- AS FOLHAS DE ALUMÚRIA -

Texto dedicado à minha amiga Anna Lúcia Gadelha





 

Anna Lúcia sabia que era adotada. Descobriu sozinha olhando os velhos álbuns com capa de ursinho na parte de cima do armário. Ao contrário dos irmãos mais velhos, não havia fotos da sua mãe grávida dela, ou foto sua ainda bebê. Não bastasse este fato, sempre se sentiu deslocada na família, na escola, no mundo.

E ainda havia os sonhos. Sonhava sempre com a mesma coisa, um outro pai, uma outra mãe, em um outro lugar.Sempre que dormia passava pelo portal entre mundos: no outro lado morava com os alumurianos, e não apenas isso, era um deles. Tinha longos alheamentos, um voluntário silêncio. Coisas de menina cismarenta, ensimesmada, esquisita. Os pais eram carinhosos, pacientes, falavam que aquilo era fantasia da menina.

-Passa quando você ficar mocinha. 

 Jamais passou. Parentes insensíveis diziam que Anna Lúcia era antissocial. Até chegou a ouvir de uma das tias que havia sido uma tolice eles terem adotado aquela menina aluada.

 Cresceu tentando se misturar.Observava pessoas, imitava seus gestos, reações, opiniões. Depois de muito treino conseguiu se tornar relativamente igual e invisível o suficiente para viver em paz. Ainda assim nunca gostou de muita intimidade. Não conseguia, porém, evitar que alguns se aproximassem e se julgassem amigos.

 Foi de uma destas pessoas que veio o convite para a aula de yoga. Anna Lúcia só topou ir por muita insistência de uma colega de trabalho.

-Ah, amiga, você precisa conhecer o mestre Indra! Sabe aquela pessoa iluminada? Você vai AMAR! Vai sair de lá levinha, mulher!

 Anna Lúcia estava com a cabeça muito longe dali.  Pensava nos relatórios que precisava fazer, no que estava faltando comprar para a feira da semana, em qualquer coisa, menos em praticar yoga. Exercício ela até fazia, andava de bicicleta para todo canto. Tinha cuidados consigo. Levava marmita com o almoço.Comia debaixo das árvores do jardim e conseguia ficar sozinha uns minutos. Sempre salada para não precisar esquentar. Leve, já estava. E achava yoga um saco.

 – Você vai, né? Já coloquei seu nome na lista dos matriculáveis, tá? Leva o cartão para pagar.

 Anna Lúcia pensou em enquadrar a inconveniente, mas se deu por vencida. Fugir sempre de todos os compromissos acabaria por chamar ainda mais a atenção sobre ela.

-Vou só para a primeira aula, tipo experiência, se gostar eu fico e me matriculo. – Falou, encerrando a conversa.

Na terça-feira estava lá. Como prometido.

Quando chegou, Marisa a esperava com um sorriso cheio de dentes amarelados pelo vício em café. A ansiedade para que conhecesse o tal de Indra era grande. Demorou uns vinte minutos porque ele estava numa aula anterior, então ficaram conversando sentadas no muro do canteiro, e bebendo um chá que estava sobre a mesinha. Para quem estava aguardando um senhorzinho magérrimo usando turbante, encontrar o verdadeiro professor foi aquele choque.

 O rapaz estava mais para ator de Hollywood do que para o faquir espiritualizado que a moça havia concebido. Indra Hari chegou todo sorridente e convidando a moça para iniciar as atividades respiratórias ao som de uma música oriental relaxante.

Mandou que escolhesse a posição mais confortável numa esteirinha acolchoada cheirando a incenso, e tocou seu plexo solar da maneira mais profissional possível.

 Depois de muitos exercícios, Anna Lúcia estava exausta. Não encontrou água aí tomou um pouco mais do chá, que havia adorado, e deitou na esteira respirando profundamente.

 Assim que deitou foi sentindo um estranho entorpecimento, uma moleza, uma sensação de flutuar. Quando percebeu, estava levitando! Subia horizontalmente como se estivesse deitada no ar. No início tentou se virar mas acabou se entregando a um conforto inédito, mas familiar. Antes de atingir o teto, fez um movimento lateral involuntário e saiu pelo basculante do banheiro que ficava ao lado, largo e alto o suficiente para dar passagem ao seu corpo.  A ascensão continuou, e o seu corpo foi se verticalizando, subindo como um foguete lento, brisado.

Passou do vento e das nuvens, cruzou as camadas para fora do planeta. Uma espécie de cápsula cristalina se formava ao seu redor, enquanto um jardim crescia aos seus pés, com grama,flores e pequenos insetos.  Tudo era muito estranho, mas nada ali lhe causava perplexidade. Anna Lúcia olhou ao seu redor e viu o quanto era lindo o espaço e lá embaixo aquele planeta azul parecia tão diferente de si.  Sentiu que pertencia àquela amplidão onde cabiam todos os seus sonhos, e continuou seguindo adiante embalada por uma música suave, cada vez mais baixa, até que o silêncio se tornou absoluto, libertador…

 Os sonhos de infância voltaram vívidos à sua mente. Se via pequena num lugar de paz. Sentou no chão de sua cápsula e tocou na areia leve, na grama macia e lembrou de tudo. Seus olhos alumurianos se encheram de lágrimas humanas e ela soube que nunca fora abandonada, mas havia sido salva. Estava com as crianças mandadas para a Terra no limiar da aniquilação. Quando alcançou a plena consciência de quem era, passado, presente e futuro se descortinaram a sua frente, e a esfera iniciou o caminho de volta.
 Enfim sentiu o toque leve em um dos braços. Abriu os olhos e viu o professor sorrindo.

 – Parece que você conseguiu atingir um bom nível de relaxamento hoje, parabéns!

 – Opa, desculpe! – Falou Anna Lúcia, um pouco zonza, olhando para os lados e vendo que estava sozinha.  Não sabia quanto tempo havia estado ali. Precisava ir embora.

 Na saída, Indra chegou com um embrulho delicado cheio de folhas ressecadas com um cheiro muito bom, o mesmo cheiro do chá.

– Para novas viagens.

-Que planta é essa?

-São folhas de uma árvore que tenho aqui no quintal. Alumúria, já ouviu falar? – Perguntou com os olhos brilhando, todo cúmplice.

  Anna Lúcia sorriu de volta, mas o que queria mesmo era chorar. Afinal, pela primeira vez em toda sua vida na Terra, se sentia em casa.


Iolanda Pinheiro