NUNCA ME PEÇA PERDÃO!

Fecho a porta, distraidamente, e me encaminho à rua, atentando aos bolsos, para certificar-me de que nada esqueci, quando, surpreso, vejo-a parada junto ao portão. Olhos tristes, empapuçados, avermelhados, sugerindo choro recente.

Nossos olhares se cruzam e travam numa observação mútua, que se prolonga por alguns instantes, em que me parece termos entrado num lapso de tempo, tal o alheamento que nos mantém numa espécie de transe e ausentes da realidade em torno. Aos poucos vou me lembrando de que tenho um compromisso negocial, que já não parece tão premente, inadiável, e fico indeciso quanto ao que fazer ou dizer, sem quebrar o elo estranho que se formou.

Ela toma a iniciativa de perguntar se estou muito triste, chateado ou bravo.

Ouço suas palavras como se viessem até mim de longe, como se acompanhassem o uivo de um vento suave, e pouco sobressaíssem além dos ruídos naturais. Tenho consciência de que estou romanceando algo simples e objetivo, mas essa é minha natureza fundamental, é minha maneira de interagir com as pessoas e o mundo. E com essa pessoa, em especial, essa menina chorosa em meu portão, que me olha súplice, tenho uma história complexa, recente, de altos e baixos (mais estes que aqueles, na verdade). Porém, não estou triste ou chateado.

Creio que meu semblante lhe responde o que minha boca cala, porque ela prossegue em seu acanhado monólogo, que me esforço em absorver, tal é o distanciamento que assume minha mente, ao se dedicar a contemplá-la, detalhadamente; ao sentí-la, analisar seus gestos, sua entonação, e tentar adivinhar seu objetivo, antes mesmo que a explicação possa surgir. É fato incontestável que em minhas entranhas pulsa um inexplicável afeto por essa alma mulher, por esse corpo feminil, por esse rosto sardento e encantador. Talvez ame sem saber amar.

Sem que me dê conta de como isso se deu, estamos sentados nos degraus da varanda, e começo a decifrar sua narrativa. Ela diz que quando vivíamos juntos, naquela casinha, sentia lhe faltar algo, que logo identificou como paixão, pois, à época, já não sentia atração física por meu corpo, minha pessoa, categorizando seu amor por mim como fraternal. Mulher atraente e muito viva, inteligente e extrovertida, chamava a atenção de muitos, por qualquer lugar em que estivesse ou passasse, e não demorou a achar um pretendente que lhe avivasse os sentidos, tornando-a cativa de ardores superlativos, dominadores, que desconhecia, até então.

Diz-me que se foi, repentinamente, sem uma palavra de adeus, entorpecida e alucinada pelas sensações que a impediam de raciocinar adequadamente. Entregou-se e submergiu nas vagas do prazer, priorizando-se sensorialmente, enquanto pôde prescindir do raciocínio e da realidade cotidiana. E foi uma dor insidiosa que a despertou dessa lassidão, que só descobriu não ser física, quando minha figura lhe emergia à lembrança, suavizando o tormento. Como se fosse um parto, o desvencilhamento da condição em que se encontrava foi lento e complicado, exigindo esforço, concentração, e, neste momento em que conversamos, coragem.

Sem que precise lhe dizer uma palavra, segue discorrendo sobre como não tem paz, ao recordar como me abandonou, como me desconsiderou, e . . . como ainda me quer.

Pede-me que a perdoe pela maldade, e, se possível, que lhe permita me amar.

Digo-lhe, sem pestanejar, que a amo, que não me sinto maltratado, que nada tenho a perdoar, mesmo porque jamais pensei em perdoar alguém. Para que pudesse perdoar, deveria me sentir ofendido, primeiramente, e sempre optei por me tornar inofensável. Há ocasiões em que até me sinto magoado, mas minha disciplina torna a mágoa passageira, sem rancores. No entanto, creio que quem age de forma inadequada, e acaba tomando ciência de seu ato, sente o mal se instalar em seu íntimo, mesmo que não o perceba claramente. Dessa condição só irá se livrar se perdoar a si mesmo, de forma abrangente e inequívoca. Esse é o único perdão que pode transformar alguém ou alguma situação, ou seja, o auto-perdão, sincero, profundo.

Digo-lhe, também, que se pensa que precisa de meu perdão, é porque ainda não logrou se perdoar, e se apóia em minha iniciativa, que julga curar seu mal. Perdoe-se e viva feliz!

Eu a amo como pessoa, sinto-me atraído por sua figura e sinto falta de sua companhia, mas não pretendo que voltemos a conviver, de pronto, porque minha independência mental estaria comprometida, e prezo muito minha lucidez, para otimizar a existência, valorizar toda a pujança natural que me sustenta a vida e ter paz de espírito. Todavia, sei que a amo, demais!

Sejamos amigos, partilhemos algumas aventuras, conheçamo-nos melhor, ajudemo-nos a enfrentar o futuro, na lida do presente, mas . . . nunca me peça perdão! Antes, perdoe-se!

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 22/10/2018
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