Rosalice

Rosalice

Eram tantos os nomes, as faces e as fotos, que Arlindo Prior sequer conseguia concentrar-se naquilo que procurava.

Lia os anúncios com relativa indiferença, enquanto o sono não chegava.

Pensava em muitas coisas. Entretanto, nenhum pensamento, de fato, o prendia.

Dir-se-ia que se encontrava em busca de algo cuja natureza, nem ele mesmo sabia.

Foi quando Rosalice aconteceu.

Seu nome agradou. Sua face atraiu. Sua foto pareceu extremamente convidativa.

Arlindo se dirigiu até a sala, retirou seu telefone da base, digitou o número que constava no anúncio e esperou pacientemente.

Dentro de alguns segundos, do outro lado, uma voz solicitamente sensual o atendeu.

Por alguns instantes, os dois se falaram.

O encontro fora marcado. Dalí a 30 minutos, na própria casa de Arlindo.

O preço estava combinado. R$250,00 por hora de serviço.

Rosalice mostrou-se pontual. Compareceu na hora marcada ao local escolhido.

Acostumada às propostas mais estranhas e aos mais absurdos pedidos, indagou ao novo cliente o que dela ele desejava.

“Apenas, conversar. – disse Arlindo, visivelmente envergonhado.

Igualmente envergonhada, Rosalice perguntou:

“Conversar? Mas...? Sobre o que podemos conversar?”

“Sobre qualquer coisa. Sinto falta de alguém que se disponha a conversar comigo sem me julgar. – respondeu Arlindo, com olhos marejados e fala trêmula.

“Eu também.” – sussurrou Rosalice, até que o silêncio da noite pudesse dissolver a sua voz.

A mulher, que sempre se gabara de jamais se ter surpreendido com as proezas vivenciadas em sua ocupação, naquele momento, espantou-se.

Afinal, “que tamanha solidão levaria um homem a contratar os serviços de uma profissional do seu ofício com a finalidade única de ter ao lado alguém com quem conversar?“ – pensou ela, profundamente compadecida.

Ao espanto de Rosalice, somou-se uma boa dose de admiração.

Os demais clientes costumavam olhá-la como um objeto. Uma espécie de cálice, prestes a ser descartado, tão logo seu líquido secasse.

Arlindo não era assim.

Via-a como uma mulher. Ser de carne, ossos, nervos, sangue, pele e, acima de tudo, alma, emoções e sentimentos.

Se assim não fosse, por que então a teria ele escolhido como confidente em lugar de tomá-la por mero passa-tempo sexual?

Conversaram os dois durante algumas horas, o que rendeu a ela uma considerável quantia e a ele a riqueza de que jamais se julgara merecedor. A paz de espírito com que tanto vinha sonhando desde que o tempo o tornara adulto.

Fosse como fosse, Arlindo acabava de ganhar uma confidente. Mesmo que, para tal, se houvesse visto na obrigação de recorrer aos serviços de uma profissional cujas especialidades restringiam-se, pelo menos, em tese, ao campo das ocultas artes do sexo.

Rosalice, a seu turno, acabava de acrescentar à sua lista, no mínimo, um novo cliente incomum.

O primeiro a vislumbrar em seu íntimo a existência de algo capaz de transcender os voluptuosos contornos que compunham sua bela forma, já bastante consumida pelos efeitos de 10 anos de uma profissão exercida desde a adolescência.

O primeiro a atribuir-lhe status superior ao de mero elemento de consumo.

O primeiro a procurá-la, não como simples atracadouro de um súbito desejo carnal, mas, com o objetivo de suprir uma antiga necessidade anímica.

Dias, semanas, meses transcorreram. O diálogo entre Rosalice e Arlindo tornou-se cada vez mais constante, mais frequente e mais extenso. Tão constante, frequente e extenso que poucos encontros foram suficientes para que os dois tudo passassem a saber um do outro.

Arlindo contou a Rosalice a sucessão de desventuras a que via reduzida a sua vida.

Disse-lhe, entre outras coisas, que, desde a mais tenra infância, sentia-se vocacionado para a música. Todavia, por ser o único filho de uma família rica e próspera, cujos negócios caberia somente a ele manter, teve de renunciar à sua vocação, abrigando-se sob a insuspeita figura de um executivo austero e respeitável.

Rosalice, por sua vez, relatou a Arlindo a sequência de infortúnios a que considerava resumida a sua existência.

Afirmou-lhe que era filha de mãe solteira, que perdera sua progenitora aos 14 anos, que prometera assumir as responsabilidades pela criação e pelo sustento do seu irmão mais novo e que encontrara, no comércio de si mesma, a mais garantida maneira de cumprir tal promessa, aproveitando-se da única riqueza que lhe havia sido dada – a própria beleza.

Se um conhecido de Arlindo se deparasse com ele no decorrer de qualquer um dos seus encontros com Rosalice, sem dúvida, não o reconheceria.

Junto dela, ele se expandia livremente, permitindo-se, até mesmo, sorrir despreocupado. Coisa que não fazia habitualmente.

Ao lado de Arlindo, Rosalice também não era a mesma.

Agia como se o espírito delicado e sonhador de uma adolescente se houvesse apoderado de seu corpo. Um corpo que, embora muitos homens houvessem frequentado, jamais experimentara os prazeres que lhe poderia propiciar a posse de um permanente morador.

Seu rosto, a exemplo da face do interlocutor, parecia recobrar os viçosos traços da mocidade.

Desenhavam-se, nas auras dos dois, os excelsos sinais de uma paixão que a simples troca de afeições faladas havia, repentina e impunemente, despertado.

