Dias Noturnos

Baixando a cabeça e evitando olhar para os lados, Tatiane confessou que julgava a noiva muito bonita para o noivo. Era horário de pico no café e pés movimentavam-se aprisionados em sapatos pretos e marrons. Uma nova ruga formou-se na testa úmida de Vando, que bocejou enquanto partia uma omelete com a colher. Sacudiu as migalhas presas à blusa; depois de coçar com certa persistência o nariz, resmungou que não possuía tempo para divagações estúpidas. Ao certo preferia passar o tempo debatendo sobre geometria ou cinema. De frente para ele, como uma estátua que desperta de um sono profundo, Pietro franziu os cantos da boca.

- E o céu também é muito bonito para aquela sua lata velha, estacionada do outro lado da rua - ele comentou com a boca cheia de bolachinhas, olhando por sobre os próprios ombros. E prosseguiu: - Mas penso que poderia ter sido mais atencioso.

- Ele foi atencioso - retrucou Francisca, agitando as pulseiras. Insistiu: - Ou melhor, ele é atencioso, talvez não tenha sido tanto quanto você gostaria que fosse.

- O que está querendo sugerir? - tornou Pietro, num sobressalto.

- Ora, não precisa fingir - ela disse, com uma piscadela.

Pietro enrubesceu.

Duas batidas secas e, do lado de fora, na rua movimentada, uma face colou-se ao vidro como um cartaz. Viram-se as palmas das mãos pequenas de Giorgina. Ela sorriu e arqueou as sobrancelhas. Fizeram sinal para que entrasse no café.

- Um vagabundo atencioso que se apoia no excesso de talento. Um parasita atencioso - Tatiane retomou o assunto.

- Um músico, e dos bons! Como todos os músicos não geniais deveriam ser - discordou Francisca após um suspiro carregado de tédio.

Giorgina atravessou a porta de entrada e aproximou-se da mesa com os braços entendidos. Trazia botas pretas de cano alto e um cachecol listrado agarrado ao pescoço.

- Como vão, seus merdas?

- Gigi!

- "Senhor merda" para você - disse Pietro depois de lhe beijar a mão. - Se a merda não for de boa qualidade, poderá aposentar-lhe o banco.

- Francisca, que brincos lindos!

- Sim, sim - disse Francisca, tocando-os com as mãos. - Infelizmente só posso usá-los nas orelhas.

- Olá, Tati!

- Hasta la vista ao contrário, ditosa rainha do reino monera. Belas botas.

- Infelizmente só posso usá-las nos pés. Trouxe o seu livro.

- Não era sem tempo. E o livro a trouxe de onde? Sente-se.

- Oi, Vando.

Vando encolheu os ombros. Respondeu em voz baixa:

- Não precisa conversar comigo.

- Não quer falar comigo? - Giorgina perguntou.

- Eu não disse isso. Eu disse que não precisa conversar comigo. A vida não é um filme do Richard Linklater.

- Por que diz isso?

- Eu não sou obrigado a responder. Existem mais pessoas aqui.

- Ora, essa. Está chateado?

- Pode parar com isso?

- Parar com o quê?

- Você vive perguntando se estou triste - Vando disse, deslizando o indicador sobre a sobrancelha.

- Perguntei se está chateado. Você parece estar sempre chateado!

- Eu realmente estou chateado.

- Por isso perguntei.

- Mas sua pergunta me irrita!

Giorgina revelou perplexidade diante do rapaz amuado.

- Parou de aplicar o golpe do troco? Arranjou um emprego? Está se esforçando para se tornar uma pessoa melhor? - ela perguntou.

- Ninguém é melhor do que ninguém e, como ninguém é melhor do que ninguém, não vejo sentido em tentar me tornar uma pessoa melhor.

- Então você reconhece que é um inútil, e não se importa! Lamentável.

- Eu não sou inútil em mim mesmo. A sociedade, dada a sua falta de criatividade, não encontra uma utilidade para mim. Lembre-se de que Deus passou uma eternidade sendo inútil antes de criar o mundo.

Vando voltou os olhos negros, tristes e covardes para a rua.

- Gostaria de poder não girar em volta do sol - prosseguiu ele. - Sinto que sou mais um sujeito obcecado por esse astro estúpido.

- Eu adoro o sol - disse Giorgina.

- Já que gosta tanto, poderia ir morar nele!

Com tamanha animosidade, o mal-estar se instalara de vez. Eis a merda no ventilador. Giorgina contraiu os lábios.

- Oh, meu Deus, que novela mexicana! - exclamou Francisca. Tatiane e Pietro caçoaram. Recompuseram-se assim que se deram conta da gravidade daquela situação.

Vando deslizou a mão sobre o cabelo, pensativo.

