MAR NEGRO

"A escuridão

Diante do existir

Investe voraz"

Ao término da escrita do haicai no pequeno livro, o samurai coloca o pincel embebido em nanquim de lado e põe-se novamente a contemplar o vazio. O silêncio no jardim de inverno, cortado apenas pela batida consecutiva da fonte de bambu nas pedras lisas, propiciava o clima de meditação que lhe tanto era caro. Exceto que algo gritava, mudo, no horizonte. A escuridão escorria como um mar negro pelas colinas além dos muros da vila. Disforme, escura e viscosa como betume, vinha como uma onda gigantesca e vagarosa.

Os outros habitantes da vila já haviam deixado tudo para trás, quando aquilo surgiu. A vila, agora desabitada, tinha finalmente o silêncio que o velho samurai tanto esperou em vida. Os conflitos, a algazarra, as festas da antes populosa aldeia agora tinham sido carregados em carroças, baús e nos braços para onde ninguém pode saber. Restou apenas ele ali, o velho samurai.

Jamais consultado como sábio, ele era apenas isso, um velho sobrevivente do vilarejo. Sempre na mesma postura, no mesmo jardim, em seus rotineiros ritos de alimentar-se, banhar-se, meditar e descansar. Seu silêncio era lendário na vila. Era um símbolo de serenidade, um bastião do sigilo. Ninguém ousava questionar suas histórias, como suas duas espadas ganharam aquelas ranhuras, como seu rosto ganhou aquela cicatriz. Simplesmente sempre, desde a existência daquela vila, era aquela figura.

Ninguém também questionou sua impassibilidade diante do assombro que se assomava fora do vilarejo. Por que ele não ajuntou seus poucos pertences e partiu para a outra fronteira, como os outros, fugindo dos terrores daquele sombrio mar? Talvez era isso que ele esperava, tão pacificamente, há tempos. Talvez este fosse o segredo insondável da alma daquele homem. Ele esperava pela vinda daquela onda.

O Yomi, o abismo de melancolia e decadência que engoliria a todos. Era isso aquela escuridão. Viria de detrás das colinas para engolir a todos, inexpugnavelmente. Os habitantes do vilarejo, aterrorizados, decidem que jamais poderiam lutar contra aquilo. O máximo que podiam fazer seria guardar seus bens e seus entes queridos e fugir para longe dali. E quanto ao velho samurai? A postura de lótus que adotou o escrevinhar calmo, as espadas de lado. Provavelmente aguardaria ali pelo inevitável fim. Ou cometeria seppuku com suas armas, pois junto da escuridão viriam as terríveis feras que a guarda, e homem nenhum seria capaz de mira-las sem enlouquecer, a morte pelas próprias mãos seria um tesouro para quem se atreveria.

A onda se quebra no horizonte, se tornando uma vultosa quimera negra, com cabeças disformes e apêndices tentaculares. Já começava a tapar o sol e cobrir com sua sombra boa parte da vila. O velho samurai, ainda impassível, medita de olhos fechados, talvez esperando ser engolido vivo e descansar no breu com a mesma paz que manteve sempre.

Minutos que parecem séculos. A onda continua a se retorcer e avançar e, ainda assim, o velho samurai continua a meditação. Apenas o som do baque da fonte d’agua e um rumor sutil da escuridão se movendo. O silêncio, outrora promotor de paz, servia ali apenas como anunciador do fim.

Quando a escuridão, em nova revolução, toca o chão a poucos metros do pórtico de entrada da vila, e o esparramar de todo seu peso soa retumbante diante do silêncio perturbador, o velho samurai finalmente abre os olhos. Retorna o pincel a mão e escreve novamente no pequeno caderno.

Novamente coloca o pincel de lado uma última vez. Saindo de sua habitual passividade, talvez a primeira vez, talvez a última, desembainha a Katana e a Wakizashi. O velho samurai se põe de pé. A escuridão penetra rapidamente através do portal e avança mais rapidamente em direção a sua cabana, devorando as casas desabitadas ao redor.

Erguendo as espadas, o velho samurai, então, se entrega em fúria contra o mar negro, com o ardor da queima de uma última chama. A escuridão, como ciente do adversário, desprende braços e ramos sombrios para revidar contra o aguerrido samurai, e são imediatamente cortados pelas lâminas, somente para surgirem ainda outros, que continuam a tentativa de enlaça-lo.

As espadas do samurai rebrilham com a alvorada, e criam arcos luminosos com seu movimento, amputando rapidamente cada membro negro que surge da massa sombria. Durante longos instantes, o velho guerreiro continua em sua inglória tarefa. Então, quando a exaustão finalmente se torna maior que seu espírito, a maré temível o envolve, como a tudo em seu caminho.

No caderno deixado para trás, sobre as pedras da fonte, seu último escrito.

"Da noite brutal

Espada é abrigo

Para a vida"

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Conto vencedor como "Menção Honrosa" no 36º Concurso Literário Yoshio Takemoto"

David Leite
Enviado por David Leite em 16/12/2018
Reeditado em 16/12/2018
Código do texto: T6528143
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