BISCOITO DE "UM TEMPO PERDIDO"

Minha AMIGA Geminiana carioca (uma das cem, sempre é bom ressaltar) tem nas proximidades da atual casa supermercados, mercados menores e padarias, onde ELA muitas vezes compra um 'biscoitão' chamado "cavaca". Numa versão mais honesta, cavaca é um biscoito de farinha de milho, redondo, achatado, macio, receita originária de Minas Gerais, modernamente com rabiscos decorativos e um pedacinho de goiabada como enfeite. Na infância dela, nada disso. Dois nomes. Ora cavaca (cor clara) ora língua de sogra (com um mínimo de chocolate em pó, sabor pouco alterado), era na verdade um biscoito artesanal feito de sobras de... outros biscoitos, moídos... e 'na padaria da esquina' juntavam leite, ovos, alguma farinha de milho (tradição mineira), assavam novamente, pulverizavam açúcar cristal. ----- ELA tornou-se viciada em cultura e estrangeirismos, isto é, o-que-é-do-Brasil e também-o-que-vem-lá-de-fora. Nasceu e logo em seguida veio a II GM. Dois anos depois, 1941, a primeira radionovela, EM BUSCA DA FELICIDADE, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro Papagaia ambulante. O pai ouvia rádio (assim como toda a vizinhança), Repórter Esso, slogans de "O primeiro a dar as últimas" e "Testemunha ocular da História" - repetia para ELA as notícias da guerra e a garota pequena reproduzia nas outras casas. Cantarolava a musiquinha do noticiário e falava principalmente sobre o general CHUCHU, que devia ser um homenzinho verde, como no desenho animado de domingo no CINEAC, centro da cidade, variedades - notícias mundiais, esporte, desenho, mini comédias etc. (Sim, porque na madrugada caminhão clandestino chegava com estoque de chuchu verdão para 'aumentar' a fabricação de... marmelada na industria famosa, ali perto, outro lado do muro - o motorista seria verde, também? - por volta de meio-dia, ELA trepava num caixote e trocava goiabas da pequena árvore ou fatia de bolo caseiro por uma canequinha de ágata cheia de doce ainda morno...) Se vizinhos pedissem, 'chorava' tal e qual as personagens um tanto trágicas da radionovela, porém o interesse maior era a guerra, lá longe, em países onde se falava outro idioma (pai cursara inglês britânico, havia um alemão, marido da tia, e alguns judeus que apareciam vendendo panos de cama-e-mesa) e caía neve, como nos livros de estória, ilustrados, que já possuía, embora ainda sem saber ler, porém exímia e exibida "impressionista-surrealista" no lápis de cor. O 'pagamento' foi instituído pelos próprios vizinhos que davam biscoitos variados ao final do espetáculo. ----- O padeiro vinha todas as manhãs, de porta em porta, pão quentinho num cesto grande na bicicleta e... uma cavaca para ELA, sem cobrar, porém só ganhava o bscoitão depois de contar sobre a guerra na Europa. Bom, para que se calasse um pouco, a mãe sugeria que comesse o biscoito bem devagar (boca ocupada!!!), roesse como uma Ratinha, sentada na cadeirinha de madeira, meia hora no carrilhão da sala. Aprendeu cedo que "o tempo não volta", não adianta chorar pelo leite derramado (hoje ELA me repete sempre isto em filosofia otimista, carpe diem, poucos segundos para me consolar de qualquer crisezinha existencial). Sem falsidade ou interesse, aprendeu com tenra idade a expresssão, fatalmente enciclopédica, "...início de uma bela amizade" (ah, sim, também meu e dela, nosso slogan particular!), final em filme de amor e angústia que criança não assiste. ----- A guerra terminou, a tal novela também, trocou de casa, outro bairro, logo em seguida primeira escola no Campo de Santana, centro da cidade. Contadora de estórias na sala de aula - desde cedo já intertextualizava contos de fadas... ----- Décadas. ----- Não é MARCEL PROUST. Nunca esteve em Combray ou em Paris. Não chá nem o bolinho madeleine. Estímulo da memória ativado por um biscoito bem graaande (hoje menos rude), copo de vinho tinto ou cálice de licor, não irá escrever 7 volumes para contar seu particular "temps perdu" mas do nada surgem na memórua visual a rua do passado, o homem da casa ao lado, ex-padeiro que fazia amanteigados especialmente para ELA, barquinhsos de papel que atirava pela janela alta na rua inundada por uma eterna enchente no bairro, as diferentes fantasias de seus primeiros carnavais... Nesta comunhão de raízes, inspirada professora criativa até hoje (e EU que ouse contrariá-la?!)

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LEIAM meu trabalho "Outra Desdêmona?!..."

NOTAS DO AUTOR:

INÍCIO DE UMA BELA AMIZADE - Filme "Casablanca", norte-americano, 1942, HUMPREY BOGART, INGRID BERGMAN e PAUL HENREID.

CARPE DIEM - frase em latim num poema de HORÁCIO, popularmente traduzida: "colha o dia" ou "aproveite o momento".

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 01/07/2018
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