- Poderíamos conversar quando eu estiver com a cabeça no lugar? O que acha? - sugeriu ele.

- Onde é o lugar da cabeça? Sobre o pescoço? Acho que poderia me tratar melhor - Giorgina disse.

- Todos a mimam. Trato-a mal para equilibrar as coisas. É para o seu bem. Mas continue! Sou todo ouvidos.

- Não. Você usa a desculpa de ser um bom ouvinte para não conversar. Estou cansada disso. Adeus. Adeus amigos do Insuportável.

Em questão de minutos, as pernas da recém-chegada arrebataram-lhe a presença para longe. Os corpos dos presentes se voltaram para Vando, primeiramente, como os narizes dos curiosos se voltando para uma pintura exótica. Depois, como canhões contra um navio inimigo.

- Bizarro. O que aconteceu? - quis saber Francisca.

- Saiu com Lincoln. De novo - disse Pietro.

- Pensei que não soubesse - interveio Vando.

- Esqueceu-se que sou o cara que finge não ver as coisas - respondeu Pietro, escondendo-se atrás da xícara de café.

- Então é verdade! Por que não disse antes?

- Quis deixá-lo saborear o pão de queijo primeiro - sugeriu Pietro, apontando para um pequeno pacote que descansava sobre a mesa. Intragável! Cerrando os lábios, o dono da alma perturbada parecia aéreo.

- Traiu mesmo? Como sabem? - perguntou Tatiane, com cautela incomum.

Vando hesitou por um minuto, fitando o próprio copo.

- De fato sou uma pessoa paranóica, que apenas enxerga o que não gostaria de enxergar. Contudo, tenho duas fontes quentes: Nayane, minha meia-irmã, e Antoniela, minha inimiga predileta. Esta diaba jamais mente.

- Transaram? - tornou Tatiane.

- Que diabo de pergunta!

Desolado, Vando lançou a pergunta para Pietro, que lhes pareceu estar muito bem informado e falar com sinceridade.

- Transaram? - balbuciou.

- Você morrerá sem saber isso. Todos morreremos sem saber isso - explicou Pietro.

- Deus me contará essa fofoca no Juízo Final, entre uma soneca e outra - Tatiane comentou.

A garçonete de pernas finas aproximou-se da mesa. Como era velha conhecida do grupo e sentiu-se interpelada pelas sobrancelhas inquietas de Vando, disse com ironia:

- Se sou uma mulher fácil? Depende. Posso ser fácil para alguns, difícil para outros. As pessoas normalmente não são interessantes. Eu adoraria poder ficar com uma pessoa interessante toda semana, mas acho mais simples passar três ou quatro anos com uma pessoa assim, interessante.

Sorriu de modo maquinal, malicioso e questionou se preferiam chá ou capuchino.

- Por favor, não me chame de senhor. Nem o meu filho de quatro anos eu permito que me chame de senhor - implorou Vando.

- Mas o que vão querer?

- Perdão, moça. Preciso fazer xixi. Pergunte a eles.

- Xixi? - riu-se Francisca. - Seu amado cliente faz xixi, Manoela.

- Precisamente - disse Vando, afastando-se. - A incidência de molhadores de chão é menor entre os que dizem "xixi" do que entre os que dizem "mijar". Já disseram que você fala como uma bêbada?

- Com mais frequência do que você imagina - gritou Francisca.

Mais tarde Vando deixou o café e, cinco minutos depois, esbarrou em Erivaldo quando cruzavam a rua Princesa Isabel. Puderam estreitar as mãos, Erivaldo pousou os dedos sobre os ombros largos do colega e aconselhou:

- Você deveria tentar pentear o cabelo antes de sair de casa.

Vando desenterrou um cigarro do bolso e o enterrou na boca. Acendeu-o. Adquiria um câncer tentando evitar outro câncer!

- É culpa da entropia - ele disse. - O vento é que não deveria despenteá-lo.

Quando notou que Pietro o seguia, aguardou-o, apertou-lhe com força a mão e disse:

- Por favor, não me deixe! Estou com medo de fazer uma loucura.

- Que tal jogarmos um pouco de sinuca? - sugeriu Pietro.

- Sinuca é melhor quando não se sabe jogar. Eu nunca deveria ter aprendido!

- OK. Cerveja. Que tal?

- Cool.

Vando assentiu com um movimento de cabeça. Despediram-se de Erivaldo e, com passos apressados, seguiram adiante.

- Aceitou a sacolinha do supermercado? Espero que seja estéril. É um péssimo exemplo para a sociedade - disse Pietro enquanto retornavam das compras. Olhou em redor e, para o seu espanto, deu-se conta de que o céu escurecera rapidamente. - Quer que eu peça um Uber?

