Quase morta ... Série: Mães abusivas

Quase morte...

Sempre tive problemas com minha genitora.

Lembro-me que aos cinco anos ela disse que eu estava competindo com ela pelo marido dele, isso, em uma das poucas reuniões de família que me vêm à lembrança. Ela não disse que era uma competição por meu pai. Eu era pequena, mas, lembro que uma tia minha, cunhada dela, disse que isso era doentio por parte de uma mãe. Lembro-me que essa tia me resgatou das broncas dos outros, colocando-me em seu colo e disse que por certo eu queria a atenção de “meu pai”. Ela frisou bem. Eu era pequena, mas, entendi que podia confiar nela. Era linda com aquele turbante colorido.

O tempo passou, essa tia, por insistência minha, se tornou minha madrinha - a genitora deixou porque tinha certeza que eu ia odiar a escolha depois. Ela se arrependeria amargamente dessa permissão.

A primeira briga séria em que a megera me feriu, liguei para minha tia e quando ela chegou, não lhe permitiram entrar. Lembro da voz de meu tio, dizendo para ela que as decisões de mães são sagradas e que embora a igreja lhe dessem poder de mãe, legalmente ela não era. Recomecei meu choro silencioso, entretanto, ouvi a tia dizer: “ Então você vai me deixar só?”.

Os vizinhos estavam mandando minha tia embora. Eles adoravam a doce criatura que me gerou.

Minha tia se foi. A má bruxa veio para meu lado com um chicote de palha e me bateu muito. Eu segurava o choro, enquanto ela dizia que eu era tão ruim que não chorava. Eu não chorava apenas por medo de apanhar mais. Ela foi lá na cozinha, pegou uma colher, esquentou no fogo e veio em minha direção. Não era a primeira vez que o fazia, mas, em todas fora por ameaça, se eu contasse a alguém o que ela fazia. Tentei fugi, mas, ela conseguiu me alcançar antes que fosse para meu quarto.

A colher grudou na minha língua. Fritou-a. Eu desmaiei de dor. Ela me despertou com água do chuveiro. Na verdade, me colocou no chão e ligou a água.

Acredito que antes de desmaiar, eu tenha gritado. Voltei do desmaio com dores horrendas no corpo, na boca e na alma.

Eu tinha nove anos. Foi a última vez que pensei em morrer.

Tranquei o banheiro e fiquei ali, me sentindo desprotegida. Meu pai só voltaria de viagem na Páscoa e era semana de Carnaval…

Acho que a dor me apagou antes de eu descobrir uma forma de morrer ali, sozinha.

Então um estrondo se fez e acordei. Pensei que era algum bloco de rua atrasado, então, a voz de meu tio se fez ouvir: “Dulce deve estar no banheiro”. Tive certeza que sonhava, então, as mãos pesadas de um policial me retirou do chão. Minha tia, por não achar toalha, retirou seu turbante e me cobriu com tanto cuidado que eu pensei que era mesmo sonho, quase não me doíam as feridas no corpo.

A polícia me levou para o hospital, meus tios foram espremidos na viatura.

O médico, quando me descobriu, empertigou-se e fez o sinal da cruz. A enfermeira, que ainda não me vira, lembro-lhe que era evangélico, mas, ela também fez o sinal da cruz quando me viu.

Eu sentia as mãos de minha tia, retirando seu turbante de seda de meu corpo. Nunca vira meu corpo depois de uma surra.

O policial estava tirando foto, o médico começou usar uma pinça para retirar palha de minhas feridas e então, me disse que aquilo iria servir como exame de corpo delito. Eu nada sentia, ou melhor, sentia tudo, mas, era indiferente, sabia que depois iam me dar para a má bruxa e ela iria fazer pior.

Não sei quando fui transferida de hospital. Estava em outro. Minha boca estava enorme, eu conseguia ver meus lábios expostos, ali, mesmo sem espelho.

Meu pai chegou na quarta-feira de cinzas. E começou me pedir perdão por se afastar de mim - “ sua mãe tinha ciúmes de você, querida”. Minha tia gemeu baixinho: “aquilo não gosta de ninguém”. Meu pai respondeu seco:”Agora eu sei, Áfra! Quem sabe amar não fere um filho assim!”.

Dormi com a mão de meu pai a alisar meus cabelos, conhecia a canção que ele fez para mim, quando nasci. Entretanto, o sono veio um minuto depois de eu pensar: “como me perdi dele”.

