LEITURAS AFRICANAS - PARTE III

"NÓS, OS DO MAKULUSU", de LUANDINO VIEIRA, 1975 - Romance-narrativa de amor e morte, síntese da simplicidade e da tragédia no dia-a-dia, "o amor e a vida são jogos de morte". A construção da obra (tema das décadas de 60/70) evolui em progressão cíclica: recorrências, analogias, modulações, semântica do vaivém, cada vez mais longe e fundo. A palavra (nome) é um problema cultural, a dinâmica interior é ressonância da dinâmica coletiva. Em relevo, o episódio da correção do nome (Eutrudes-Gertrudes): "...e a professora me corrigiu parecia gritava na criada que no nome da minha mãe tinha" - aculturação mutilante - não só gramática da língua, mas da gramática da classe dominante: nome, não matéria amorfa e sim história. Referência a rimas, sinônimos, alfabeto, caligrafia, assinatura, dicionário: "sabedoria de cinco séculos"... não uma correção qualquer de escola. O autor, no trajeto literário, avança ao ritmo poético, íntimo, popular, e a palavra - instrumento de trabalho - questiona a própria produção. A estória desenrola-se em movimentação rítmica, entre desejo e revolta, com o apoio temático da água que percorre toda a narrativa: mar (caminho do inimigo, iminência devoração) e chuva (conforto familiar e fecundidade da própria existência). Sangue derramado e morte, motivo desencadeador do conflito-estória X sangue correndo nas veias, presente que não desarma, ritmo da felicidade. Encadeamentos: mar (cena histórica antiga e estranha), também caminho forçado e choroso da mãe; a chuva, cumulativamente erotismo e testemunha dos dramas cotidianos. Núcleo familiar, fundamento da narrativa - jogo de forças, vaivem dos dias e anos, confronto mútuo: pai colonialista continua-se na filha, professora, que regressa a Portugal; mãe, charneira-dupla-simples, sem compreender a luta armada, partilhando a sorte dos refugiados; filho mais velho, personagem-narrador, oposto do pai; Maninho, o irmão, continua a mãe, vítima real e ritual no espaço duplo e na condição de explorado. Em paralelo, pequeno grupo homogêneo, de dois irmãos e o Paizinho, compensador do pai-inimigo. A morte de Maninho abala a estrutura - não apenas como a "memória de Proust", mas - no espaço ou tempo da narrativa - a presença de morto e vivo, na tragédia de mal-entendido, presente na rua e no caixão, vítima expiatória, simbólica de dois povos na terra de Luanda. Contrapontos íntimos de apelo e invcação à repressão bélica sobre a liberdade e a fidelidade ao povo manietado: amor-ternura na terra, na mãe e na mulher amada; mãe, figura axial, dupla, ainda sinais da apanha da azeitona, dos frios invernos e da tragédia do mar, é o sinal da contradição, não o dom de receber integralmente o objeto do desejo, mas faz parte da história - complexa posição na fronteira de dois espaços, consciência da relação e marco de aceitação e recusa.

"NÃO ADIANTA CHORAR (contos coloniais)", de A. BOBELA MOTTA, 1976 - Seis narrativas, vividas ao longo dos anos, concreto tempo histórico, Angola, fascista colonialismo, discurso comum da denúncia serena observação atenta e lúcida dos homens e da vida, esperança entre crestada (chamuscada) e vivida; sobriedade estilística, largo predomínio do referencial, narrativa diacrônica, através dos tempos, vocábulos invulgares e angolanismos, desvio estático aos códigos mais conhecidos. Contos coloniais, traços de denúncia, sistema opresssor, clara atitude dialética. Personagens: colonos, administradores, funcionários e militares - forçs de ocupação, agentes de toda a casta de prepotência, símbolos imediatos da exploração colomial-capitalista X o homem negro. Conflito lavrado ou aberto, violência e revolta, antagonismo, corrupção, negreirismo, brutalidade, coisificação do homem autóctone, colonialismo português, consciência emancipalista como valores antiéticos...

"SÔ BICHEIRA E OUTROS CONTOS", de A. BOBELA MOTTA, 1978 - Homem de duas pátrias,

combatente para a libertação de Angola (adotou a cidadania), defensor da dignificação do negro contra a hegemonia branca, mão firme e sincera contra o racismo... Obra literária com valores conceptuais de personalidade, memória biográfica.em seu último livro, continuação de "Não adianta chorar", 1976. Apenas cinco contos - simples os meios, as palavras e as estruturas narrativas. Visão dupla do colono, sistema de completa segregação do negro, sua sub-humanização, angolano miserável, apunhalado pelas instituições administrativas com o fariseismo dos funcionários brancos. Vergonha coletiva - em todos os contos, dicotomia contrária: explorado X explorador, contraposição entre abastança e a mais extrema dependência, total desigualdade cultural. No conto-título, evolução e inversão do mundo escravo a caminho da liberdade e coragem da guerra de libertação, por epílogo o assassinato do filho do colono e da negra Rosa pelo próprio pai. Emblemática do colonialismo: "...sentia-se com forças e não se queixava da má sorte. Conseguira aquele emprego que lhe assegurava um conto de réis por mês, a substituir a empregada branca que se substituíra porque ganhava só três".

"PROSAS", de ARNALDO SANTOS, 1977 - Vinte e oito textos em sensação de empatia - figuras anônimas, angolas das multidões. Alternância de tons, entre lirismo, ironia e paródia. Motivos africanos localizam o autor na linha de afirmação histórico-literária angolana.da negritude, dedo nas chagas abertas à raça, ambígua experiência do sofrimento (como falava SARTRE em "Orfeu Negro"), consciência negra tornada histórica. Caminho percorrido nos textos, da chegada, "Despertar" do Gigi, avaliação na contextualidade sócio-étnica e projecção histórica, objetivada, a situações antípodas dentro de uma família, como "A morte do velho Noronha" e os outros. Consciência unificante, apreensão intuitiva da condição humana e memória ainda fresca de um passado histórico, de "raça caída". Oposição branco X negro em certos ângulos peculiares - o negro, objeto bizarro, reduzido a uma função parasita, a de distrair (no caso, atemorizar) os homens brancos. Desmitificação em "A menina Vitória", não branca, professora formada na Metrópole, no papel de 'neutralizar' a pronúncia e a sintaxe, grau zero na criatividade africana, redação de Gigi e outros na linguagem oficial, ele tendo que esquecer o colorido vivo local, de animais da floresta, decorando citações no livro escolar de leitura. "Prosas", ancestral no gênero de diário cortesão ou conventual, registro de eventos significativos, crõnica modrna do povo neste autor, preservando certo frescor de espontaneidade, perto da novelística, intuito jornalístico.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 23/09/2018
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