- Melhor. Peça a morte da Uber. Quanto ao ser estéril, chegou tarde. Já tenho um filho. E, potencialmente, netos e bisnetos.

Pietro estendeu o braço para um ônibus que se aproximava. Entraram nele, atravessaram a catraca e se apossaram de dois bancos no fundo.

Pietro olhou pela janela, exclamou:

- Para estes idiotas o siclo da vida é nascer, crescer, comprar um carro, reproduzir e morrer!

O companheiro ignorava o trânsito.

- O estudo da linguagem corporal me tornou um homem obcecado - Vando principiou, abandonando enfim o seu lado mais taciturno - Ela levanta as sobrancelhas quando olha para ele e suas pupilas dilatam. Certa vez, quando ele a tocou no braço, as duas narinas se abriram velozmente, como as pernas de uma prostituta.

- De quem está falando? - perguntou Pietro.

Vando disse:

- Giorgina e Lincoln.

- A namorada e o melhor amigo do Edcarlos! Quem diria?

- Ser corno é uma merda. Urias sempre me despertou mais pena que Jó. Acho confortável a condição de ser um plano B. Ser rebaixado a um plano C me perturba imensamente. Sofro do complexo de Rubião. O amante, por sua vez, quando a mulher deixa o marido, acaba sendo rebaixado a um plano Z. Tento há três anos conquistá-la. Cheguei a perder a dignidade. Era noiva quando nos conhecemos. A razão de minha infelicidade no amor é ela ter sido feliz no amor muito precocemente. Maldito o dia em que a conheci!

- Lembro-me de uma professora, Brenda, que a generosidade era o grande defeito dela. Uma vez o marido chegou em casa e encontrou-a sendo muito generosa com o vizinho. Mas, sejamos francos, a fidelidade é uma extensão da pena. Perguntar-se se é digno de fidelidade é perguntar-se se é digno de pena - disse Pietro, afundando-se no banco e apanhando uma latinha de cerveja.

- De repente se descobre que a vida é um conto do Nelson Rodrigues. Dona Gabriela, mãe de Giorgina, trai o marido, seu Renato. Mãe de peixinha peixona é.

- Impossível. É viúva!

- Corno póstumo - explicou Vando. Prosseguiu: - Uma alma imunda poderia cheirar mal, como um corpo imundo. Todos se veriam obrigados a lavá-la de vez em quando. Do mesmo modo, a injustiça poderia ter sabor de vômito e todos usariam a liberdade para não se alimentarem dela. Mas a liberdade, concordo, não existe. Onde estaria, no paraíso ou no inferno, a liberdade de escolher deixar de existir?

- Dona Gabriela é fiel ao novo marido, e seu Renato à morte - disse Pietro, passando-lhe uma latinha. - Algumas pessoas acreditam em Deus para, entre outras coisas, poderem ter um perdão divino para todos os seus pecados.

- De qualquer modo, os homens deveriam ser mais fiéis e honestos.

- Fale baixo. E não seja cínico. Se o homem médio fosse fiel e honesto, a probabilidade de arranjarmos uma mulher seria cem mil vezes menor. Superamos os bonitos e inteligentes apenas nessas categorias. Que loucura me disse que estava com medo de cometer?

- Não sei - Vando disse, bebericando a cerveja. - Talvez separar os miolos com uma bala ou deixar de tocar o chão com os pés. Nunca se apaixonou?

- Nunca - Pietro respondeu depois de pensar por um minuto. - É difícil conseguir se apaixonar por alguém quando se detesta a raça humana. Minha vida sentimental é uma tragédia. Não seria exagero dizer que fui projetado para ser infeliz no amor. Não amo a ninguém e detesto a solidão. Não fui feito para o amor, para o poliamor ainda menos. E olha que sou bi!

- Se não consegue amar uma mulher, ame a Deus. Ame um homem.

- É impossível amar a Deus. Ama-se independentemente das virtudes de quem se ama. Cultua-se a Deus justamente devido às Suas virtudes, falta de defeitos e por Ser Deus. Por isso Jesus não pode ser Deus, que é o inverso de Sócrates: "Só sei que tudo sei". O Messias só mudou a humanidade depois que a humanidade o mudou. Tornou-se grande ao dividir a História em antes e depois, mas se fosse maior não teria restado espaço para um Antes. Deus é um Ser naturalmente sombrio. Como ensina o Genesis, as trevas o acompanham desde sempre e a luz é apenas artificialidade recente. Fora necessário criá-la.

- Apaixonei-me incontáveis vezes e em todas elas quis viver e morrer. Fui rei, ladrão, escravo - suspirou Vando.

- A caverna de Platão, discípulo de Sócrates, conta a trajetória de um ex-escravoceta.

(fim da primeira parte)