... Reticências

...ninguém enlouqueceria, talvez ficariam mais os que já são, talvez já não esteja vivendo, pensando sobre os outros pensando sobre mim; o que eu tento te revelar, prezado amigo, não é de sua confiança, empenho aqui e agora uma carta de amor. Tal assunto nunca poderei falar, pelo menos pessoalmente, deixo então uma alusão, uma tentativa. Foram dias de muitos riscos, agora que me sossego numa cama, vejo que caminho já estou tomando vejo que o mundo tem de estranho. Você viu uma aurora nascer, presenciou a mudança de espírito, mas agora você não presenciará mais nada, meu ser se fecha, rosa oculta - estragada.

...o que vejo no futuro não é senão o que juntos tivemos, mas nem por isso sofro, meu amargor teu - é também a vida. Estamos em lados contrários, carregando o mesmo fardo. Se estou mais acompanhada do que você, dizer poderia, certificar-me, responda da melhor maneira possível. Que posição mais delicada, na visão dos meus olhos, um sorridente desespero surgiu, ameaçada, invadida, plissada de dor, ainda sim, se organiza, reações e reações, e perguntando o porque de tudo isso se vive. Claro! Melhor do que imaginamos- Canalha - Eu sei, o tempo deixa uma impressão bem vaga. Me calo, com vergonha torço pela sua coragem.

...aqui vai uma elegia, a pátria que me residiu sempre em hotel. Não peço que se lembre, minhas horas dedicadas, meus encontros banais, mas peço que não teça contra mim comentários de que eu não possa, não possa defender, ou comentários em que não tenha mais nenhum representante. Se o lugar de onde me tiraste, sempre e inúmeras vezes, obscuro, descontente, efêmero (oferecendo a fertilidade), por isso vendi minha alma, não recusarei em lhe dar este inseticida, espero que você não recuse a ninguém a escolha. Desde o nosso primeiro encontro meu paladar tem gosto, rico e incerto, indefinível o cair do outono. Tu, representante das letras, discorrerá no congresso das artes, para que os concidadãos que ali participam contigo também tenham um preço a oferecer aos homens, mas que não seja desconhecê-los. Cara Prosa, o restante de teu valor já perdi. Não é motivo para choro, nem para o riso, as palavras têm beldades que você também, pobre coordenadora, não tem dimensão para que, de todas possas sabê-las.

...acabo de me fundar no caminho dos tolos, prezado amigo, conto com sua descrição, espero que o que te digo em várias vozes seja escutado por um único ouvido. Que este não inflame, que se supure num hospital muito particular. A cama na qual estou deitado pertenceu ou ainda hoje pertence a muita gente. Até a você, ela jamais proveu de qualquer falta de carinho. Neste plano repousa o corpo todas as noites, os sonhos que seguem são vínculos, são montagens, a inexistência de um tempo demarcado caracteriza as paredes do castelo. O corpo que abriga também é abrigado, a voz que emite também vela, o amor que surge também adormece, se os extremos pertencem a este mesmo plano, isto confere, como você há de convir que a respeito do mundo do sono, dos sonhos, dos desejos, o único limite é momentos depois de acordar. Quando a memória se instaura novamente, soerguendo do oxigênio, pousa com toda a seiva aventurada borboleta, se digo essa coisa, não dizendo claramente, é porque confio na sua pressa em compreender-me será tão bem aceita por minhas palavras, da mesma maneira que a você peço silêncio ao sair deste labirinto. Com muito custo me aquieci da vontade de falar, do que me acontece nesta passagem plana, me abrir nas partes íntimas foi sempre maneiras de atentar aos habitantes do mundo que eu também pertenço a um todo, que eu sei ser um todo. Penso na vontade de amor, a veracidade do inferno não é mero lugar, mas linhas abandonadas. Não quero que veja como estou agora, neste quarto de pensão, nu, numa cama, esperando que o sono me venha alcançar. Não duvide mais do que a certeza que te dou. Ao declarar a você me declaro ao mundo, uso e reuso, minha sorte me reserva algo, não sei do que se trata, pensando bem, imagino certamente do que se trata, mas em se tratando da imaginação, nunca se pode confiar.

...voltou a ligar os olhos e o que vejo não me desagrada e o que sinto não deriva só de mim, mais alto vão as vontades, mais fortes vão os ventos que me trouxeram até aqui. Quando a nossa casa foi derrubada não dissemos um ao outro o quanto que doía, agora, com distâncias a serem percorridas, fica muito mais difícil, o que um dia foi nosso, agora no máximo será teu ou meu, talvez teu. O que se passa em tua cabeça, em lábios em seios na cama; me pergunto não querendo ouvir respostas, sei do que me erra, mas não sei nunca o que te floresce, assim as distâncias se fazem, dão sinônimos e antônimos de um mesmo amor. Será que um dia participei efetivamente do corpo da vida, da sombra de tua pessoa? Não será tu que lerá estas linhas; assegurado este efeito, não posso dizer com mais tranqüilidade. Quem ficará com esta carta não conheces, e este prezado amigo, não saberá a quem estou me referindo, talvez ele pudesse saber. Mas creio não o fará, seu silêncio será a prova do amor que tem por mim.

