O vagante

À sombra da Lua, o homem tocava sua velha viola enquanto se aquecia próximo das dançantes chamas da fogueira. Era muito tarde da noite, e a madrugada engolia as horas daquela fria noite.

Cansado e sozinho de corpo, mas cheio de alma, Abel cantava suas dores, louvava seu orgulho. Tinha ritmo, som, melodia, tinha sentimento. Estava vivo apesar da caminhada. Os grilos cantavam juntos, os cachorros do mato uivavam de longe para os espíritos forasteiros que ainda caminhavam por aqui, pelas bandas dos vivos.

Filho de mãe sem pai, o velho Abel viveu bem, viveu mal. Seus irmãos seguiram para longe da terra natal, foram para as cidades, terras de torres, de jardins altos, de flores sem cheiro.

Só ele restava, ficara para proteger o rancho dos assaltos. Abel bem sabia que seu trabalho solitário garantia a comida dos irmãos e irmãs que nunca o conheceram bem. Ali, naquela terra tristonha, esmurrada, o velho Abel ficou para ouvir os lamentos dos que já morreram. A última foi sua mãe, dona Constantina. Caucasiana de cabelos dourados, olhos claros como o azul do céu. Dela ele sentia saudades.

"Que comida gostosa a comida da minha dona", dizia Abel quando a saudade lhe rasgava o coração. Este que há tempos aprendera a não mostrar para todos. Poucos andaram no âmago do velho vigilante.

Quando menino ele o ofereceu a uma rapariga bem quista, filha do vizinho. À sombra dos morros ele deu seu primeiro beijo. Lembra como se fosse hoje. O sol rachava a cuca, e o vento levantava uma fina cortina de poeira. O casal disputava uma corrida a cavalo. O perdedor casaria com o padre.

O cavalo da menina de Abel era um quarto de milha jovem, abrindo uma distância considerável do menino. Suados, nervosos, apaixonados. À sombra do morro, quando zéfiro soprou um tufão e os grãos de areia fina salpicaram a pele do casal, os lábios se encostaram, se torceram, se protegeram.

Foi o primeiro beijo, foi o primeiro amor. Simples, único, gracioso, não fingindo. Infantil.

Dali sairia um belo casamento, se não fossem os assaltantes que moravam no sopé do morro. Abordados pelos bandidos, o casal foi morto à sombra do morro. E hoje, à sombra da Lua, é possível ouvir o canto do velho Abel que chora sua música de amor, amor que morreu cedo, morreu no alvorecer.