O CÁGADO, de J. de ALMADA NEGREIROS



FANTÁSTICO - hesitação do leitor e personagem na presentificação da estória. Aqui, personagem não hesita, leitor sim, com a sua vontade e nunca vacilação. Ironia da vontade - epíteto: "muito senhor da sua vontade".

Homem andando na estrada vê bicho - quer levar notícias à sua familia, e depois a prova concreta do que viu. Corre para casa. "A meio caminho ... parou de repente" (mudança da ideia inicial de levar notícias, agora quer levar o bicho). ----- Bicho - "... desconfiado já da primeira vez" - cágado foge, por não querer a coisa. (Animal se opondo à vontade do homem.) ----- Homem não hesita na procura, mas que é uma procura inútil e perdida: atingiu o centro e o outro lado da Terra; afinal, tanta vontade ... mas para quê? Vale a pena esta ardente vontade? ----- Cágado, movido por vontade, esconde-se e reaparece quando bem quer. ----- Humor, riso irônico ao final do conto. Humor negro: após tanto trabalho, encontrou o cágado como a princípio, sereno e casualmente, isto é, o animalzinho é que permitiu ser "achado". ----- Encontro com o mundo estrangeiro faz com que mude a vontade: agora quer voltar para casa. "Vieram-lhe as saudades ... aberto o caminho até casa ... Resolveu-se. Começou a andar o buraco todo ao contrário ..." ----- Não procura mais o quê e sim o porquê - "...curioso quis ver porque era - era o cágado". (Homem quer sempre saber o porquê das coisas.) ----- Multiplicação de personalidade - quer mostrar sua vontade a si próprio: "Caindo em si ... pediu-lhe (a ele mesmo) decisões, novas decisões ... despojado de todas as coisas ... só lhe restava saber cavar com uma pá". (Auto-estima.) ----- Fantástico, interrogação do leitor, tempo da sua incerteza. Resposta (escolha) do leitor define: a) estranho - ele cavando sem parar ou meditar (nem mesmo ao chegar ao centro da Terra) e as hipérboles; b) maravilhoso - o outro mundo, onde se admitem novas leis da natureza (país com leis naturais para seus habitantes; aí, personagem se choca, espanta, começa a sentir-se outra vez - sede...) e resolve voltar. ----- Fábula alegórica: gênero moralizante - dois sentidos para as mesmas palavras, um só discurso, duas interpretações. Como em fábula tradicional ou conto de fadas: "Havia um homem que..." = "Era uma vez... ----- Alegoria, o gastar tempo em prourar uma banalidade. Tanto homem-personagem (denotação) como humanidade (conotação). ----- Enquanto procura, nada acha; depois, objeto da procura se permite ser visto. (Vontade do objeto, não do homem.) ------ Auxiliares mágicos negativos - vara, água do tanque, pá de terra. Nem o sol (fonte de calor, luz, energia) ajuda o homem. ----- A vontade surge de repente e por acaso. "Muito senhor de sua vontade ... sozinho ... pelas estradas a passear." Também animal vindo em casualidade. "... parecia não vir a propósito..." ----- Mas, com todo o acaso, bicho tem vontade própria e "não quer a coisa" - desaparece. ----- Decisão da procura é a partir de ver. "... ver com os olhos da cara" - reforço do ato. ----- Após "recursos naturais", na busca (enfiar mão-cotovelo-braço no buraco), parte para os recursos através de auxiliares. Exageros: "vara compridíssima, que nem é habitual ... noventa e oito baldes ... mais de 50.000.000 de pazadas retirando a terra e ampliando o buraco". (Conotação - tecnologia?) ----- Leitura 1 - personagem realiza atravessar a Terra, chegar a país estrangeiro diferente, mas nem se gloria disto. Leitura 2 - humanidade cruza todos os pontos da Terra, chega a outros planetas /aqui, interpretação do conto ainda muito incerta/, nunca encontra o que busca e continua procurando "algo" initilmente. ----- Leitor estranha não-hesitação de personagem mesmo diante de outro mundo. Nenhuma experiência anterior de sol metálico sonorizado, gente que fala pelo nariz, e ter que ficar de pernas para o ar afim de ver e entender o "país estrangeiro". Personagem tem vontade, mas vontade tola de provar ao mundo sua força de vontade. (Daí, ironia no discurso.) Epíteto - "muito senhor da sua vontade..." ----- Moral da estória poderia ser: "A verdade está no ponto de origem em que o homem o deixou." Seria o eterno retorno às origens? ----- Estorinha - provar a verdade que viu o cágado. Alegoria - provar a verdade absoluta. Pan-determinismo - no mundo do país estrangeiro, tudo ali tem causa - o sol se cobre azinhavrado, o falar pelo nariz, tudo com proporções diferentes. Este achado vem em seguida à vontade de um objeto (não do homem). "Mas a pá safou-se-lhe das mais e foi mais fundo do que ele supunha..." (Se a pá, talvez, presa às mãos do homem, seguisse o rumo dado por ele, não teria chegado ao estranho país.) (O mesmo furar lado a lado, mas em outra direção.) No país estrangeiro, real aceitável para quem vive lá. Houve reação ao