A AMBIGUIDADE DO PRESENTE

Ao vê-la destacar-se no meio de todos aqueles presentes,

ele entendeu que precisava urgentemente se aproximar, e fazer-se presente.

Ela troca olhares, escuta o tom da voz e admira seus cabelos negros bem penteados e entende que ele poderia estar presente.

Assenhorados pela coragem e desejo, aproximando-se aos passos da valsa, observavam e registravam suas impressões:

Ela sentia a força daquele punho que apoiava sua singela mão, sentia o perfume cítrico e amadeirado que o tornara o ar mais agradável do salão, e prestava-se a entender as poucas palavras tentando fazer uma leitura do que ele considerava vida.

Ele observava seu belo pescoço, orelhas e decote, para ver quais pedras combinariam aos brincos e pingentes e que vestido a tornaria mais bela que já consegui ser, se isto fosse possível.

Trocam drinques e contatos; na ânsia de que aquela noite se tornasse um presente para resto de suas vidas, e assim encerra-se aquele presente.

No dia seguinte ela recebe a sexta de café com lindas rosas amarelas, na etiqueta o referencial é uma floricultura de luxo da cidade.

Presente para ele é o que se pode ofertar, a dádiva que custa um valor, para representar o valor do outro.

O telefone toca, do outro lado a linda e empolgante voz encanta o ambiente e marca com alegria o dia, era ela ligando para presenteá-lo com a gratidão e votos de um lindo dia.

Presente para ela era o hoje, e tudo que conseguimos fazer em apenas um dia para torna-lo o melhor dia de todos.

E foi a partir daí que eles começaram a se fazer presentes um na vida do outro por longo tempo.

Ela acordara cedinho, fazia preces, se beliscava para constatar que estava viva, presente para ela, era a vida, o dia novo que se tornou real.

Ele acordava cedo, olhava os catálogos e traçava um próximo alvo, presente para ele era o que se conquistava por existir.

Ela passeava pelo jardim todas as manhas, admirava as flores, trocava palavras de carinho e incentivo com o jardineiro, conferia a previsão do tempo e saia para viver.

Presente para ela era a oportunidade de reconhecer e agradecer tudo o que existia e favorecia a vida.

Ele ligava cedinho para conselheiros e coachings profissionais para receber o reconhecimento das últimas negociações e do novo prestígio alcançado na sociedade.

Presente para ele é o que se conquista com trabalho, força, inteligência e dinheiro.

Ela prezava a família, não saia antes de receber a benção do pai, e o aconchegante abraço da mãe; atualizava a única irmã das novidades da vida, falava dele em tom de gargalhadas, sonhando com o futuro.

Ela sabia se alegrar no presente que subsiste na graça de ter o outro, sorrisos, abraços, afetos...

Ele reunia a família nos poucos segundos que tinha para falar do novo patamar de status, das novas aquisições e exibir o novo e exclusivo smoking que seu estilista arranjou em seu corpo.

Ele só se satisfazia na graça de ser para o outro, joias, carros chiques, títulos.

Ele entendia que cada atraso para o encontro, cada dia a mais de trabalho, potencializava a graça do presente;

ela entendia que cada falha de estar, potencializava a falta do presente de ser presente, se fazendo o melhor de todos os presentes.

E foi no excesso de ausências bem justificadas que ele sacrificou o presente da confiança de saber que ela recebera da vida, a dádiva de saber que seus dias estariam limitados por uma patologia raríssima e fatal.

Dadiva?

Sim era assim que ela considerava ao constatar as estatísticas das vítimas da falta de assistência médica e de diagnósticos nos países subdesenvolvidos.

E foi naquele presente, onde ele considerava-se satisfeito pelo esforço de conseguir comprar o melhor de todos os presentes e dirigia-se radiante à casa dela; foi no dia exato que encontrou tempo e graça para admirarem juntos o por do sol ao som dos pássaros que ela costumava acompanhar com assobios; que ele se descomprometeu da agenda para assistirem juntos a série preferida dela; que ele conseguiu encontrar graça em sorrir para a empregada que o saudou educadamente a porta, mesmo que até então ele considerava isto insignificante...

Ele a ouviu dizer:

- Ela não se faz mais presente, tronou-se um presente ao Deus da eternidade.