Eu não sou Poeta

Uma garota chegou à mesa onde eu estava e falou

- É você que é o poeta?

- Não. Eu não sou... foi engano – Respondi sem tirar os olhos da minha bebida.

- Mas me disseram que você escreve – Ela insistiu.

- Não acredite em tudo o que as pessoas dizem.

- Olha, o fato é que eu até cheguei a ler um ou outro texto seu.

- Isso não faz de mim um poeta. Eu só gasto meu tempo juntando as palavras que vem na minha cabeça.

- Isso é algum tipo de falsa modéstia?

- Não.

- Ok. Você não é poeta. Mas eu gostei do que li.

- Do que você gostou especificamente?

- Da confusão. Da tragédia pessoal. Parece que algumas pessoas gostam de ler sobre esse tipo de coisa. Talvez seja um tipo de sadismo.

- Deve ser.

- Meu nome é Eva, a propósito. – Ela disse, enquanto se sentava em uma cadeira ao meu lado.

Ela bebia caipirinha num copo de plástico cheio de gelo. Eu tomava cerveja.

Alguém botou Belchior para tocar no Jukebox e o ambiente do bar mudou completamente.

As pessoas passaram da euforia alcoólica a uma introspecção quase silenciosa.

Esse tipo de música refletia melhor o meu humor no momento, e talvez por esse motivo eu tenha resolvido dar uma chance aquela conversa.

Enchi novamente o copo com cerveja e fiquei olhando Eva sugar lentamente sua caipirinha por um canudo. Ela já parecia alterada pela bebida e tinha algo engraçado em seu olhar.

- Uma vez eu fiz um boquete num completo desconhecido. – Disse-me, sem o mínimo constrangimento -, foi numa viagem de ônibus que eu fiz para Salvador.

- Muita coisa acontece nessas viagens. Mas nunca tive essa sorte.

- Ah. Eu estava entediada e cheia de tesão. Eu fico meio tarada quando estou naqueles dias. E o cara era bem bonitinho. Apesar de que o pau dele não era lá grande coisa.

- Então... como vocês chegaram ao boquete?.

- Ele era escritor também. Falava muito sobre o que escrevia. Acho que meio que o contrário de você. Teve uma hora que eu fiquei cansada de ouvi-lo falar e só queria que ele me beijasse. Como ele não fez nada, eu abri o zíper dele e comecei a chupá-lo. Aí ele calou a boca.

- Parece um método bem eficiente de fazer alguém parar de falar

- Pois é. Mas quando ele estava perto de gozar, passou uma pessoa para ir ao banheiro e ele ficou meia bomba... tipo câmara de ar de bicicleta. Borracha mole. Perdi o tesão na hora.

- Desarmou no susto. – Comentei, sentindo um pouco de pena do rapaz...

- Depois ele ficou com nojinho de me beijar. Me deu um chiclete pra mastigar... Ai o meu interesse foi todo embora. Me encostei na janela e fui tentar dormir.

- Dá pra entender sua frustração.

- Quando nos despedimos ele pediu o meu email, e uma semana depois me mandou uns poemas que eu não gostei muito. Ele soava muito apaixonado por si mesmo. Não gosto desses tipos narcisistas.

- Ai está uma coisa que nós temos em comum.

- Você é sempre assim?

- Assim como?

- Calado. Introspectivo.

- Na verdade não.

- E como é?

- Em geral eu sou um cara mais divertido. Gosto de falar, de ouvir. De estar com meus amigos.

- E o que faz você estar num humor tão diferente?

- De vez em quando fico assim mesmo. Faz parte de mim. Mas não que eu goste de estar assim. Só que não consigo ser cínico. Não disfarço o que estou sentindo... e não estou lá muito bem.

Ela bebeu o conteúdo do seu copo e começou a mastigar as pedras de gelo, tudo isso sem tirar os olhos de mim. Ela parecia estar tentando absorver algo da conversa, mas não estava indo direto ao ponto.

- Acho que agora consigo entender.

- Como assim?

- Nós já tínhamos nos conhecido antes. Bebemos juntos mês passado. Mas acho que você estava bêbado demais para lembrar. Você mesmo me falou que escrevia e eu procurei na internet. Fiquei intrigada.

Eu realmente tinha tomado um porre acima da média recentemente e não era totalmente impossível que eu tenha interagido com ela e perdido esse fato na memória.

- Me desculpe, mas eu realmente não consigo lembrar.

- Tudo bem. Isso acontece com todo mundo.

- Verdade.

- Sabe o que é engraçado? Nesse dia você me disse que era poeta. Então fiquei curiosa quando você negou hoje.

- Talvez eu estivesse me sentindo poeta naquele dia. Hoje, particularmente não me sinto.

Eva se levantou da cadeira e aproximou o rosto do meu. Me deu um beijo na bochecha.

- Qualquer dia desse eu tento extrair algo mais de você. Nem que seja te chupando. – Disse-me antes de se afastar e ir em direção à saída do bar.

Fiquei calado, sem ter o que responder, pensando em como teria sido se fosse eu no lugar do poeta da história de Eva...

12 horas no escuro de um ônibus

rumo à Salvador.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 21/07/2018
Reeditado em 21/07/2018
Código do texto: T6396029
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