PRIMITIVOS

- E voltamos aqui com o nosso ''Mesa de Sexta'', programa que reúne nossos intelectuais do dia a dia, a fim de discutir o cotidiano e as questões que norteiam nossa realidade. - o apresentador faz a chamada para o último bloco daquele programa, que já estaria atingindo vários pontos de audiência.

Uma sexta-feira quente. Estavam sentados eles, Márcio Gastaldi, Filipe Lopeña e João Saldanha, todos lado a lado naquelas cadeiras acolchoadas. Dois deles são mestrados, professores de renomadas universidades no país; já o terceiro é um analista que contrapõe os ideais e os argumentos dos dois primeiros.

Juntos, eles colocam em pauta algo que não tem saído das opiniões populares haviam décadas:

- Senhores, conforme o tópico abordado no bloco anterior, ''primitivos podem ou não podem ser considerados parte da nossa sociedade?'', com a palavra, o professor e filósofo Márcio Gastaldi. - o apresentador dirigi-se ao primeiro convidado.

- Bom, primeiramente que eu não acho que o termo ''primitivo'' seja, na realidade, um termo justo para aplicarmos à estes seres. Devemos nos lembrar que nós, enquanto Homo Sapiens Sapiens, somos o ''homem que sabe que sabe''. Logo, acho que se fizermos um esforço maior enquanto sociedade civilizada, conseguiremos enxergar estas vítimas da nossa casta mais grossa, como os cidadãos que eles já são. - toda a eloquência era mais que explícita na retórica de Gastaldi.

Beirando seus já 40 anos de idade, ele era tido como um ícone entre os estudantes de áreas que abrangiam em demasia o pensamento crítico. Suas palestras voltadas à professores de Filosofia e Sociologia eram o que haviam de melhor no meio acadêmico, de acordo com os próprios inseridos nestes meios.

- Filipe Lopeña...- o apresentador passa a palavra ao integrante situado a sua esquerda.

- Eu acho que vale lembrar ao nosso colega também que pra se ser um cidadão é necessário que haja noção dos princípios civis mais básicos. Exemplo disso é se fazer cumprir seus deveres, que é algo que não podemos esperar de uma raça como esta. Me desculpe mas, seres que se alimentam arbitrariamente da carne de seres humanos não podem ser enquadrados no cenário social como um todo, seja lá em qual casta for. A gente não pode se deixar levar pelos aspectos ''humanos'' destas criaturas. Membros como braços, pernas, entre outros, são mutáveis conforme já foi comprovado por vários institutos de pesquisa pelo Brasil, mostrando que eles seguem um modelo de design correspondentes ao que ocorreria em um processo comum de seleção natural nos seres que temos na Terra, por exemplo. A cadeia alimentar, pra eles, simplesmente é algo que não existe. Portanto, acho que classificá-los como seres primitivos, é não só justo como também sensato a se fazer.

Lopeña já tinha a postura mais descontraída. Seu jeito de agir condizia muito com o que muitos jovens brasileiros fariam comumente. Ele defendia a ideia de que nós nunca temos a identidade cem por cento formada, conforme acreditamos possuir ao longo de vários anos. Com toda essa hermenêutica, seu público se fazia muito mais abrangente.

- Permita-me apenas tomar a parte por um instante. - nesta hora, o apresentador toma pra si a palavra e mostra ao público presente no auditório uma imagem daquilo que estava sendo usado como objeto de debate. - Pra quem está chegando agora, uma breve ressalva de um dos modelos dos seres que já habitam nosso planeta há mais de trinta anos.

Na imagem mostrada no telão, uma mulher aparentemente normal, vislumbrando sua evidente meia idade, explícitas principalmente nos fios de cabelos brancos. Trajava uma roupa de corrida, ao que também aparentava e se encontrava num parque em um dia ensolarado, conforme estara sendo ilustrado ao fundo.

- Vou pedir pra que vocês observem as mãos...- o apresentador retoma - ...professor Márcio Gastaldi, o senhor acha válido o argumento de que essa deformidade na estrutura destes seres seja mesmo provida de uma seleção natural?

- É, acho que o senhor Lopeña não seria uma presa difícil em um safari. - ouvem-se risos da platéia - Afinal, Jorge, você como o mediador deste debate, deve imaginar quantos milhões de anos levamos para evoluirmos e sermos o que somos hoje, correto? O que nos dá como garantia segura de que, o que está acontecendo com eles, não seja apenas uma árdua etapa natural devido às condições do planeta em que vieram? Por anos suspeitamos de vida lá fora...mas nunca que nós poderíamos assegurar que, existindo de fato, como já sabemos, esta iria passar exatamente pelo mesmo processo que passamos.

- Isso quer dizer que você acredita que, um dia, eles ficarão exatamente como nós?

- É uma hipótese. - afirma Gastaldi - Devemos nos lembrar de que estamos separados dos hominídeos há apenas alguns milhares de anos. Sabe-se lá se o que somos hoje é o final ou se é apenas uma etapa de uma constante evolução. Creio que tudo isso deva ser levado em conta.