estímulo: homem teve saudades de casa, teve sede, a posição do caminhar era incômoda, inadaptou-se - voltou pelo mesmo caminho. ---- Homem só hesita diante do estranho. Enquanto "conhece" ou nada vê de diferente, sua vontade é a eterna procura. À experiência anterior de seu próprio país, ele compara, nada entende, volta. Só recua quando algo vai contra sua própria natureza. ----- Dois equilíbrios semelhantes embora não idênticos. Estrutura da narrativa, natureza do conto: equilíbrio - homem na micro-sociedade familiar; desequilíbrio - vê animal e o quer como prova concreta de sua verdade vista -animal "não quer a coisa" e foge; reequilíbrio - retorno do homem, reaparição misteriosa do cágado. -----Exageros na linguagem - nem com tudo isso, ele consegue achar o animalzinho (ironia pura): buraco onde nada se vê, mais comprido que o braço humano; vara compridíssima, de tamanho nem habitual; balde enorme dos tamanhos que há; 98 baldes ainda não enchem o buraco; infinitas pauzadas; perda de noção de tempo; cavou sem parar até o outro lado da Terra - hesita, não por cansaço ou descrença, mas pelo número exato de pazadas até determinado momento - o maior monte da Europa, que não deixa ver nada, soterra cidade, suja pessoas, não é catástrofe, não mata nem destrói vidas - cansadíssimo, mas não morto, está de ter feito duas vezes o diâmetro da Terra. ----- Homem, senhor da sua vontade, muito senhor, ao final já se assemelha ao trabalhador rural. "...tinha esquecido tudo, estava despojado de todas as coisas (automatismo), só lhe restava saber cavar com uma pá..." "Maldita pá!" (A pá o conduz, a pá conduz a sua vontade.) ----- Homem "não era um vulgar trabalhador rural...", ele tem vontade. Mas ao menos o trabalhador rural tem utilidade, não se gasta em fiosofias ou vontades mesquinhas e imbecis. Automatizado, o rural, mas trabalhador, não passeador de estradas. ----- Fábula - característica: tempo inconcluso, imperfeito do indicativo. "Havia um homem ... andava ..." história real que ele viveu - tempo concluso do fato acontecido: "viu ... acercou-se mais e viu ... pensou ... correu ..." -----Próprio da alegoria - elementos triádicos: ele ficou radiante" (estado); "tinha novidades para contar ao almoço" (pensamento); "deitou a correr" (ação) - para dentro do buraco, "meteu a mão, até o cotovelo, o braço todo" (dimensão ainda curta da procura inicial) - auxiliares: vara, balde, pá - "primeira, segunda, terceira, e era uma maravilha contemplar ... " - "... no cumprimento de um dever, um dever importante, uma questão de vida ou de morte" (gradação) - perdidas noções "de tempo, de espaço e de outras noções do cotidiano" (espaço e tempo mágicos no conto) - reações da família: "o dar por desaparecido, põeb luto, não consente entrada em seu quarto" - como reação, ele sente "sede, sono, cansaço" - sol diferente "não é amarelo, é de cobre azinhavrado,faz barulho nos reflexos" - altura do monte em gradação: "enorme, colossal, o maior dav Europa" ... etc. ----- No fantástico, ruptura de limite entre sujeito e objeto. Não nítido, mas em certo tempo a pá é que conduz o homem. Trocam-se as posições. Personalidade automatizada. "... despojado de todas as coisas ... só lhe restava saber cavar com uma pá. ... a pá safou-se-lhe das mãos e foi ... " ----- No fantástico, transformação de tempo e espaço. Espaço geográfico daquele país é diferente do espaço do país do homem. Tempo suspenso (mágico) para ele durante toda a escavação. Espaço mágico o atravessar toda ab Terra, um homem comum, com uma simples pá de trabalhador rural. ----- Percepção-consciência no fantástico - temas do olhar: "viu ... nunca tinha visto ... viu com os olhos da cara (reforço vocabular) ... espreitar para dentro do buraco (= olhar sorrateiramente, com a mesma cautela com que enfia a mão lá dentro) ... (um tanto a medo e desconfiança) ... uma maravilha contemlae aquela visibilidade ... a própria descoberta do centro da Terra passou inteiramente despecebida (= não ver / o homem só tem vontade e só vê o que lhe interessa) ... muito sono (total oposição de ver, pois ninguém vê com os olhos fechados) ... ver as coisas de pernas para o ar (tudo oposto a seu cotidiano) ... este monte não deixava ver a cidade, estrada, arredores ... curioso quis ver porque era ... ----- Cágado não vê, mas pressente (apenas intui). "... que já tinha desconfiado da primeira vez ..." ----- Buraco = o próprio mistério da verdade da vida.

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NOTA DO AUTOR:

No texto, terra, planeta, sempre em minúscula.

FONTE:

Um velho caderno universitário achado num buraco de tatu.

(Segue.)


 
Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 11/10/2018
Reeditado em 07/04/2019
Código do texto: T6473717
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