Dia de Incertezas

Pois a Terra para ele parecia que a qualquer momento iria acabar. Ou o que era aquela vontade que tinha de estar só, ir morar só, longe das conversas superficiais, mal concatenadas, frívolas que o cercavam? A miséria de poucos acabava sempre por roubar um pouco de seu lume, que, sabia, podia ser intenso quando quisesse.

Desorganizações afetavam-no profundamente. Não que tivesse algo contra as sombras, onde, por natural que eram, sabia permanecer toldado, aguardando horas vazias e desprovidas de sentido. Na verdade na maior parte de seu tempo, aos dias, gostava mesmo era de estar sob elas, aconchegado, aliviado --- um corpo pesado somente, inerte sobre uma cadeira, uma poltrona --- ou caminhando devagar pelas estradas de terra de um sítio imaginário que era a via expressa e banal de carros apressados da cidade.

Estariam desgovernados? onde cada um daqueles motoristas, isolados em si, em suas idiossincrasias, quereria chegar? Não chegavam jamais em lugar algum. Mas, após o silêncio, após a queda do corpo que, se estava vivo, mal conseguia adivinhar, perceber --- após isto a Terra, que em qualquer hora do dia ou da noite (não importavam as horas), poderia, de súbito, se desagregar, desmanchar, resvalar sobre o piso escorregadio para detrás de um biombo; uma zona escura que seu pensamento não poderia acompanhar.

Como se a Terra fosse, por vontade própria, um cardume indefinido, mal iluminado, algo que se mostraria a ele ou não, conforme sua vontade, conforme um capricho.

A vida então realmente parecia ser maior do que ele, muito maior para o seu delicado tamanho, e da ignorância dela se alimentava e mais se fortalecia. Um pequeno soldadinho de chumbo pronto para cumprir seus afazeres, sua rotina, mas sabendo que algo dela sempre lhe estaria além.

Ele era, assim, o próprio fragmento, nunca recebendo em cheio este algo para o qual avançava, mas, que, no instante seguinte, já deixava de ser para ser uma outra coisa. E, pela memória, ele seria sempre a projeção de um futuro e o que restasse (aos pedaços também) de um passado.

Assim ia caminhando o homem, aos pedaços que agora desembaralhava, os fragmentozinhos pulsando e andando, enquanto seu conhecimento permitisse que de si ele tivesse alguma inconclusa ideia, algum sutil e luminoso centro. Como se abrisse uma concha, um ovo, e de seu interior se espraiasse a rara, cara, única luzinha que pudesse possuir e com que pudesse se valer e afiançar.

E deste modo seria sua vida inteira, como se lhe tomasse um único dia de incertezas. E ele caminhava, caminhava apenas, por caminhar, sem saber por que ou para que direção ou outra, sendo este o seu gesto, sua criação --- seu sentido.

Fernando Munhoz
Enviado por Fernando Munhoz em 21/07/2018
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