A qualidade dos Impuros

Estive tomando uns remédios tarja preta. Estive pra baixo por alguns meses. Sentindo a vida em preto e branco, extrema agonia, era um nó dentro de mim. João acendeu seu cigarro, deu um profundo trago, refletiu as palavras desconexas que acabara de pensar. Alguns meses atrás tinha sido tomado por um forte surto psicológico, agora, a realidade estava de volta tomando o tom de realidade.

Deu mais um trago no seu cigarro barato, sabia que esta porcaria mata, mas não estava interessado na morte, apenas curtia a sensação efêmera, via o objeto se desfazendo entre os seus dedos, tomando novas formas, a fumaça que soltava, o cheiro que imaginava, o mundo estava naquela tragada.

Ainda que minha mente perturbada precisasse da química de certas drogas, daquelas que só são vendidas com a receita conseguida com alguém mais louco que você, ela ainda parece funcionar bem, talvez uns setenta por cento, em alguns dias ela vai a setenta e cinco. O que digo é que ela continua ativa, percebe a diferença entre o dia e a noite, entende as palavras escritas no jornal, reconhece o reflexo do espelho.

João nunca foi vacilante, mas agora sabia que as regras do jogo tinham mudado, não que quisesse, mas por imposição do que não se pode prever, dessa coisa que se chama vida, da roleta russa de cada dia. Apesar de tudo era esperto, não saia de casa sem munição, no bolso sempre um pequeno cantil com líquido brilhoso, algo para matar a sede e permitir que sua mente alcance voos maiores.

Outro dia eu vi um louco, olhos castanhos envoltos por um amarelo destoante. Passei por ele, fiz questão de encará-lo, balbuciava algumas palavras, num tom baixo e lamuriante. Aqueles olhos me fitaram e reconheci algo familiar neles, algo que no fundo da minha mente eu conhecia bem. Às vezes flerto com o mesmo perigo, mas não deixo que me consuma, sempre volto pra casa quando o sol surge depois da longa noite.

O cigarro já estava quase no final, tragou profundamente mais uma vez, havia uma beleza naquilo, como pode o cinema parar de exibir seus astros fumando, aquele tempo –sim- era bom! Agora sentia-se vigiado demais, enlouquecido com o comportamento mais medíocre que o ser humano pode ter, não perceber a beleza da própria existência. Deu mais um trago, a fumaça percorreu cantos sombrios da sua mente, trazendo um efeito relaxante. Solto-a numa leve baforada. João ainda tinha setenta por cento da sua mente.

Said Ramos
Enviado por Said Ramos em 30/12/2018
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