Sem despedidas (março de 2018)

Marcela foi juntando as roupas na beirada da cama. Separava vestidos de blusas de pouco decote, e calças coloridas de blusas com decotes ousados, pondo-os a um lado da mala. Já havia juntado suas peças íntimas e suas meias compactando-as todas na outra lateral da mala grande de couro esverdeado. Eram duas malas para arrumar, ao todo.

Faltava ainda dar conta do resto do armário, o que fazia com admirável paciência. Escolheu três pares de sapatos de passeio e três cintos muito elegantes alojando-os todos na segunda mala. Vasculhou novamente o armário em busca de peças esquecidas e encontrou por fim uma camisola – que colocou junto aos vestidos na primeira mala.

Eram duas horas da tarde de uma terça-feira e Jim estava no trabalho até as seis, o que lhe dava a vantagem de três horas para sair. Não haveria cena, não haveria culpas, nada de explicações demoradas. O namorado não teria a chance de vê-la sair levando um punhado de coisas para vestir e frascos de xampu. Esse privilégio não lhe concederia.

Deixava para ele alguns bibelôs que enfeitavam a cômoda da sala de estar e quadros que adquirira no trabalho da galeria de arte. Marcela era curadora de peças de arte – em sua maioria esculturas e quadros de artistas plásticos de prestígio. Para evitar discussões sobre a propriedade dos quadros com o namorado, abria mão de tudo para ir embora.

E o gato? O que fazer com o gato? Essa parte ela considerava a mais difícil. Havia laços afetivos fortes entre Barbarossa e o casal. Prevalecia no olhar do animal um sentimento de tristeza e Marcela devolvia para o pequeno animal de pelo branco avermelhado um olhar comovido. Teve tempo de colocá-lo no colo e dar carinho para ele.

Barbarossa acomodou-se preguiçosamente no colo de Marcela dando para a mulher liberdade para cobri-lo de afagos e confidenciar histórias tristes. Quanto aos afagos, tudo lhe agradava. Já em relação aos tristes lamentos, isto para ele não fazia a menor diferença, já que não compreendia nada que Marcela dizia.

“Não temos mais amor, Barbarossa” começou Marcela. “Amava Jim como amava também o meu gatinho...” e beijou-o. “Foi aí então que conheci o que era liberdade, em uma tarde de muito calor, no verão” e continuou “Estava trabalhando e sozinha. Uma brisa fresca entrou pela veneziana do saguão da galeria e envolveu meu corpo inteiro”.

“Barbarossa, desde então não fui mais a mesma. Por mais bizarro que possa parecer essa história de uma tarde de verão tudo é verdade. Alguma coisa mudou em mim” e emendou, “Desde aquele dia, faz uns seis meses, passei a observar o Jim em seus movimentos, seus olhares, seus sorrisos” e concluiu, “Sinto que já não me ama mais”.

“Gatinho, eu sinto que ele já não me ama mais. Você, que com esses olhos a tudo observa, atentamente, provavelmente já sabe de tudo, e há muito tempo” e emendou, “Demorei anos para me dar conta da falta de amor do Jim por mim. Algo que existia ali, naquele corpo a quem eu amava, não existe mais”.

“Ainda mais estupefata fiquei quando percebi aos poucos, nesses últimos seis meses desde a tarde de verão, que o amor por ele não existe mais em mim. Havia em nós um encanto que não existe mais entre nós” e argumentou, “Seus olhos, agora opacos, substituíram os olhos azuis vivos do gringo antes interessado em algo de nossa relação”.

“Algo morreu, Barbarossa, em nossa relação. E não há remédio para isso. Prefiro abrir mão de incansáveis visitas ao terapeuta de casal para descobrir que a jarra de flores um dia viçosa e perfumada hoje abriga um ramo de galhos secos. Nossa relação foi um sonho que hoje já não se sustenta mais” disse enxugando os olhos.

“Muito ao gosto do Jim, tal qual um tango, nosso amor não se aguentou para sempre. No tango os amores devem morrer como na vida diária de uma curadora de arte e de seu marido publicitário” e acrescentou, “Mas não é o tango que dá a palavra final a esse nosso drama: sou eu que uno forças para afirmar que meu amor acabou”.

“Eu não desejo que a inércia de meu marido nesses últimos seis meses sirva de motivo do fim de nossa relação” e prosseguiu Marcela em tom solene, “A culpa é mesmo minha. Foi desde quando passei a perceber o sorriso forçado e amarelado de Jim que meu amor – convalescendo sem que eu percebesse – foi tomando a forma de desamor”.

“Barbarossa, eu tanto queria levar você comigo. Quiçá um dia eu o faça em um momento mais oportuno. Mas isso pode demorar anos...” acrescentando, “Você que é testemunha de tudo nesse apartamento, seja testemunha ainda do que lhe falo e sei que não compreende. Seja testemunha ao menos das malas com meus pertences”.

Marcela pôs o gato no chão do quarto e o bichano ficou quieto, apoiado nas duas patas dianteiras com os olhos imensos a observá-la. Ela, entre uma olhadela e outra no relógio de pulso, encontrou tempo para mirar fixamente um quadro geométrico na parede, sem esboçar qualquer emoção.

Há na vida aqueles momentos de dor tão cortante em que não se consegue demonstrar tristeza ou alegria. Momentos como estes conhece muito bem Marcela, pateticamente sentada na beirada da cama, sem choro nem riso. Conseguiu anteriormente chorar ao envolver Barbarossa nos braços, mas agora não chora mais. Pensou no sotaque de Jim.

Tudo pronto com as malas, olhou de novo o relógio, agora preocupada. Não cogitava de forma nenhuma topar com Jim a essa altura. Tivera a coragem de mudar, de sair, e não foi fácil chegar até ali e àquele momento. Havia o medo de que um encontro inesperado com o namorado a pusesse a desarrumar as malas, a desistir de tudo, por amor.

Marcela então pegou a bolsa e retirou dela o smartphone. Foi fácil chegar até o aplicativo do Uber e solicitar uma corrida dali até um hotel. Na cabeceira da cama deixou um bilhete frio, com indicações e nada de explicações: “Fui embora, mas não se assuste. Entro em contato. Não me telefone”. Saiu, deixando a porta atrás de si aberta.