...nesta maldita hora tu me volta, querendo de mim meus olhos, eu já não quero mais nada, nosso trato foifeito, meu pedido pedido, já não tenho mais nada a dizer, levarás o teu, podes recusar o pedido, mas não peças para ficar em tua companhia, tua beleza está agora em minha fala e nesta hora o máximo que tu podes dizer será um cálido silêncio, o respeito que anos te dediquei me conserva o poder suficiente para guardar para dentro de mim esta volta, este desejo que me assola, mas que em breve partirá. Querida Prosa, não lerei você em mais nenhum lugar, não adianta mostrar o quanto bonita é, dominarei todas as minhas vontades, deixarei teus filhos orfãos, não será por isso que eles morrerão de fome, você é capaz, gênia, saberá dar aos escritores motivos, tu é para mim um tempo antigo de excitações, que agora não descubro que educar-me em seu país foi o único erro pagando alma. Já não há bastante dor, a sua ausência quase me enlouquece, não me tires a razão, crave os dentes no corpo que é teu, esta dor já sou eu, não posso me livrar. Por anos a fio foste luz, visão coberta do vazio, já é hora deu não dar méritos de minha vida a ti.

...prezado amigo, não sei quando este manuscrito chegará em sua mão, prevejo que não demorará cerca de um mês, espero que até o fim deste prazo tudo esteja claro e que assim eu possa colocar no correio o que já é seu antes do fim. Na minha noite de folga, depois do feriado, quando estive em sua casa de campo com você e seus amigos, foi nessa noite, ela estava aqui e fizemos aquelas coisas por que você me condenava, mas desta vez foi um pouco diferente, não ficamos, fizemos tudo aquilo que você já sabe, com calma, cada gesto era uma ponta de paz que procurávamos, mesmo quando os tapas se cruzaram em ambas faces, não foi como das outras vezes, por puro amor, sei que no seu grau de juízo normal você iria me recriminar, porém o que te digo é para que sua loucura ouça, é para seus momentos de fúria, só esta parte de si será capaz de compreender. A noite foi longa, os vizinhos reclamaram, você sabe, nós não demos ouvido. Percebi ali então, que na loucura, que no impune, que no imoral, que em qualquer reino existe a felicidade, no êxtase existe paz ; não há nenhuma grande diferença, é dor a dor de todos, relegar a razão a segundo plano, relegar os conceitos ao térreo e deixar as ondas, as antigas e as novas dominarem os espaços abertos, deixar ao humano as cargas, deixar os fantasmas vagarem por cima da tez. Foi só nesta tarde que me dispus viver no limite da beleza, no inconsagrável. Se conto a vida, não é para maltratar você, nem para deixá-lo preocupado, mas, quem diria, eu dizer isso, é para que você possivelmente me ame, orgulhe, orgulhe-se de mim, para que eu seja os sonhos mais íntimos, mais inacabados, para que você tenha em minhas palavras um mundo que não tivera vontade ou coragem de conhecer. Ao ouvir tudo, pelo que conheço você, seu rosto estará pálido, na sua boca a aflição dos velhos, as pernas bambas, o olhar estará vago, sem encanto, só uma vontade de pronunciar o medo.

...meu aniversário já está próximo, pouco mais de 333 dias, doze horas, dez minutos, uns quinze segundos, já sinto a crise dos quarenta se aproximando, dizem os de natureza elevada que a vida toma formas a que já o corpo não é mais capaz de atender, espero que seja tudo verdade, que a razão se aproprie definitivamente do que sempre foi seu e que reja tudo da melhor maneira possível; espero por isso, no particular. Você sabe quantos anos tenho, não precisaria olhar minha identidade, nem necessitaria fazer contas, mas eu sim, confuso, não diferenciando a idade íntima da idade física, com as somas e as multiplicações, para mim a velhice é ser. Não sou tão idoso assim, no meu um ano a mais, a razão se dispõe já de um vasto tempo de vivência, agora a procura não se faz de algo, nem se pergunta mais o porquê, as respostas não encontradas se sossegam no calor morno de alguma ruga, o sentido da vida não é mais uma queixa, o que se aproxima como verdade é a desconfiança, que o futuro me suscite, os caminhos são o que são os homens. Hoje, não mais amanhã, nem depois d’amanhã, ontem não poderia ser, hoje minhas melhores respostas são perguntas. Falando com um amigo, falando do que me tornei, corrigindo o que enxergo torto nos outros, caminho sendo-nos, mundo e eu - vida futura. Adequar, imolar, enlouquecer, educar, viver, o rigor que me abarcar é antes um mar manso, possivelmente a tempestade é a felicidade que deixei relampejar em algum amor mal cuidado, se viro meus cuidados para algo que já morreu, querido amigo, é difícil fazer jus ao que não reclama carinho. As matérias mudas \que cultivadas estão\ se aproximam dos lugares comuns que rejeitei em todos os passados. Se o mundo ao redor permite existir sem o meu trabalho, não seria erro da minha parte pensar que os frutos que deixar serão cuidados por aquele mesmo mundo o qual não dei atenção. Nas horas vagas do dia, percebo em você, uma amizade própria, onde o que reconheço me serve de ferro, onde o que dou, estorvado ou não, puro ou não, nada mais é senão o melhor desejo de mim.

