O vestido

Era a décima segunda entrevista desde que pegara o certificado. A manhã fria lhe piorava o resfriado. “Que isto não me atrapalhe”, pensou.

Onze respostas negativas, onze frustrações. Não lhe havia servido tanto o curso supletivo do ensino médio como lhe fora prometido.

Mas havia uma esperança diferente. É que a moça que agendara a conversa ligou mais duas vezes para saber informações do currículo. “Duas vezes, mulher! Tenho chance”. Ela o olhou com ternura. Não queria atrapalhar o ânimo daquele que dividia com ela o prato e o teto.

Quanto mais a frase lhe vinha – “Tenho chance!” – mais a evitava. Não era de contar com o ovo antes da galinha. Mas dessa vez não conseguia se conter e demonstrou confiança. Os pequenos não sabiam. O casal fez planos entrecortados de melhor-esperar e de não-custa-sonhar. Compraria móveis novos, brinquedos para as crianças. O vestido para ela. E um sapato para ele, se desse. O primeiro salário.

A mesa. Redonda. Fria. Amedrontadora. A equipe. Três. A chefe e dois gerentes. A empresa – “Saúde e Felicidade”. Um grupo grande. O nome era imponente. Plano de saúde, clínica de estética e serviço funerário. “Tenho chance!”. A frase inevitável. Perturbadora.

Motorista, o cargo. Fora-o por muito tempo na roça. De caminhão de leite. Na cidade, servente de pedreiro. Alergia. Problema de coluna. Mas conseguia retomar a prática. Perguntas curtas. Poucas. Não pôde se expressar. Teve vontade, mas palavras não vieram. Ah! Se pudesse voltar ali... Pediram-lhe tempo. Intermináveis minutos.

Dez deles depois, a resposta.

Podia ser visto na rua, sem rumo. Sem prumo. “Eu tinha chance...”. Os brinquedos, o vestido... Doíam-lhe a cabeça, as costas, os olhos.

Nove horas marcaram o relógio.

Oito quadras caminhadas ao léu, de absorção em pensamentos desconexos. A gravata lhe incomodava não menos que o não-tenho-mais-chance. Como chegar em casa? Como adiar os planos feitos com ela? Como suportar a visão dos brinquedos quebrados deles?

Sete horas da noite, podia ser visto bêbado, imundo, desfalecido.

Às seis era levado para casa, pela polícia.

Cinco meses de recaída no vício e desespero dela. Sozinha para sustentar a todos. Os quatro.

Brigas, internações. A separação. A perda dela. Deles.

Três anos depois ele era visto pegando as crianças para levar ao parque. Era o dia de ficar com os pequenos. Não os levaria ao barraco onde vivia.

Dois picolés. Foi o que pôde. Não houve muita conversa. “Sua mãe está bem?”, perguntou. “Ele é legal”, disse o mais novo. “Comprou um vestido pra mãe!”. Calou-se. A sorte tinha sido mais generosa com ela. Bom para os meninos.

Um ano depois ele era visto no carro preto de vidros escuros. Com motorista e sapato novo. Pouca gente além dela, o novo marido e as crianças. Alguns parentes, algumas velas e a chuva. Sempre chove em enterros?

Poucas demonstrações de sofrimento por ele, o acometido de cirrose. Ela pagou as despesas e deu-lhe na morte a dignidade que não lhe deram em vida. E também derramou, escondida, uma lágrima, cheia de se-tivesse-sido-diferente.

Uma coroa de flores grandes fazia parte do pacote da empresa do serviço funerário. A faixa dizia: “Àquele que a morte levou tão cedo, sem que a pudéssemos evitar. Nossos mais profundos sentimentos à família – Grupo Saúde e Felicidade".

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 07/07/2018
Reeditado em 07/07/2018
Código do texto: T6384218
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