ELOGIOS FALSOS

ESTÓRIA 1 - BORBOLETA AMARELA - Minha AMIGA carioca Geminiana explica porque detesta elogio falso, adjetivos fora de propósito, muita adulação irrisória, fantasiosa, sem nexo... má fé de gente mal intencionada, em resumo, que planta hoje para um dia tentar colher. ----- Estranhamente, na escola municipal começaram a acontecer muitos furtos e a diretora adjunta tomou para si a tarefa de descobrir culpado ou culpada. E foi anotando ao longo dos meses - caneta bonitinha de estimação, espelhinho dourado esquecido no banheiro, anel lindíssimo de "esmeralda" (na verdade, brinde enganador no pacote de talharim, dois quilos), moedas num potinho, latinha de patê na geladeira, vaso magrela para flor solitária, apagador preto do professor de matemática, jornal do dia, fitas da máquina de escrever (estória antiga, 1976!), muita coisa... Zoação ou vício de pegar o bem alheio, ela descobriria. ----- Primeiros dias de dezembro e programaram para o ultimo dia letivo, alunos fora da escola, um almoço e a brincadeira do amigo oculto, substituindo a sem-gracice de apenas troca de presentes por uma anterior troca de... bilhetes, cada pessoa escrevendo para a "cara metade" - poderiam ser diários ou semanais, datilografados ou manuscritos, talvez letras/palavras recortadas de jornal... sob pseudônimo. Colocassem na caixa de papelão forrada de vermelho. ----- Ora, ELA tirara da sacola do sorteio o nome da pseudo 'detetivA', que se vestia geralmente misturando azul e vermelho, complementos dourados, daí se auto apelidou de Mulher Maravilha, defensora de "francos e espremidos", simples gracejo, nenhum significado específico. ----- Esqueceu até o próprio nome, passou a atender assim - localidade muito pobre e pessoas mais ingênuas passaram até a pedir milagres governamentais: "Dona Mulher, na minha casa não entra água há dois anos..." "O asfalto da minha rua quebrou todinho..." Para tentar ajudar, ela mandava memorandos para o prefeito. ----- Eram quatro professoras de português. Três normais e uma toda "fosforescente": sempre tem aquela pessoa super exibida e espalhafatosa, conteúdo fraco, tentativa de forçar simpatia, coleguismo e aplausos, chega distribuindo beijos-de-formiga, elogiando tudo nos demais em cretina interpretação teatral (aparência física, roupa, temática gestual, muitas mentiras etc.), mentalmente dedos cruzados nas costas; pode até convencer o 'homenageado' ou este percebe a má fé e gosta da adulação, mas minha AMIGA irredutível foge disso... Sincera e objetiva. A "figura" aparentava ser o máximo, entretanto muitas vezes - às ocultas ocultíssimas: "Ninguém pode saber o que estou perguntando..." - consultou em segredo minha AMIGA sobre variadas dúvidas gramaticais e de dicionário. Ah, interessante! ----- ELA, apreciadora da cultura japonesa clássica, incluindo o xintoísmo, religião oficial daquele país, e a triste estória de Cio-Cio-San, deu em todo caso uma dica, datilografados os recadinhos em casa, literalmente assinando em azul BORBOLETA AMARELA (borboleta, símbolo da feminilidade), oportunidade para a "sabida" (?) adjunta descobri-la antecipadamente. se tivesse a ideia de comparar com a letra nos cartões de ponto, presença diária. E assim foi, durante o mês quase inteiro, muita conversa de 'achamentos e descobertas', com citação /tempo bem antes da Internet acessível em todas as casas/ a detetives famosos na literatura e no cinema: Auguste Dupin (o prmeiro detetive a aparecer em páginas de livro), Padre Brown (aparentemente um 'apagado' sacerdote católico), Sherlock Holmes e o esperto Watson (super dupla britânica!!!), Hercule Poirot (metódico-perfeccionista-extravagante), Jules Maigret (comissário belga), Jacques Closeau (o icônico inspetor francês atrapalhado, filme "A pantera cor de rosa", 1963), Miss Jane Marple ('caduca' ou 'confusa' é quem critica invejosamente a qualidade alheia, observadora detetivA amadora: idosa, faz tricô, tira ervas daninhas do jardim, mas grande psicóloga natural e instintiva que disseca