...disse anteriormente num parágrafo, me lembro que seja, “não deixe que ela leia o que escrevi a você”, me pergunto se é verdade e já preescrevendo que não seja assim que quero, pois escrevi, se eu mandei a você, é reforçada a vontade de que ela poderá ler, desperta a ilusão das mãos. Apesar de você não conhecê-la, de se encantar, que ela possa ao mesmo tempo ser conhecida, e ser encantada, cubro você caro amigo de um peso grande, o seu dorso, senão cumprir o que digo a você, cumprirá pelo menos o que desejo. Mas não desejo, pelo menos não como um todo, como conduta direta, livre, masculina ou humilde, sendo assim não mudei o que antes a você, declaro porém agora o que eu tinha escrito em linhas traseiras. Se a confusão interrompem a magia, é necessário que compreenda que para escrever assim sem censura, é indispensável que os bois sejam anônimos, da mesma forma que o que me leva a dizer o que só a você penso estar dizendo é o desconhecimento do que verdadeiramente tais palavras dizem. Não sei se ao confrontar a pessoa que atravessa estas paginas numa pessoa, poderei concretizar a minha, que não é essa que você lerá. Nem sei se por isso escrevo, não sei das matizes elevadas que são desdobradas, o que é revelado também se descobre. Quadros e quadros, filmes do mesmo filme, o que existe já está no que existe. O futuro me dará o tempo necessário para que assim eu descubra não todas as finalidades, mas que atenciosamente descubra o decorrer dos poucos, as observações, os dias, os outros. Absolutamente, o senhor de tudo o que escreve não sou eu, me completo nos possíveis meses seguintes, nas outras vozes que dirão, com virtudes próprias, o que esqueci de dizer. Parece engraçado estar agora escrevendo nessa cidade onde você morou, onde já morei, e pedir soluções que minhas palavras não me dão, no espaço de tempo de dizê-las, na reflexão delas, mas é quando tudo chegar a você que poderei saber o que realmente foi dito, o peso da fantasia se parte em dois escândalos - o vazio - que será de novo vivido. Não foi apenas um estímulo feliz de esperança, porém não interrompe os movimentos transitórios de estado. Por outro lado, não corrijo, não sou o que pensei ser, criador, o que fez-se parte e substância, logo a seguir rodopia em tufões, furacões, o que pensei criar existe, seguro certo verde deficiente. Verdadeiramente as pernas que andarão não serão mais as minhas, o educador não serei mais eu, de volta terei de contentar com o conquistado, não por mim, por aquilo que pensei criar. Ao construir nas distâncias de nossas cidades uma estrada segura, legítima, descubro agora os buracos que deixo. O amor que sinto disposto é tão seu, que nem para mim no espelho, nem na intimidade do pensar poderia esconder. Não o faço, porque opção não há, ao sentir um suspenso amor por você, caro companheiro, nas escolaridades e nos retiros, não posso engaiolar o que independentemente se faz ver. Na recusa da comunicação, no telefone arrancado da parede, no tempo não visitado, na ausência posta sobre as mesas, vale muito mais o silêncio do que as palavras.