Os dias se arrastaram ali no hospital. Fiz dez anos no dia que reconstruíram meus lábio inferior.

Uma semana depois o médico disse-me que eu iria ter alta.

Eu já podia falar, mas, evitava. Sabia que tudo o que falasse seria usado contra mim.

Meu pai já não viajava mais. Era encarregado de uma empresa de distribuição de alimentos. Durante todo o tempo que fiquei internada, ele viera ficar comigo parte da noite. Nunca nos falamos nesse período. Ele cantava para mim e prometia tocar gaita e violão quando saíssemos dali.

Na hora da alta, temendo voltar ver a megera, pedi para ficar no hospital. O médico riu e disse que meu quarto novo era melhor que o do hospital e eu não teria que dividir com outros doentes. Calei-me, sabendo que era esse meu destino. Meu pai chegou só. Com uma caixa enorme de boneca, um monte de bexigas coloridas e uma plaquinha de pai babão pendurada no pescoço. Sorria tímido e desajeitado e resolvi fingir uma alegria que não sentia, mas, nada perguntei. Abri a boneca, os médicos choravam, tiravam fotos e, para desgosto de meu pai, para eles e para os enfermeiros eu sorria feliz.

Então, quando saímos na recepção, eu vi o resto da família. Meus avós paternos tinham chegado da Bahia. O velho trazia uma plaquinha igual a de meu pai, de avô babão e veio em minha direção, enorme. Não sei porque tinha medo dele, porém, ali não tinha medo algum. Vi tia Afra e tio Paulo atrás deles, sorriam.

Deixei a tristeza guardada e curti o momento, então, fomos embora. No caminhão de meu pai. Meus avós foram sozinhos no carro de tio Paulo.

Dormi logo que subi na boleia. E enquanto estava aninhada no colo da tia, sua voz entrou em meu sonho: “ conseguiram conversar, cunhado? Falou para ela que não vai morar mais com aquela mulher”. E ele invadiu meu sonho: “Não consegui, cunhada. Vejo nos olhos dela ainda o medo que tem de mim”. Não consegui discernir sonho e realidade. Continuaram conversando e então ele perguntou se não era melhor parar para todos comerem. Ela disse que não.

O sono fechou de vez, dormi sem pesadelos.

Acordei na manhã seguinte. Estava em um quarto rosa, novo, cheirava a algo que não conseguia identificar, o teto era cheio de estrelas coloridas, virei-me de lado e em uma poltrona branca de braços rosas, meu pai dormia, com um livro escorregado no colo…

Ouvi minha voz confusa perguntar onde estávamos e, quando não esperava resposta, ele acordou aflito: “Eu dormi, desculpe, Princesa”.

E me senti princesa. Mesmo que não soubesse ainda qual era minha real situação. Ele levantou-se, deu-me um beijo já não tão desajeitado na testa e disse que já voltava. E voltou logo. Com tio Paulo e tia Afra.

Minha tia perguntou se eu queria tomar banho antes de conversar. Aceitei a oferta, descendo sem jeito da cama desconhecida. Ela guiou-me pelo quarto até uma porta discreta, escondida por um par de cortinas floridas.

A primeira coisa que vi no banheiro foi um enorme espelho e então vi meu rosto. Era um rosto comum de menina pequena, bochechas rosadas, levemente infladas, olhos negros, boca menos comum. Olhei melhor e vi uma minúscula cicatriz e quando desci a camisola, minha tia já voltará com um vestido para eu vestir depois do banho. Viu que eu olhava para meus braços e pernas quase sem marcas e para o dorso todo marcado, comparando as feridas. Ela abriu os braços, em silêncio, me aninhei ali. Levou-me para o box, abriu-o, ligou o chuveiro, colocou-me em uma enorme pia e me ganhou com cuidado. Me deixou mergulhada em umas espumas cheirosas e ficou andando pelo banheiro, dizendo onde tinha cada coisa: calcinhas e toalhas, primeira porta… Sua voz foi sumindo de meus ouvidos, enquanto perguntas surgiam sobre minha mente infantil. Não sei quanto tempo ela levou para perceber, lembro-me de sua mão delicada chamando: “Dulce, florzinha, vamos sair, tem dois reis ali fora quase virando monstros famintos”. Ergui-me sem receio e sai da pia enorme que ela disse ser uma banheira. Sequei-me e vesti as roupinhas que ela separará. Eram lindas.

Fomos para a sala de jantar.

