A IMORTAL - para Clarice Lispector

Quando eu tinha 12 anos e lia de tudo ninguém me dizia o que não ler. Lia bulas de remédio e imaginava alquimias primitivas de povos antigos, sabia da existência de povos antigos porque lia histórias antigas mais velhas que meus avós.

Os meus professores, naquela época, diziam que escrever era compor e eu acreditava neles como meus pais acreditavam nos padres. Mas eu percebia a diferença: só os padres mastigavam a hóstia sagrada na hora da comunhão; aos outros cabia a devoção cega e, por isso, ressentiam de ver o sangue de Cristo em suas bocas acaso mordessem a fração do corpo esquartejado do Messias derretendo entre os grãos de amido em suas bocas sujas, como me alertavam. Foi nessa época que eu li sobre ela.

Ela quis tudo de melhor e um pouco do melhor do pior que a vida pôde lhe oferecer. Ávida, comprou fama e com seu dom genuíno congregou famílias de faunos, ninfas e minotauros e outras bestas com a aparência de pessoas normais como os padres, meus pais e meus professores.

Harmoniosamente, ela dispôs na vastidão ora silenciosa ora barulhenta do jardim das delícias pintado à sua maneira na casa que projetou usando esboços de Picasso as mais curiosas figuras – figuras impossíveis mas totalmente críveis. Fiquei imantado de saber sobre a vida dela numa biografia, hoje sei, não-autorizada. Como fui ter aquele livro nas mãos é sorte que a Fortuna quis dar-me sem revelar os motivos. Eu apenas aceitei porque era inquieto e curioso.

Soube lendo que ela comprou com o dinheiro da fama conquistada serviçais obedientes para o trabalho pesado, nem sempre sujo, de lavar dos talheres as impurezas das vísceras limpas devoradas em bacanais intermináveis oferecidos por ela nas noites de luar.

Eu me apaixonei pela vida de quem de fato nunca existiu; era uma grande artista da palavra, manipulava o metal intratável como Machado de Assis e Saramago, mas era mulher! Uma mulher inigualável, talvez a única do seu tempo. Ela se expôs cobrindo-se de frases enigmáticas simples e criou filhos monumentais, monumentais e rebeldes. Filhos-livros ainda lidos.

No entanto, de se expor, perdeu um bom partido, e isso meteu medo no menino quase autista que fui. Eu ainda não sabia nada de Max (e como poderia?); eu era como os outros meninos mas me divertia mais catando nas ruas os papéis que sujavam as calcadas no dia das eleições. Naquela época eram permitidos apenas dois partidos, o ARENA e o MDB; poucas vozes numa ditadura que minha família nunca saberia explicar. Sobre o um bom partido que perdeu, dizia a voz dela na biografia: “era o perfil romântico burguês do homem trabalhador”.

Sobre esse traço de sua perda, escreveu numa carta à Simone de Beauvoir: “ele tinha na forma o apelo irresistível dos deuses solares que habitam as alturas e na alma a deformação típica que a pressão atmosférica confere aos grandes peixes deformados que vivem com pouquíssima luz no fundo dos oceanos”. Ao que a amante de Sartre teria respondido numa carta: “a imperfeição nos encanta, mas não nos basta”. Depois, usando como epigrafe para um de seus textos, a feminista completou a inspiração da minha Musa com a frase: “é pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta”.

Quando menino (eu tinha apenas 12 anos mas já tinha acordado com a mão gélida da morte me despertando aos 6) já sabia que ia ler tudo que ela tinha escrito mas ela ainda estava viva. Eu envelheci rapidamente quando a adolescência me fulminou, ela seguiu envelhecendo muito rápido, terrivelmente rápido mas com a dignidade astuta como convém as Liliths e Morganas - e escrevendo romances sempre inacabados. Sobre isso, eu soube reconhecer o valor intrínseco porque ela justificava: “tal processo de criação, criteriosamente interrompido, é o ardil necessário para imitar a vida com o mínimo de realismo”.

Sabe, caro leitor, eu confesso porque sei ser honesto com quem demora na leitura, eu queria ser como ela. Eu queria escrever como ela mas tive que imitar os padres durante bom tempo e a hipocrisia quase me sucumbiu. Mas isso é outra história, depois 'eu contA', há tanto pano para fardas quanto para batinas.

Por fim, reconhecendo que mal sei inventar desfechos, a última notícia que se teve daquela mulher foi que seguiu escrevendo até o dia em que ganhou o Nobel para, nas palavras dela, finalmente morrer para servir ao propósito de ser reconhecida imortal pelos homens.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 04/11/2018
Reeditado em 21/02/2019
Código do texto: T6494553
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