...nesta semana, deixei tudo a ver navios, nunca fiquei tão órfão do fazer, nesta noite clara, os ventos que sopraram hoje mudaram as honras do meu pensamento. Sendo-me afrescado de graça, volto a ter com o que me cerca o empenho humano. Profiro palavras concretas numa folha azul, cristalina, perecível, sobrevive na folha a dimensão diminuta do que pensei dizer-lhe. Um atestado médico isentou minhas faltas ao trabalho, um dia híbrido congela congela os casos que tenho para contar, senão a você somente, pelo menos a você como confissão aturdida. Memórias são validades que a consciência elegeu como tal. Aqui bem perto de casa, há um parque, um regaço de verde, um córrego vai passar pelos meios e extremos, as inquietantes alturas das árvores me dão coragem de me suspender legitimamente da realidade. Olhava o riacho esverdeado, contemporaneamente feliz, os peixes que ali trançavam subindo e descendo, eram esses a matemática da preservação, dispunha-me com vontade a não estranhar nada, nem a beleza, nem a raridade, mas os tipos espontâneos, estados, sentir, são são e quase intocáveis de persuasão quando querem, nesta tragetória, ou na outra, os meus ímpetos valem pouco, não sendo esclarecedor ao extremo, quando olhava os peixes me vi pensando na similaridade de nossas vidas, as escamas entrecortadas, que por todos os dias caem, renovadas, são de natureza gêmea da minha, se me diferencio não é porque tenho pele, porque sou terrestre, nem vêm ao caso as diferenças, o que é comum - da mesma maneira seguro. Nele se reitera o sentimento, mas minhas virtudes asseguram um igual abrigo. Eu também sei como é frágil o que parece tão acertado de proteger, assim o frio me desceu pelo buraco da garganta, ingenuidade daquela criatura a priva da dor, a mim, que sei o quão enganoso são minhas defesas, fica-me a responsabilidade de enfrentar o que se aproxima, por alguns momentos a ilusão de reciprocidade, de ser feito da matéria mesma desaparece, o tempo é vendaval que conheço. A água declinou da beleza espúria em que via, para fel verdade em que consiste. Não bastasse essa topada, a cada instante sucessivo tropeçava no mesmo buraco, a verdade existencial de uma espécie diferente da minha, apesar de sermos em muito semelhantes, não me dava o que eu invejava, o que para mim era uma ilusão transitória, para este era uma eternidade segura. Nos laços opostos eu me encurvo, me despeitava, odiava, odeio a felicidade de tais criaturas, se me apercebo odiando, e agora digo a você a culpa me remonta a cada hora a minha mesquinhez. A boca do peixe sempre abrindo, até quando? O ser só ser, maldita memória, ela vai sempre existir, lembrando-me sempre do que não pude, não fui, precisei ser. O parque depois do então, fica sendo uma ameaçadora extensão verde, ria de mim, ele era o próprio exílio, os homens o fizeram assim, mas ele para si, era matéria mais bem protegida, eu jamais seguro. Se a natureza não corre do tato humano, se ela não se rebela contra o homem, se ela não se defende, o que há então na força? A manhã prometida para meus olhos desfigurou-se nas lentes, o que pude conter desde então, para prosseguir em meu dia, estava agora em xeque perpétuo, não mais podia me enganar possuir a preciosa ingenuidade, precisamente animal. A natureza deu e se deu em mim, a quebra se dá diante do nariz.

...continuando a dizer, dia após dia, este relato que mesmo não sei do que se trata, conto as voltas, o exterior, o íntimo e o repleto, meu prezado amigo, na próxima vez que nos encontrarmos você me verá tão diferente, tão renovado, imenso, onde você me olhar, verá os caminhos desta carta, o traçado, o local a que você se deixou ir, levar. Crescerei de tamanho, meu corpo, mesmo o bucho, dirá coisas atléticas e não pense que não ficarei feliz, se já estou ficando, este papel me poupará tempo, sua compreensão me poupará tempo, sua compreensão me poupará esforço e palavras vazias. O que é uma carta? Se não é um momento anterior a um belo encontro. Um instante de separação. Você sabe basicamente de toda a minha história, moramos na mesma terra, abraçamos mulheres parecidas, jogamos futebol, tomamos bomba, repetimos lições, fizeram sobre nós juízos e vontades . Não sabe de algumas entrelinhas, em algumas épocas as cargas da idade, a distância vinha e meses depois tudo era como dantes. Sobre a família, conheceu meu pai, minha mãe, minha única irmã. Nada que a você digo agora é novidade, mas para mim, dizer assim, sem ter a pessoa presente, o que se dá com as palavras, não é o fato, nem a hora, nem é o como, o tão de tudo é dizê-las, é remontar significados novos, talvez desapercebidos por mim e por você. Na fria matéria, no longe, numa época diferente, em espaços diferentes vivemos eu e você, me sobra depois da ausência de dois anos, recorrer ao passado para se formar o corpo da linguagem. Um passo aqui não me atrasará, espero que nem a você. Minha família prossegue sua vida na normalidade, minha mana, mãe solteira, apenas contradições corriqueiras. Assim se falando de família é inesquecíveis os vendavais.

...sempre lhe falei dela, nunca a você disse o nome, mas construiu nos meus contos uma pessoa, com esta réplica quem sabe poderás descobrir, encontrá-la na rua, reconhecê-la se quiser entregar esta carta, mas peço a você, querendo pedir, todo azar do mundo seja o suficiente para que isso não ocorra. O tempo em que estive lá, nas camas, nas ruas, isolado de tudo, eu e ela éramos manchas e roupas, tudo a se levar, com esporas, com altas doses de amor, foi assim se seguindo, sucessivos dias, até no chegar físico, tísico, quando a parada asseguraria que poderíamos continuar vivos. Realmente, foi realmente foi real foi, loucuras, precisei, precisamos parar antes que o ponto final fossem as novas manchetes de jornal. Mas tudo aquilo me faz falta, vivendo esta falta, temo outra mulher, que não seja capaz, que eu não seja capaz de suportar, de ter controle, afastado sonho algumas vezes pela semana inteira, sonho estar ao lado flutuando, os pés pisando no caos, na abertura, sonho ser verdade o que com muito custo decidi ano e meio atrás ser o melhor para mim. Libertei-me de uma possível morte, prematura, inacabada, ao passo que hoje me encontro preso pela conduta. O que o meu coração pede, o que vivo a razão manda. Sei que ao ouvir esta explicação, você se aquietará ao lado de sua mulher, lembrará de mim com desassossego, dará a mim suas mulheres e suas vontades. Estou ciente dos traços, do colorido, do fundo, da música que cerca a poesia que cerca a voz a morte que cerca o amor cerca a prosa cerca a vaidade cerca a vida; cercos. O que houve não é motivo para arrependimento, nem é moradia da culpa, talvez seja motivo para escrever uma história, ao passo que isso é um dos melhores motivos de arrependimento. Deixo à carta a responsabilidade de levar a culpa, o medo, o choro, a doença para suas mãos, porém ao lê-la, não pense, não sou eu tudo isso, sou um trecho mal cortado desta história.

