Paraíso

Eu tinha acabado assinar o meu último escrito num papel à beira da cama,

e Maria fumava talvez o décimo cigarro da noite, recostada a janela de seu quarto,

vendo os carros presos no trânsito da Avenida Conde da Boa Vista. Ela costumava perder horas dos seus dias olhando para a rua e fumando. – Perder tempo era o que ela fazia de melhor, ela dizia. -

Mas eu não achava que aquilo realmente fosse uma perda de tempo, já que eu desperdiçava o meu, nas mais variadas inutilidades, que me distanciavam de mim mesmo, enquanto ela, mesmo com os olhos perdidos do lado de fora, tinha a mente vagando cada vez mais profundamente para dentro de si mesma.

Ela se virou e lançou a bituca de cigarro ainda acesa dentro de uma caneca que fazia de cinzeiro e se voltou para mim.

- Quer um café? – Perguntou-me, e abriu um sorriso que eu não estava muito acostumado em ver no seu rosto.

- Se eu tomar café agora não vou conseguir dormir mais tarde...

- Mas você já não dorme mesmo. Qual a diferença?

- Verdade. Verdade.

- Então eu vou fazer pra nós dois.

- Tá certo.

Ela apanhou a calcinha que tinha largado no chão e vestiu displicentemente, quase caindo no processo.

Parei pra reler o texto quando ela desapareceu na cozinha e por fim, amassei o papel e joguei na lixeira.

Aquilo sim tinha sido uma perda de tempo.

O gato de Maria pulou na cama do meu lado e me olhou, como se minha presença ali fosse completamente indesejada. O bicho não ia muito com a minha cara e fazia questão de deixar isso claro.

Levantei-me, fui até a lixeira e peguei a bola de papel amassado que continha o meu texto.

Me encostei na parede e reli pausadamente, recitando para mim mesmo cada verso e cada linha.

Talvez eu pudesse salvar alguma coisa ali.

De alguma forma, escrever à mão havia se tornado quase impossível para mim. Ainda mais na presença de alguém. Por isso, resolvi que guardaria a ideia para quando estivesse em casa e no computador, e coloquei o papel amassado no bolso da calça jogada à beira da cama.

Maria voltou com duas canecas de café, me entregou uma e se sentou à beira da cama.

Bebericou o conteúdo da sua caneca e ficou me olhando, como se quisesse dizer algo.

Fiquei com os olhos perdidos em seus seios e com o pensamento vagando sobre uma coisa ou outra que acontecera em nossa história até ali, até que ela me interrompeu.

- O que você estava escrevendo?

- Não sei bem dizer.

- Como assim?

- Só eram pensamentos. Coisas que me vêm à cabeça aleatoriamente.

- Posso ler?

- Não terminei. Não está lá essas coisas.

- Por quê o mistério?

- Não é mistério.

- Então deixa eu ler.

- Tá...

Peguei o papel amassado do bolso da calça e entreguei à Maria.

Ela desamassou e leu, sussurrando as palavras e bebericando o café a cada intervalo no texto.

Por fim ela ficou de pé e começou a ler em voz alta

“Sequer tenho noção,

do quanto estou perdido dentro de mim mesmo,

enquanto a jovem de vinte e poucos

completamente nua

termina de matar mais um cigarro à beira da janela

hoje mais cedo, fomos cúmplices

no assassinato de duas garrafas de vinho seco,

ou será que foram três?

Mas ela continua firme e sóbria,

com o olhar mais profundo e solene que eu me lembro de ter encontrado

nos últimos tempos...

e com seu silêncio sempre oportuno,

que não temos vergonha de compartilhar, quando cansamos das palavras

e nos resumimos ao sexo como forma de comunicação.

Talvez nós possamos fazê-lo novamente,

antes que eu tenha que lhe deixar

Talvez eu possa me jogar dentro dela

e me afogar na torrente de seus cabelos negros,

como piche,

mais uma vez

antes da noite acabar”

Fiquei em silêncio,

tenso, por ouvir da boca dela as palavras com as quais eu tinha lutado a noite toda.

De alguma forma ela tinha dado vida àquilo tudo, e eu estava ali, estático,

sem saber o que ela pensava

- Preciso de um cigarro – Ela quebrou o silêncio, e foi até a mesinha à beira da janela, onde estava o seu fumo.

Acendeu um cigarro e fumou calada, sem tirar os olhos de mim.

Acho que ela gostava de ver minha inquietude.

- Eu gosto da forma que você se expressa. Mesmo quando você não vai direto ao ponto, e eu sei exatamente o que você quer dizer.

- Ir direto ao ponto não é bem o meu forte.

- Gosto desses tipos prolixos. Só nunca tinha ficado com um que escrevesse sobre o que sente.

- É uma forma de conversar comigo mesmo.

Ela sorriu e voltou a prestar atenção no cigarro e na rua lá embaixo.

Quando acabou, lançou novamente a bituca na caneca e se virou para mim.

Havia um sorriso em seu rosto

quando ela deixou que sua calcinha caísse até o chão

e eu novamente pude ver

o paraíso.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 10/09/2018
Reeditado em 10/09/2018
Código do texto: T6444263
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