Tomamos café como os das novelas que a megera assistia. Tinha frutas, cereais, Pães, queijos e eu comi como um dragão. Ninguém emitiu um comentário ruim sobre minha gula. Quando afastei o prato, agradecida, ela perguntou se eu desejava algo. Quis lavar os pratos. Meu tio disse que era a tarefa de titia. E ela piscou, dizendo-me: “Não se preocupe, aqui os meninos cozinham”.

Não entendi a piscada, mas, percebi que tinha que agradecer ao tio pelo bolo de chocolate, estava delicioso. Ele respondeu, da pia, que era a “a especialidade da casa”. Os adultos riram, eu não entendi, mas, gostei de ver gente feliz.

Então, papai disse que tinha que ir trabalhar, o tio beijou-me e beijou a tia e se foi. E ficamos tia-madrinha e eu na casa.

Ficou para ela a responsabilidade de me avisar que aquela era a minha casa; que meu pai também viveria ali e levou-me ao quarto dele. Vi a gaita e o violão sobre a cama e meu coração se aqueceu com a promessa que ele fizera de cantar para mim…

Do outro lado da casa, ficavam os quartos dela e dos avós, que segundo ela viriam muito mais vezes.

Perguntei se poderia esquecer minha dor. Ela disse que poderíamos falar dela quando eu estivesse pronta.

As lembranças ruins foram sendo sufocadas pela vida alegre. Tia Afra teve os gêmeos idênticos quando fiz dezesseis anos. Meus avós mudaram em definitivo para nosso bairro quando fiz quinze anos, mas, continuaram vindo dormir por dias no quarto deles. Papai arrumou uma namorada, Liana, que me adora, ela é irmã de minha psicóloga. Precisei de muito apoio para seguir adiante. Liana e papai nunca se casaram e eu não sou culpada disso. Eles vivem um relacionamento aberto, cada um tem sua casa, embora, eles dormem em nossa casa sempre, cada vez com mais frequência... Aos poucos comecei chamar meus tios de pais e, hoje, decidi que no dia que eu casar, quero entrar com os três na igreja. Sim, meu pai, meu tio e minha tia tornaram-se uma figura tríplice e até os gêmeos aceitam isso, quando meus tios lhes negam algo, correm ao meu pai pedir apoio.

Meu pai abandonou as estradas, mesmo que sempre tenha amado ser caminhoneiro. Os advogados diziam que se minha mãe insistissem e um juiz tradicional pegasse o caso, ela não ter residência permanente atrapalharia tudo, mesmo que ela não ganhasse em definitivo, eu seria enviada à uma instituição de apoio ao menor.

Fico escandalizada, hoje que entendo os abusos de que fui vítima. Como assim um juiz teria coragem de cogitar dar a guarda de uma criança ferida ao genitor que o feriu. Minha mãe nunca foi presa pelos crimes que cometeu. Nunca se arrependeu. Conta que os ferimentos que apresentava foram auto-infligidos. Muita gente acredita. Certo é que alguns de nossos vizinhos sequer sabiam que existia uma criança na casa onde morávamos… E. voltando a questão da prisão, na maioria dos casos de violência contra criança, os adultos não são realmente castigados nos rigores da Lei e, se for uma mulher quem fere, então a coisa fica por isso mesmo...Mãe é sagrada, dizem, sagrada é minha tia, que abriu mão de sua privacidade para abrigar uma criança com problemas e conseguiu com o amor dela resgatar os laços que me uniam antes de tudo, ao meu pai.

Somos felizes, embora eu não tenha esquecido nenhumas das dores do passado. Mas, com a mudança de idade fui entendendo que precisava deixar atrás, sem sofrer tanto. A má bruxa me procurou para pedir que eu voltasse a viver com ela anos depois, quando voltei ao lugar que vivi, para rever amigos de tia Afra. E com os olhos súplices e amorosos, disse que temia morrer sozinha, que era minha obrigação ficar com ela, olhei em seus olhos e vi a frieza que eles tinham, percebi que ela queria apenas sua presa de volta. Quando segui, calada, ela berrou: “Deve estar feliz, não é prostituta! Conseguiu ficar com meu homem!” Eu falei alto, sem me voltar para ela:”Não dona. Fiquei com meu pai, seu homem é marido de minha linda e carinhosa madrasta ’! E fui-me certa que para ela isso era o pior, eu não me senti vítima, ela já não tinha poder sobre mim…

Elisabeth Lorena Alves
Enviado por Elisabeth Lorena Alves em 28/08/2018
Reeditado em 05/09/2018
Código do texto: T6432795
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