...tu se aproveita da idéia, do ato que consiste em eu estar escrevendo, me espera ser vulnerável para se lançar sedutora. Lograrei tudo o que através de ti possuí e darei a meu querido amigo. Tu, Prosa, sem limite, sem escrúpulo, tu não é pai, nem mãe, tu, se despreocupa com o isso ou com aquilo, nem isso nem aquilo, queres alimento, queres teus filhos se multiplicando pelas estantes, quer conduzir, jamais sendo fio, quer o poder e as cadeiras para que lá, no congresso das artes, possa ter a teu favor maiores opções, queres o ápice, o princípio de todas as decadências em tuas mãos, o que todas juntas não são você só ousa dizer é. Não, não, não, o que não darei para me livrar de ti, farei voar por esta terra imensa a imensa a minha baba. Quando me sinto menor ainda do que sou, frágil, revelado a jejuar para que assim o melhor me venha a caminho, a galope, não tens misericórdia, me derruba, me esfola, escalpa as minhas forças, me deixa sem vontade de partir. No entanto, tudo que agora escrevo servirá para derrubá-la, meu prezado amigo, fiel, válido, será advogado de todos como eu, ele, que ao ler estas numeradas páginas, incontroláveis linhas, ele saberá agir de uma maneira bem menos fria do que a minha. Se prepare, meu prezado, ela é a maliciosa criatura que me faz de hospedeiro.

...quando o silêncio alude mais do que ele próprio, quando o berço do humor está na escuridão, quando as nossas senhoras fiéis as nossas vidas decepcionam-nos, quando o que ocorre nos pega de empréstimo, não há o que fazer, nossa diminuta dimensão que abre as portas do inferno, tudo é dragado, os ventos que irrompem pelos portais da consciência não são jamais suficientes para vencer criaturas que andam pelas noites em nossos sonhos pela vida - em nossos atos. Aí se percebe uma fraca atitude. Não fosse só isso ouvem-se os gritos de dor de quem não mais pode ter no silêncio a pessoa mais feliz.

...existiu um dia em que eu e ela quase morremos, não fosse a covardia de ambas as partes, eu já estaria morto, bem morto, mas o que me livrou deste destino, o que livrou-a do destino de morrer também morreu. Restaram os dois são e salvos, sem esperança, são e salvos, sem vontades, são. No dia seguinte, separamos. Nas semanas seguintes não atendia o telefone, temia que fosse ela, não ligava, não saía da rua. Temia mais vê-la do que qualquer outra coisa, tua voz não podia ouvir, não podíamos nos ver. Repito isso todos os dias, todas as horas, ainda repito, ao escrever este relato, meu caro e antigo amigo, me voltando à tona os círculos, o que deixei para trás são expressões de um tempo, o que ainda carrego nos momentos de agora são os mais duráveis momentos de amor que já tive, os mais sinceros desesperos, o caminho que recusei não se recusa a passar por mim. Se há alguma satisfação em negar a existência do terror, assim aconchegar na calma de uma vida empobrecida, não olhar mais as ambições com inveja, nem perfilar algum perigo, se isto é o que consegui depois de longos anos, é melhor que eu não pense que perdi uma morte melhor que a que vou ter, não devo pensar que meu cotidiano me serve de esconderijo, que a guerra de que recusei participar era, mais ainda hoje, o melhor lugar de habitação para uma natureza tão conturbada como a minha. No passado ficaram os atos que decidiram sobre o tempo, hoje o que me resta nas minhas mãos são as possibilidades criadas lá atrás. Se não levei os meus projetos aos últimos riscos, não é justo omitir, foi porque temia o que ainda temo, as mudanças, as deixas do caminho, as outras vontades que não vivem e que não sobreviveram neste relevo ondulante. O que me pareceu seguro, o que é uma estrada segura? Esta só me leva a lugares conhecidos. Eu não conheço algum lugar que possa ser meu como é dos outros, que possa me receber como recebe os outros. Um só para mim, indivisível, se o que queria não é possível, me enganei na razão dos meus desejos. O que a sociedade me serve me serve de preocupação, o que tenho com os outros o que não tenho comigo é o reflexo dos meus atos. Quando agora, pensando em você, caro amigo, o que a você conto não é necessário para nossa forma de amizade, o que sinto para com todas as palavras que lhe dirijo é uma espécie de envelhecimento. Dizendo do passado, tomo coragem para narrar o presente. Talvez nas páginas posteriores direi a você como vivo hoje em dia.

