O conto dos meios e do devaneio
Acabei de jantar e a comida não me caiu bem no estômago. Estou limpando a cozinha e ao fundo ouço o jornal televisivo falando que nesse ano de 2050 o país bateu recorde em porcentagem de pessoas com câncer. Ironicamente, a Camila está no tapete da sala brincando com seu quebra-cabeça. Lembro que em outros tempos conhecíamos uma ou duas pessoas que tinham câncer, não percebi quando essas se transformaram em dezenas. E em outros tempos sabíamos, mesmo que superficialmente, o que colocávamos dentro do nosso corpo.
Antigamente, os liberais achavam uma boa ideia o Estado mínimo, porque sistemas como o SUS tinham graves falhas práticas. Hoje, se ele ainda existisse, muitas pessoas seriam salvas, ou ao menos não entrariam em dívidas impagáveis em busca de saúde. Estamos ficando doentes e cada vez menos humanos. Esses dias, no noticiário, também ouvi que pessoas foram violentadas por gametas. Estamos ficando inférteis e material biológico virou moeda de troca. Como a saúde.
Entro num devaneio e lembro quando era cheia de sonhos e tinha uma carreira estável. De repente, as dívidas do plano de saúde ficaram maiores que meu salário, maiores que meu patrimônio, e fomos despejadas. O tratamento da minha esposa e da minha filha foi suspenso e minha esposa já não tinha mais tempo.
Coloco Camila pra dormir. Nos seus olhos inquietos eu vi a pergunta de quando finalmente ela iria ter que parar de usar a sonda pra se alimentar. Respondo a pergunta não concretizada em pensamento: “Em breve, meu amor, em breve”. Dou um beijo de boa noite, apago as luzes e fecho a porta do seu quarto. Desligo a televisão que ainda estava no noticiário. Saio do meu devaneio, preciso ser prática. Quero dizer que não conto isso com qualquer intenção de que o que eu faço tenha aprovação moral ou ética de qualquer pessoa. Fiz o que precisava fazer.
Vou pra mesa. Começo a pesar, dividir e embalar, quando sou interrompida por uma ligação: “O José tomou uma bala num confronto com a polícia e não resistiu”. Respiro fundo e respondo que independente do acontecido, nós vamos sair pra trabalhar aquela noite. Desligo o telefone e num ataque de raiva atrasado, viro a mesa e tudo o que estava em cima.
Algum tempo mais tarde, já calma, levanto a mesa. Pego os produtos embalados, e coloco na bolsa pra sair. “Em breve, meu amor, em breve”. Apago as luzes, tranco a porta e saio.
(10-12-18)
-M.M.D.