Quem era Boécio?

Nina morreu. Muitas pessoas ficaram tristes quando isso aconteceu já que ela tinha uma grande fama que continuou se espalhando apesar do seu falecimento. Ela teve um enterro simples: uma cova feita numa clareira no meio de uma floresta, um caixão de madeira recém-cortada e um túmulo rodeado de pequenas pedras e flores.

Diversas pessoas vinham visitá-la, sendo esses peregrinos de lugares distantes ou da cidade mais próxima. Isso acontecia pela história de vida da Nina que foi propagada intensamente em todas as direções. Filha de simples camponeses, ela se dedicou a ajudar os pobres e os doentes. Dava comida aos famintos, um lugar para dormir aos desabrigados, curava os doentes que podia e dava conforto aos incuráveis. Depois de um tempo, notícias de milagres feitos por ela começaram a se espalhar. Dizia-se que muitos à beira da morte que dormiam lá começavam a esbanjar saúde no dia seguinte.

Com o tempo e com a peregrinação ficando maior, uma igreja foi sendo construída lentamente em cima do seu túmulo. A primeira era feita de madeira, tendo um interior bem simples. Com a canonização dela, entretanto, logo foi erguida uma com o exterior todo em pedras, com dois vitrais simples, um jardim de flores atrás e uma horta aos lados. No interior, havia uma pintura dela ao centro logo atrás do altar de madeira, sendo que a sua moldura branca ajudava a ressaltá-la naquela parede escura de pedra. Ela era visível de todos os poucos assentos sem dificuldade alguma e, sobre a luz do candelabro que ficava no centro do teto, muitos diziam que ela se movia em determinados dias.

Diversos padres passaram por essa igreja e todos mantiveram a linha de conduta da Santa Nina. Lutavam com unhas e dentes para proteger qualquer um que precisasse, seja ele humano ou animal. Certa vez, o estado ao qual eles pertenciam queria desmatar quase todo o território em volta da igreja, então, embora nem cogitassem encostar naquele lugar sagrado, o padre entrou na justiça para impedi-los. Conseguiu que uma grande área de floresta que circulava a igreja entrasse em preservação permanente.

Os tempos atuais foram chegando e as mudanças também. A trilha que os peregrinos usavam foi pavimentada com pedras para facilitar o trajeto daqueles que ainda caminhavam. Aos que aderiram ao carro, foi criado por uma iniciativa privada um posto de parada na estrada que tangenciava a floresta. Isso, entretanto, não impedia que esses peregrinos tivessem que caminhar pela floresta para chegar à igreja.

Esse lugar sagrado também recebeu algumas modificações. Foram feitos bancos de pedra no gramado em frente à porta da igreja para que a missa pudesse ser realizada ali nos dias ensolarados. Do lado de cada banco havia diferentes tipos de flores e, na frente deles, um púlpito em forma de cruz. Acima da porta de entrada, tinha sido feita uma escultura da Santa Nina. As paredes do interior agora eram brancas, facilitando a iluminação ainda feita pelo candelabro. Não houve outras modificações tão importantes ou visíveis, já que grande parte dessas obras foram feitas por voluntários. Os padres dessa igreja se recusaram a gastar grandes quantias de dinheiro em obras estéticas, pois preferiam doar aos mais necessitados e os ajudar ao exemplo de Nina.

Certo dia, Boécio foi designado como padre dessa igreja. A sua conduta continuava exemplar como a de todos os outros e talvez ainda mais do que a deles. Durante todo o resto da sua vida, não rejeitou abrigo e nem um prato de comida a ninguém. Às vezes cedia a sua própria cama ou o seu almoço para que aqueles que vinham até ele fossem bem tratados. Depois disso, ajudava os mais necessitados a conseguirem empregos por meio de empresários que visitavam a igreja.

Apesar da bela conduta e de incansáveis horas de estudo gastas principalmente em teologia, não desejava se tornar um bispo ou algo parecido. Ele gostava da calmaria da sua vida simples e desejava que ela fosse assim eternamente. Uma guerra, entretanto, pode acabar com a paz de todos, inclusive e principalmente daqueles que são bons.

As informações não chegaram muito bem para ele, mas não era algo com que ele se importava. Continuava a fazer o que sempre fazia, porém, agora, tinha que consolar as pessoas também. A guerra foi iniciada por uma disputa por nascentes de água, algo que Boécio conseguia em um riacho a poucos metros da igreja. O que começou com apenas dois países foi crescendo e acabou somando mais de quinze em seu fim.