e conhece profundamente a alma humana)... Nunca a professora 'artista' foi tão paparicada... e a iludida adjunta, em verdade fantasiosa e nada maravilhosa, dizia a todos já ter descoberto a sua "amiga oculta". A verdadeira ficava de lado, calada-discreta-quietinha (no fundo, tremenda gozadora), sem especial suco de laranja ou torradinhas amanteigadas no forno da escola... Pensava em MACHADO DE ASSIS: a agulha abre caminho, a linha vai ao baile. Coisas da vida, mas um dia o real aparece. ----- Bendito dia de almoço. Mesa comprida improvisada, cena democrática reunindo lado a lado professores e funcionários, cada um escolhendo sentar onde quisesse. Expressão atual de tudo junto e misturado. (Bom, pelo contexto, a própria narradora filosofa como liberdade para as borboletas.) Acabada a comilança /e a 'doçança', como diria GUIMARÃES ROSA/, a adjunta se impõs falar e elogiou a inteligência e cultura "raras" (exagero exagerado exageradíssimo) de quem lhe escrevera inúmeras vezes: "Vocábulos somente usados por pessoa muitíssimo culta, comunicação perfeita, nenhum erro gramatical, pontuação emotiva, figuras de linguagem, inteligentíssimos assuntos de impressionar etc. etc. etc." Leu de um papelzinho resumo de assuntos outros /minha AMIGA é o extremo da versatilidade/ e os nomes dos tais detetives. ----- As pessoas se entreolhavam interrogativas, não deviam conhecer (ter lido, menos ainda), além de Sherlock (sem Watson), ainda assim por sua figura singular e popularizada de boné, cachimbo e lupa. (Não iam nunca ao cinema?) Aí, a destinatária da correspondência mostrou duas ridículas gigantescas asas de cartolina que seiam colocadas nas costas da remetente... Ninguém se manifestou em real cofissão, davam risadinhas sem graça e, tantos quantos alguns de repente trocaram olhares e se intitularem autores (como saber os conteúdos escritos?), como a outra metade se manfestou negativamente - muito fácil dizer: "Não fui eu!" Gargalhadas gerais quando o professor de inglês, tremendo mulherengo, chamativo porque alto, disse que não entendera muito bem a remessa das mensagens e escrevera para todas "as que vestem saias", sob variados pseudônimos. Seria ele o autor? Ficou a incógnita. ----- Minha AMIGA sentiu-se envergonhada ante as palavras da outra, num discurso de puxa-saquismo idiota. Conhecia a ópera desde criança (Teatro Municipal muitas vezes com entrada gratuita), criada por GIÁCOMO PUCCINI em 1904. Entre os detetives, conhecia parte e memorizara outros citados em jornal literário impresso (repetindo, tempo pré-Internet) - lera novelas em alguns livros, assim como acompanhara aventuras divertidas na tela do cinema... Nenhuma inteligência tão rara e exaltável assim! O que ELA era capaz de saber e produzir, qualquer outra pessoa atenta só não fazia o que não interesse: muita trabalheia! Misto de indignação - por que não foi cogitada autora? - e humildade - dar-se a conhecer após tantas admirações apoteóticas? Se não descoberta (e valorizada antes), a BORBOLETA simbolicamente "voltou" à condição de crisálida. ----- Autor ou autora dos delitos continuou "amigo ocultissimíssimo" e jamais veio à lume: ah, porque mulher maravilha deveria usar verde-amarelo... e voejar menos.

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NOTAS DO AUTOR:

Apólogo (narrativa de fundo moral em que figuram seres inanimados) "A linha e a agulha", de M. ASSIS.

Epítetos e explicações sobre os detetives - colocados posteriormente, para complementar a narrativa.

BORBOLETA AMARELA - Analogia às flores da primavera, amarelo predominante. Diversos significados nas diferentes culturas, mas de um modo geral a borboleta é sempre associada aos processos de mudança, metamorfose, transformação, nova vida, viagem, libertação e morte/renascimento. Também relacionada á Alma, ao Espírito Santo, ao Sopro Vital - à individualidade que possuímos enquanto seres.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 02/07/2018
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