...me pedindo com muita educação, você faz quase me enganar, o engano está na maneira de me pedir, reside sim em acreditar que eu, usando de todos os poderes que você me oferece, poderei pensar que o vazio, que a falta, a culpa, a placa sem sinais serão, ao lado de tuas vicissitudes, uma maneira a mais de ver e compreender o que há ao redor. Minha glória não gira mais para lado nenhum, não quero que os possíveis encontros, não quero que os meus sentimentos sejam combustíveis de tua graça. Querida Prosa, não se cansa de tentar, não se cansa de variar os modelos de tua fala. Se é só a mim que se diriges desta maneira, repousa na ocasião os méritos e as desgraças, se for a todos que tu se diriges, da mesma maneira não haverá lembrança dos méritos. Tua fala em línguas díspares assegura a eternidade de tua moradia. Os homens que ao nascerem, ao aprenderem e ao morrerem, fazem uso naturalmente de tua língua, não fazes a menor idéia da estranheza que causa, da medida ao pó não são sinais de destruição. Incólume prossegues brilhando brilhante em outras mentes, nos sentires de outros mundos. Não será ocasião prematura dizer-te feéricamente; em breve nenhum laço comum terei contigo. Ao perder a corda que me separa do animal, também não me restará ser animal, em breve, sozinho, o mundo me dará a pequena parte que fui, serei talvez uma condição da memória. Agora já basta de palavreado, meu querido amigo não tem obrigação de ouvir tamanho desprezo de conversa. Ela é assim, uma pequena deusa que conheci na infância e de quem até hoje não me separei. Devia é ter fome para que fosse possível largar desta caneta, pra deixar em repouso a página que ainda respira com dificuldade. Mas não dominamos o que é encargo de outros dominadores, por isso mesmo uso de seu ouvido meu amigo, para que assim eu tenha algum domínio de mim. A distância da minha fala para seus ouvidos é a distância necessária para se sentir alguém. Será que este mundo me pertence? Todas essas histórias e casos que, à medida que conto, me revelam imenso, sou tudo isso, linhas outroras disse a você que eu era apenas um recorte bem miúdo de tudo. Sabendo agora o que já sabia anteriormente, a pergunta volta ao seu lugar de origem: será este mundo o qual falo, que relato, é pertencente a mim? Não deixo de cortar nem que seja um pequeno pano de todo o isto. Me parace imprecisão de minha parte não saber a medida, nem meu alcance, não saber onde ficam as arestas do corpo, não estarei com ele aí quando você ler esta carta, mas será que haverá possibilidade de eu estar aí. As palavras dizem muito, nelas estarei, possivelmente cada engano desapercebido por mim será a linha de tortura do universo que as tento compreender. Que tipo de compreensão tenho pelas palavras, por minhas próprias, se elas me carregarrão até junto de você, junto dos braços seus, realmente não me foi dado saber. A carga de precisão ofusca também a verdade da realidade, escondem-se os enganos, e através das palavras eu, como seu amigo, me lanço a alturas, a desvios, a atalhos, para que numa dessas estradas possa minha vereda encontrar o destino seguro de todos os meus sentimentos. A podridão que aplaude a tentativa, zomba de mim na coxia, se ela não chegar, me mande notícia com urgência. Será que os estribos de meu cavalo são mares confusos, confúcios os pensamentos, a intenção é um largo erro. Se sou assim, da maneira que digo, e se as palavras são as coisas que me levam para onde imagino querer ir, necessariamente preciso confiar nelas. Os pesares são freqüentes, as solidões que o corpo carrega indescritíveis, se muitos esforços levam a nada, paciência, ficaria feliz com uma vírgula. Mas basta de dizer, o que faço tem seu ritmo, seu locutor, sua mensagem. Quando ou não, me sujando de lama, já é tarde para se pensar em tais objeções. Quando olho para trás e vejo a porta na calma, silencio as dores, restam-me os sacrifícios da noite. Os ruídos do hotel estão a me fazer companhia, a carta que eu escrevo estará intuindo uma companhia. Não há de me negar quem quer seja a veracidade magra da caneta que pousa em minha mão, que retorna do papel triunfante a cada pausa que faço, nos parágrafos, nos pontos, nas vírgulas, nas lacunas dos pensamentos, a cada instante desses soma-se aos meus olhos a vida que eu poderia ter, que seria melhor se eu tivesse, que, não tendo, não me resta outro a não ser este que escreve uma carta de amor. A quê! Não sei, se soubesse talvez não diria nada a você, meu amigo. Nos tempos que estivemos juntos em quartos separados, em casas distintas, nós que viemos de mães diferentes, de pais abruptos, nós que estudamos no mesmo colégio, recebemos das freiras aquela cristandade opaca, nós que pensamos que, ao violar os sacrários da igreja, estaríamos pactuando com o diabo, nós que dissemos não a Jesus, que dissemos não aos nossos pais e anos depois fomos morar numa nova cidade, acobertados de ilusões e expectativas, nós, irmãos da adolescência, vivemos um em companhia do outro, tantos anos, e apesar disso, que infinidades de perguntas não fizemos um ao outro. Nós deixamos ser cúmplice em vez de amigos, recolhemos nossas dores, nossos medos, quando nos acostumávamos em nossos travesseiros, naquele quarto de pensão, você trabalhava na firma de publicidade, quando cada cabeça se afogava no travesseiro, dizíamos a nós mesmos o que será que se passa com ele, minha voz pode alcançá-lo, minha pergunta pode ser respondida, minha curiosidade pode ser satisfeita, e “Meu”, por que não falo, o que temo da companhia ao lado, nos dávamos boa noite querendo algo mais, mas não fomos capazes de recolher o orgulho, de nos dar em aberto uma conversa, perdemos nossa preciosa oportunidade quando tudo nos favorecia. Deixamos de lado e agora, muito mais tarde se vêem as bobagens, os desperdícios, de pensar que acontecido, vivido, fruído, foi, nada mais, nada menos, a melhor parte da juventude. Moços ainda somos, bonitos ainda nos sentimos, sadios permanecemos; embora tudo isso seja motivo de alegria, eu, agora indivíduo de você, eu sinto uma profunda fraqueza, um mal-estar me dita a culpa, não ter vivido do coração do que as virtudes da razão. Aprendemos naquela época a andar, correr, não temer, nem um momento olhávamos o dia anterior, em nenhum momento saboreávamos o que se passou, não olhávamos para trás, nossos olhos eram demais atentos para o que ia acontecer, não cabia a necessidade de se voltar um passo atrás, éramos famintos, como galinha nunca olhamos o céu. Aos dezoito anos, as mulheres tomam nosso tempo, os estudos tomando nossa consciência, para tudo isso não medíamos esforços, que atenção que demos ao mundo a nossa volta, a nossa volta ficaram as intimidades.