Todas as tropas respeitavam muito aquele local sagrado e sempre o desviavam. Somente um grupamento passou pela floresta e foi até a igreja. Eles não foram em busca de um caminho mais rápido, mas sim para pedir que o padre rezasse pelas as suas vidas. Antes de dormir, ele orava pela vida das suas tropas e, secretamente, pelas da tropa inimiga também. De fato, desejava que ninguém morresse e que de algum jeito fosse encontrada uma maneira pacífica de se resolver tudo.

Um dia, entretanto, viu que isso não era possível. Cerca de 30 soldados do seu país entraram correndo pela floresta e se trancaram dentro da igreja. Eles estavam feridos e pediram abrigo a Boécio para que eles pudessem recuperar a saúde e a coragem. O padre fez o papel de médico e os ajudou. Disse que poderiam ficar o tempo que fosse necessário e que Deus os protegeria naquele solo sagrado.

As notícias que os soldados deram não eram nada animadoras. Segundo eles, o país estava cercado e as tropas inimigas avançavam por todas as direções. O seu grupamento havia sido destruído a oeste dali e as tropas que estavam ao sul e ao norte não se saíram muito melhor do que eles. Somente os soldados do nordeste ainda resistiam bravamente.

Depois de três dias como hóspedes de Boécio, durante uma noite nebulosa, foram avistadas sombras a leste se esgueirando na floresta. Um dos soldados que estava de guarda sacou o seu fuzil e perguntou quem estava ali. Todas as cenas de horror que tinha visto nas batalhas vieram a sua mente e o medo tomou conta do seu espírito. Depois de míseros dois segundos após a pergunta, atirou naquela sombra demoníaca que andava na floresta. Ouviu claramente um corpo caindo no chão sobre algumas folhas, mas, antes que tivesse tempo para verificar, foi morto por tiros devolvidos pela floresta.

Os outros soldados saíram às pressas da igreja ao escutarem os disparos e somente Boécio continuou dentro daquela estrutura sagrada. Logo quando chegaram ao pequeno quintal, usaram os bancos para se proteger desse inimigo invisível enquanto trocavam tiros. Estavam convencidos que lutavam contra demônios ou fantasmas dos soldados que tinham matado. Além disso, não acreditavam que alguma coisa poderia ser tão feroz quanto o seu atual oponente. Por esse motivo, começaram a lançar as poucas granadas que restaram da sua última batalha.

Boécio via tudo dos vitrais já estilhaçados e, ajoelhado, rezava para que tudo acabasse logo. Queria que qualquer coisa fizesse com que essa guerra sem sentido parasse antes que fosse tarde demais. Temia pela a sua vida, mas, quando ouviu os estouros das granadas, não temia mais nada. Num ato desesperado para salvar a sua igreja, aqueles que ajudara, aqueles que nem chegou a conhecer e a si mesmo, abriu as portas e saiu falando o mais alto que conseguia. Citava trechos da bíblia, de filósofos conhecidos e, com lágrimas em seu velho rosto, pedia para que houvesse paz. Falava enquanto andava com tiros passando a milímetros pelas mais diversas partes do seu corpo, mas os seus passos continuavam firmes, os seus gestos vívidos e a sua voz eloquente. Antes que conseguisse dar o seu trigésimo passo, um tiro atingiu a sua nuca, fazendo com que ele caísse de joelhos na grama. Um dos soldados viu isso e correu para tentar socorrê-lo, mas já era tarde demais.

No fim, os soldados que estavam na igreja venceram. Restaram somente dois deles e nenhum da tropa inimiga. O saldo foi desastroso: boa parte da floresta fora explodida ou perdida nos incêndios causados pelo vigor da batalha, a igreja e os seus belos jardins não existiam mais e o altar em forma de cruz estava completamente deformado pelos tiros. Tudo o que restou foi a destruição. Nem mesmo a alegria e o alívio da vitória duraram muito tempo ao descobrirem os seus verdadeiros inimigos, aqueles com quem lutaram a noite toda: os soldados do seu próprio país. As tropas derrotadas no norte tiveram a mesma ideia das tropas do oeste e tentaram procurar abrigo na igreja, mas foram atacadas ao chegarem perto dela.

Tudo isso fez com que uma religião fosse destruída naquele dia. Depois disso, as pessoas simplesmente passaram a acreditar menos. Elas tiveram a fé abalada pelos seus próprios atos e por aquilo que apoiaram e defenderam. Aquele local que era um grande ponto de peregrinação, que transformava o país em uma região pura, bonita e com as pessoas mais bondosas, agora é um ponto de vergonha. Um lugar por onde grandiosos homens passaram e uma gloriosa mulher foi enterrada, agora está manchado pelo sangue dos tolos.