lado, que a moça achava um tipinho maligno, diabólico, manhoso e invejoso - porta sem trancar, o cara penetrou, cochichou alguma coisa rápida ao ouvido de RAGNAR (nítido jogo de intrigas), não esperou resposta e imediatamente foi embora, enquanto quase ao mesmo tempo o neo inventor tirava do bolso o lenço que encontrara no chão do carro. Doutor pensou: "EU mesmo arranjei um namorado para minha mulher? Onde, como e desde quando?" Marido 'não' ciumento, mas zeloso com quem casara, fundiu/confundiu os dois rostos masculinos e não conseguiu o ponto certo da mira: o ex-tenente? o jornaleiro-advogado? "Um ou dois amantes? A duplicidade geminiana?" Primeiro a justiçaria, depois os cafajestes! O ser humano é uma graça, muitas vezes uma desgraça repentina. E, na presença dos dois amigos (ou 'ex'?), inesperado gesto atro, lúgubre, pleno de ódio, covardia e sem escrúpulo algum, estrangulou-a com o tal lenço, presente de sete anos antes... início do encantamento mútuo......... IAGO, interrogado pelo policial de plantão na mesma famosa esquina, justificou-se: "Eu só vim pedir emprestado um filme da coleção dele, "Les amants", seu RAGNAR fala 'vetusto', para mim é 'velhão' de 1958, premiado em Veneza........" Mas já era muito tarde na vida real! "Inês II morta!" Não, EU-narrador errei, "Desdêmona II" /em verdade, LÚCIA MARIA/, caida ao chão.

3---Acordou aos gritos, dentro do carro vitorioso (conseguiram cinco, em promessa de compra e venda ou reforma), assustada, trêmula e chorosa, resmungando "Io te amo! My love... Ich liebe Dich!... Ah, marido, EU te amo tanto...", sob a gargalhada do marido e do mecânico, toda caída sobre o peito do protetor Gigante, muita dor no pescoço. Recusou-se a contar o que sonhara.

4---Frases consoladoras: "Quem possui a faculdade de ver a beleza não envelhece," - FRANZ KAFKA --- "O pôr-do-sol é de quem olha." - MILLÔR FERNANDES --- "Ainda bem que existem beijos, queijos e brigadeiros, porque a felicidade, na teoria, é inalcançável." - ANA CRISTINA REIS.

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LEIAM meu trabalho seriado "Intertextualidade".

NOTAS DO AUTOR:

LILÁS - Em mistura com o vermelho, predomina o azul - espiritualidade e intuição, portanto cor metafísica: da alquimia e da magia; vista como a cor da energia cósmica e inspiração espiritual; o lilás representa a mistério, expressa sensação de individualidade e personalidade - aconselhável para lugares de meditação.

"OTELO, o Mouro de Veneza" - drama amoroso de um general mouro que serve o reino de Veneza. Temas variados na obra: racismo, amor, (boato de) traição e crime. WILLIAM SHAKESPEARE escreveu a peça por volta de 1603, primeira apresentação em 1604. // Ópera em 4 atos, compositor GIUSEPPE VERDI, libreto de ARRIGO BOITO, penúltima obra de VERDI, considerada sua maior tragédia: estreia no Teatro alla Scala, Milão, 1887, cenário na ilha de Chipre (como também parte do livro), final do século XV). // Cinema inicial - "Otelo", 1952, direção Orson Welles. // Peça musical de GUSTAVO GAGARINI, "Otelo da Mangueira", disputa pelo samba-enredo escolhido, diferenças de idade e de classe social entre o casal de protagonistas: cenário do Rio de Janeiro, década de 40.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 30/06/2018
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