...nenhum engasgo, se provoco todos os assuntos e se todos são na exclusividade dos meus modos, não há motivo para não dizer. Podíamos ter morrido, também podíamos nos acertar, mas não, o que nossos corpos pediam um ao outro era a mais grave eloqüência dos animais. Não me sinto envergonhado, os limites são limites, por isso só não precisamos temer os fins. Não foi por isso que, recordo, não foi por uma dignidade moral que paramos de fazer todas as aquelas coisas, monstruosas diriam todos, as pessoas, como sou eu que escolho as palavras, que escolho como fazer, escolhíamos nosso caminho, caçamos nossas jornadas porque o amor não mais necessitava daquilo, mas nós sim, queríamos a todo custo reter a natureza pertencente; um dia, o amor brilhou do exterior, acenou, foi ali que me enojou o meu corpo, o corpo dela, foi ali que vi quão distantes estávamos da natureza do amor, o corpo não encarregava mais de amar, eu não me encarregava da verdade, eu buscava, estorvando os excessos, me comprazia. Diria agora que ocorreu o mais difícil, a vida deu provas legítimas. Honrei os compromissos, mas arrependido fiquei de não honrar o corpo. Pena que diferentes conteúdos não possam ficar numa única garrafa, mesmo que esta garrafa tenha sido moradia dos gênios árabes. As mil e uma noites que já tive me ensinaram a pensar que tudo é conseguinte, o fim é áspero, porém sensato. Nem infinitude nem finitude, nem tempo, transitório ou não, aglomera-se no fim um bocado de coisa. Possivelmente quando nós dois olhamos, as peles roxeando aos poucos, os rostos com algumas manchas de sangue, nossos olhos se assombraram, um terror choroso nos veio fazer companhia, em tal momento a única coisa que formulei, o único sentir pensar que obtive foi “o que aconteceu hoje foi o começo ou o término” que mal concebido, se é que concebi algum dia. As doses do tempo, vieram instantes seguintes, diziam elas, as doses, o tempo, o vazio é um lugar qualquer, visitado apenas por palavras. Éramos tais palavras? Respondida ou não a questão, a vida se secionava, com fluxo e afluxo, um de frente para o outro, a amar, a odiar, a querer saber o tão necessário de tudo. O tudo não era muito, partes, vontades sonhos, alergias, prazeres, não era tudo, tudo único, não era habitável, apenas vivível, experimentável. Uma lágrima degelou dos olhos, veio cair em minha mão, que nesta hora repousa nas coxas dela, rua, sombreada pela luz funda de um quarto de hotel. Ele não viu a lágrima, ela não via ninguém, a aparência dela necessitava uma ressurreição. A minha maldita face era formada de ossos mais resistentes, nem por isso eu fiquei menos machucado, os efeitos são externo quanto o mundo lá fora. Os seios se mantinham tesos, os cabelos negros embaraçados, na cama circular, o centro não era nem eu nem ela, na cama redonda uma viagem bem começada terminava - O como respondo só agora - As distâncias, a memória, o longo tempo, escrever esta carta, responderia ativamente. Terminado o pavor, quando tomávamos banho, sem olhar um para o outro, o dia amanhecia, a porta bateu, bateu com a madeira a respiração dos nossos corpos. Neste dia não fui trabalhar, nem no dia seguinte, nem no próximo, um amigo médico me salvou de ser demitido. Se ela voltou é o que você queria saber? Meu caro amigo, decerto ela voltou muitas vezes depois, muitos dias encontramos, mas parecia que a cada encontro um receoso medo nos acobertava, não nos dizíamos essas coisas, nosso tempo se acabava. Aquela foi a última noite em que a calma se manchou de sangue, o que nos privou de tamanho agouro foi o que nos disse, meses adiante, que nosso tempo havia se esgotado. Não houve pacto de saudade, nem lamúrias, o excesso nos havia engolido, para isso o único remédio era termos a mais sincera conversa com a solidão. O diálogo tinha seu fim, e a narrativa prosseguia o livro. Como agora a você conto, eu contava para mim mesmo a história tal qual havia sido feita. A título de recompensa uma nova matéria surgia em meu caminho - o exílio.

