Para Clarice e Cecília

Tenho andado tão alheia ao mundo ultimamente. Não ligo mais para quando chove nem para quando venta, e não me importo mais se o arco-íris depois de uma tarde de tempestade se esconde atrás das nuvens. Minha prima de seis anos diz que é desanimo, mas ela não tem nenhum embasamento sobre esse assunto porque vê cor em tudo, vê vida em tudo. Está sempre a enxergar esse mesmo mundo com as lentes da infância. Quando é que eu fui me perder? Clarice já disse que se perder também é caminho, mas não sei.

Moro num lugar que sempre tem sol, os insetos vivem pousando no meu café e estou sempre com uma gotinha de suor escorrendo na testa. A prima corre mais, portanto o suor não se limita à testa, e está sempre impregnado no corpo inteiro e nas roupas que vovó passa e lava com todo o esforço. Ao contrário de mim, que não desgrudo a bunda da poltrona do meu avô e o rosto de uns livros que arranjo na biblioteca da escola. Eu gosto de ler. Gosto de como ler me transporta sem ter que ir a nenhum lugar, mas às vezes penso que seria melhor viajar.

Vivo a observar as pessoas que andam do outro lado da rua pela janela da sala. Conheço todas as roupas da Dona Carmem (não devem ser mais do que três cardigans e três saias), todas as brincadeiras das crianças pequenas (amarelinha, pique-esconde e pega ladrão) e escuto todos os assuntos da vizinhança ("você viu que a Mariazinha se mudou para Contagem?"). Mamãe odeia fofoca, e ela diz que sou uma grande fofoqueira por gostar tanto de bisbilhotar a vida dos outros. Mas, de qualquer forma, não há muito o que se fazer por aqui.

Eu nunca me apaixonei. Li nos livros de adulto que amor machuca, e já sofro de alergias pelo corpo inteiro, não quero outra dor para me preocupar. Minhas amigas dizem que um dia alguém vai ganhar meu coração, mas não quero dá-lo a ninguém. É ele quem me mantém viva e não quero morrer por qualquer pessoa que seja. É egoísmo, já ouvi. Mas também é egoísmo o que fazem com as mulheres nas esquinas do centro da cidade e com os senhores no ônibus, ou com os professores na escola, e disso ninguém fala nada.

Os meninos da minha escola vivem dizendo quão bonita sou, como meu cabelo parece sempre incrível, como estou sempre tão radiante. Não entendo o que eles querem dizer. Eu me vejo todos os dias de todas as formas e não me acho nada demais. Sou normal e gosto disso. Me disseram que são os hormônios que os deixam assim, vendo beleza em toda mulher. Mas nem mulher sou; sou menina, pequena demais. Eu não ligo se pareço ou não bonita, quero ser muitas coisas mais que isso. Quero ser interessante e inteligente e ter boas piadas, ou saber compor música ou tocar piano ou dançar jazz. Mas eles cismam em passar a mão na minha cintura quando me encontro num momento de vulnerabilidade.

Minha mãe disse que um dia eu ainda vou querer me casar com o Marco César, da casa número 29. Ele sempre vem aqui me procurando, pedindo a lição de casa ou me trazendo uma flor. Eu já lhe disse que não gosto de flores mas ele me persegue, não larga de mim, e não vai me largar até que que também não queira largá-lo. Mas eu não sei, sou nova demais para acreditar no que as pessoas falam. Gosto de teorias, não de hipóteses. E, na física quântica, não deve haver nada que comprove a possibilidade de ficar com o Marco César pra sempre (como os casamentos falam).

Pareço quieta, mas minha cabeça é um caos, uma bagunça maior que a da Paulista e a de Nova York e a da casa da minha tia Rose. Sou muito mexida, estou sempre com tudo na ponta da língua, estalando. Minha mãe diz que é ansiedade e me dá chá toda noite pra parar de remexer a cama. Faço mais barulho que minha cachorrinha, vivo chutando tudo quando estou dormindo, mas não é minha culpa; meus sonhos são tão vívidos quanto eu sou tediosa. O Marco César disse que não sou nem um pouco tediosa, mas sabe como é, hormônios. Prometi a mim mesma não cair na dele.

Cecilia disse que não sabia em que espelho ficou perdida a sua face. Eu compartilho da mesma opinião. A vida parece ser mais interessante quando sou pequena como a minha prima, com tudo tão novo. E agora que sou pequena mas nem tanto, parece que já vi de tanta coisa que não há mais graça em viver. Minha mãe (que é a minha melhor conselheira) vive falando que eu ainda não vi nem um pouco do que tenho para conhecer, acho que isso me faz querer acordar toda manhã. Ainda não conheci nada surpreendente, mas tenho esperança. Gosto das borboletas e de como elas se transformam sem perder a força. Quero ser uma borboleta quando crescer. Quero me ver indo de lagarta a borboleta e não vejo a hora. Por enquanto, estou aqui, achando a chuva sem graça e não conseguindo distinguir arco-íris de nuvem. Minha professora diz que é sintoma da adolescência. Eu nem sabia que tinha uma doença, mas espero que algum remédio possa me curar.

Liatris Montebelo
Enviado por Liatris Montebelo em 08/01/2019
Reeditado em 08/01/2019
Código do texto: T6545546
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