O grau de envolvimento vivenciado por eles era tanto que se vinha tornando cada vez mais comum Rosalice deixar a casa de Arlindo sem lhe cobrar pelo encontro o preço combinado.

A ela, já não importava se ele lhe pagava ou não. O importante era tê-lo por perto. Graça sem a qual, sua existência parecia perder o sentido. Sentido que também faltava à vida de Arlindo nos momentos em que não dispunha da agradável companhia de Rosalice.

Por mais apaixonados que se soubessem, Rosalice e Arlindo pareciam não dispor de coragem suficiente para confessarem às claras o que sentiam um pelo outro.

Ele, porém, trazia na mente um plano. Um plano que, segundo seus cálculos, permitiria à paixão que os unia assumir os mais reais contornos possíveis.

Certa noite, ao receber Rosalice novamente em sua residência, Arlindo não agiu como de costume.

Após cumprimentá-la ofegante, pediu-lhe gentilmente que o acompanhasse, dizendo que tinha uma surpresa para ela.

Imprecisos passos os levaram vacilantes por uma longa escada, a qual conduzia a um desconhecido recanto da casa.

Frios e trêmulos pelas emoções que o momento produzia, os dedos de Arlindo conseguiram sacar de um dos seus bolsos a chave com que ele abriu o cômodo.

A pedido do homem, Rosalice adentrou o recinto.

Nos orvalhados olhos da mulher, lia-se a mais fiel expressão do fascínio.

Diante dela, encontrava-se o local com que sempre sonhara. Um estúdio profissional de gravações modernamente equipado.

Num gesto instintivo, Rosalice abraçou Arlindo.

Tão unidos estavam seus corpos, que as lágrimas dela inundaram o rosto dele.

Do abraço natural dos secretos amantes, um longo beijo se originou.

Depois do ósculo, os dois se centaram.

De Arlindo, ouviram-se os seguintes termos.

“Uma vez, você me disse que gostaria de ter a sua voz registrada em um estúdio. Pois bem. Seja bem-vinda ao meu estúdio particular! É aqui que costumo gravar as minhas composições e registrar as vozes de pessoas que considero importantes. Neste momento, posso dizer que não há, em minha vida, pessoa mais importante do que você. Estou disposto a bancar, produzir, gravar e distribuir um disco seu. Mas, acho que você também pode fazer algo por mim.

As últimas palavras de arlindo provocaram em Rosalice um misto de curiosidade e indignação. Sentimentos que ela fez questão de demonstrar, dizendo:

“Então, é isso? Trata-se de uma troca? Só terei o meu disco se fizer o que você pretende me propor? Se é dessa forma, não penso duas vezes, vou-me embora agora mesmo e nunca mais nos veremos!”

A iminência de não tornar a ver Rosalice assustou Arlindo, que, estreitando entre as suas as mãos da amada, afirmou:

“Não é nada disso, Rosalice! Independentemente de qualquer coisa, seu disco será lançado. Todavia, acho que, se você puder fazer por mim o que pretendo lhe pedir, estaremos a um passo de tecer, para nós dois, a felicidade.”

“E o que é que você pretende me pedir?” – indagou Rosalice, curiosa.

“Em breve, você saberá. Falaremos sobre isso logo que eu regressar de viagem. – respondeu Arlindo, com um ar de mistério impresso na voz.

“Viagem? – perguntou Rosalice, visivelmente triste.

“Sim. Viagem. Amanhã, por volta das 3 da tarde, partirei rumo aos Estados Unidos. Devo participar de uma série de congressos lá. – assim falou Arlindo, emprestando um tom embargado a cada vocábulo que proferia.

Rosalice teve vontade de dizer muitas coisas ao amado. No entanto, limitou-se a anotar, em um pedaço de papel, o endereço da casa onde morava e a pedir ao homem que, se possível, enviasse a ela um cartão postal.

Arlindo se comprometeu a atender o pedido de Rosalice.

Rosalice, a seu turno, prometeu guardar-se até o retorno de Arlindo ao Brasil.

Foi deste modo que, naquela noite, o encontro dos dois terminou.

No dia seguinte, por volta das 15 horas, Rosalice pensava firmemente em Arlindo, quando escutou alguém lhe chamar.

A voz, que do portão ecoava, lembrava bastante a dele, o que a deixou muito impressionada.

A sensação de êxtase aumentou significativamente no exato instante em que, cansado de esperar pela amada, o homem gritou:

“Ei! Rosalice! Sou eu! O Arlindo! Preciso falar urgentemente com você! Deixa eu entrar, por favor!”

Rosalice não conseguia acreditar naquilo que seus ouvidos acabavam de escutar.

Era ele! o seu amado!

Arlindo trazia, em uma das mãos, um ramalhete de flores e, na outra, um pequeno embrulho.

Rosalice o recebeu com todo o requinte que podia, abraçou-o e beijou-o várias vezes.

Arlindo passou às mãos da mulher o ramalhete e o embrulho.

“O que tem dentro deste embrulho?” – indagou Rosalice.

“Abra-o e veja você mesma!” – respondeu Arlindo.

Rosalice não pôde conter a felicidade que a invadiu logo que abriu o embrulho que tinha, em seu interior, um par de belíssimas alianças.

“Então? Era isto o que você queria me propor? – perguntou Rosalice, entre soluços de alegria.

“Sim. Era isto. Você aceita se casar comigo, Rosalice? – disse Arlindo, emocionado.

Rosalice não falou nada ao amado. Apenas enlaçou-lhe o corpo entre seus braços e lentamente o conduziu até o seu quarto. Era, definitivamente, um “Sim”.

Hebane Lucácius