- Bem, temos aqui também o analista João Saldanha que têm causado bastante euforia popular devido às suas opiniões um tanto...controversas a maioria. Estou certo? João, por gentileza...

Este homem, por sua vez, se mostra apavorado. Com as mãos visivelmente trêmulas e com suas pernas inquietas, ele começa:

-Não...não!! Olhem o que estamos debatendo! ''Como devemos chamá-las''?! Estas criaturas precisam ser mantidas em...como posso dizer...aquelas bases militares!! Precisam ser estudadas! Veja que estamos lidando com seres de outro planeta!

- Bem, eu acho que está mais do que óbvio que este homem aqui presente é a favor de repressão com base em forças militares. Sua visão de mundo é um tanto...interessante, senhor Saldanha, ao mesmo tempo que deplorável. - Gastaldi toma a parte mantendo sua eloquência diante da situação.

- Acho que por outro lado a gente também não deve culpá-lo por isso. - Lopeña segue adiante com o raciocínio - Veja que qualquer tipo de força que carrega este traço de ''desconhecido'' vai ser vista pela sociedade dessa forma. Vamos concordar que é preciso sim, bastante tempo pra nos deixarmos levar por toda essa ideia que o senhor, por outro lado, está nos propondo a considerar...de que estes animais, de fato, podem ser cidadãos!

- Você não seja leviano, senhor, por gentileza! - Gastaldi exalta um pouco seu tom de voz.

- Senhores, por gentileza, a palavra era do analista João Saldanha, então eu peço que os senhores deixem que ele conclua o raciocínio. Por favor, João...

- Agradeço, Jorge, e até queria fazer um apelo...pelo amor de deus, ou seja lá que...- ele faz uma pausa ofegante - ...tomem cuidado. Há um primitivo vivendo entre você? Sua família, sua classe, seu grupo de amigos? Por favor...se afastem deles. A qualquer momento, eles podem sentir gosto pela sua carne e devorá-la enquanto vocês estão jogando tênis ou numa conversa descontraída num bar!! -

Ele aumenta o tom de voz fazendo a platéia entrar em clima de conversação desenfreada.

- Por favor, silêncio! Já entraremos com as perguntas dos telespectadores e do pessoal de casa! - o apresentador tenta manter a ordem.

- Você não entende?! Nenhum de vocês entendem?! Viveram entre nós durante mais de três décadas! Estavam nos estudando, analisando todos os nossos corportamentos e se adaptando!! O governo toma medidas pra deixá-los como iguais entre nós mas nunca serão!! Será questão de tempo até que eles se apossem completamente do nosso planeta!

- Senhor, está um pouco descontrolado, por favor, tente...

- E você?! Está de conchavo com todos eles?! - Saldanha aponta para Jorge, o apresentador - Eu sei que a sardinha que você puxa pra essa raça é o que garante seu rabo na televisão!

- Vocês me desculpem mas, eu não pensei que o debate fosse descer a tal nível, eu acho melhor... - Gastaldi começa a se levantar quando João se descontrola.

- Vai pro inferno, desgraçado!! - a imagem de um homem avançando em direção ao pescoço de outro se mostra presente, quando todos os operadores de câmera, contra-regras e coordenadores vão em direção ao palco para manterem o controle da situação.

A transmissão é imediatamente cortada. O auditório começa a se encontrar com os espectadores fatigados, levantando-se para irem embora. A conversação se ergue novamente entre todos os presentes. Jorge conversa com um dos acionistas através do ponto eletrônico para saber qual será o próximo passo. A transmissão, enfim, não teria mais continuidade. Márcio Gastaldi ajeita o paletó enquanto dirige-se ao aglomerado de executivos nos bastidores. Já João e Fillipe conversam do outro lado:

- Poxa vida mas, eu não sabia que você era tão ferrenho assim contra os primitivos. Eu vi a conferência em que o senhor deu palestra, seu Saldanha. Sempre muito prendado, cordial e simples. Nunca imaginei que teria essa postura ainda mais diante de uma pauta como essa. - Fillipe, de braços cruzados, diz ao seu colega.

- Essa raça acabou com a minha vida. Uma semana atrás, eles mataram minha mãe lá no interior. Sei que foram eles e por intermédio do meu primo. Esse filho da puta ainda vai me pagar, Fillipe...sempre soube que ele era um deles. - João manteve os olhos frios e centrados para o nada, enquanto segurava um copo com água ainda mantendo as mãos trêmulas e geladas.

- Puxa...eu lamento por você. - Fillipe mantém agora um tom mais sereno - Não sabia de toda essa história. Agora entendo o porque de tanto ódio pelos primitivos.

- O pior...é que meu acesso na frente das câmeras nem foi por conta disso...

- O que quer dizer...?

Ambos chegam mais perto um do outro e falam agora em tom de sussurrar:

- Meu acesso pra cima do Gastaldi...foi porque eu vi ele devorando o zelador meia hora antes de entrarmos no ar.

Quinze Pras Seis
Enviado por Quinze Pras Seis em 26/09/2018
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