Não levo!

Os dois entreolhavam-se, regrados com aquele patético remorso dos tempos idos. Uma delicada mistura de amargura com melancolia na receita do bolo que estavam prestes a comer.

- Vamos, alegra-te! Fartai do que te servem.

Um abismo emergira entre ambos. Tratava-se de quem estava disposto a inaugurar a primeira passada na estreita tábua que os ligavam. Podre! Fina e podre. Ele olhava receoso, sabia que ao primeiro sinal de peso tudo se volveria pedaços. Mas ela estava ali, delicadamente estendendo sua mão:

- Vens! Leve tudo o que ficou guardado e, no entanto, não levastes da última vez.

Ah! Seria uma bela queda! – pensou ele.

Ela esqueceu-se, no entanto, talvez na sanha de fazê-lo atravessar, que não devia ter pousado delicadamente, talvez por engano, seu pezinho naquela estreita tábua. Podre! Fina e podre.

- Não levo! (disse ele enquanto ela dava um glorioso voo que sequer pudera contemplar).

De vez enquando ele se lembrava de quando não existia nem tábuas, nem abismos. Em raro regozijo, o canto de sua boca ensaiava, por conta própria, um sincero sorriso. Prontamente abortado.

bily anov
Enviado por bily anov em 23/08/2018
Reeditado em 23/08/2018
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