...sou tão necessário assim, quase me comoves, não que não acredites, mas cegamente é difícil acreditar em alguma coisa. Se se aproximas desta maneira, piedosa simples, amável, motivos deves ter. Eu sou tais motivos. Decerto não te compreendo, não a concebo, nem aludo de que maneira. Que tu sintas minha falta, até creio que sim, mas não falta humana. O teu mundo só se apresenta agradável a ti quando serve aos teus propósitos; saindo disto, o que sinto, o que vivo és para tu a mais completa insignificância. A falta que tu sentes de mim é o que eu posso te propor como mundo, como forma de mundo. Teu afeto se esforça em gostar do que posso realizar, não do que sou. Não me digas coisas bonitas, não me digas nada, não me digas mais mentiras. Compadeça-se de ti como eu me compadeci de tu por uma infinidade de anos. Meu caro amigo, essa conversa que quase todos os dias tenho com essa senhora não é para assustá-lo, é diálogo cujo fim está próximo, e como você é amigo, essa conversa que quase todos os dias tenho com essa senhora não é para assustá-lo, é diálogo cujo fim está próximo, e como você é amigo, seus ouvidos serão sadios pra escutar tal conversação. Se a conversação não parecer tão sadia, não se preocupe, eu não me ocuparei com tantas linhas, somente as necessárias. Falando de necessidade, você, formosa Prosa, descobrirei desnecessidade, se já não descobri. O primeiro efeito dos meus atos já está se verificando, veio me pedir, mentir, me enganar, para que eu volte ao teu lado, dando o máximo de meus mundos, demonstrando minhas fraquezas, esse tempo já poderia ter passado, mas não, ainda me comprometo com tuas inúmeras sombras. Para ser o que sou, é tão necessário tu; para poder não ser, não me estendes nem uma mão. Quando eu confesso teus valores tu ride, além da imaginação, me arrogo pena, arrogas poder. São lados da moeda. Amanhã ou depois, ainda se calarás, a vida minha será motivo de inveja. É cedo para fazer planos - Eu sei, amigo, o tempo tem sua isomeria.

...a maior jazida de petróleo foi descoberta bem longe daqui e eu com isso? Quando li o jornal de hoje, lembrei-me de você, do seu gesto por letras tão pequenas, por matérias informativas, à procura de conteúdo fiquei quase duas horas, é necessária a elaboração das notícias, eu, que despreparado para isso sempre fui, acabei fechando o jornal, corri para a minha caneta, vim dizer-lhe quão bom você é, quão difícil é viver em sociedade. Não estou aqui para escrever sobre o jornal, sobre a sociedade, a carta que escrevo não se assemelha a nenhum pregão da bolsa. Ontem alguém me disse, - Por que você não se casa? Não respondi, fiquei olhando para o rosto de imbecil, até que me dei conta que ele esperava uma resposta. Dei de ombros, tomei o restante do copo de cerveja, fui embora. Realmente a minha conduta foi um pouco áspera. Me vem um cidadão, me conhece, eu não o conheço, ele quer conversar comigo, eu não quero conversar com ele, ele não percebe meu tédio, eu fico entediado cada vez que o olho; o bar no final da tarde é lugar de beber, o cidadão quer conversar, eu nem o convidei para sentar, pensando agora, até que fui muito delicado. Ainda assim voltei para casa pensando na história de me casar. Uma mulher todos os dias é um curso educacional e eu verdadeiramente não sou um dos alunos para este tipo de para casa. Porém o estranho é o que os argumentos não cessam por morar com alguém ao lado. Atualmente as mulheres são casos de uma única cama. A minha, uma de casal - ( quando não deito e me estico todo) - quando a olho de longe, dois ou três metros, sinto o não há lugar para ninguém, sinto que monotonia é uma espécie de solução. Pelo meu quarto há um conjunto de memórias, cada coisa tem seu hábito ou autor. Hoje, não olho mais ruas como cientista, não leio mais o jornal como escritor, não vejo mais as pessoas como entidades desconhecidas, não penso mais em Deus como significado, descobri que os parques de diversões são como eles são, ou pensam que são, porque gente é, monotonia e alma são a mesma coisa. Vida e mundo, uma linha uma boa respiração, prazer; não deixei fenecer a paixão pela morte, nem a sensação de exílio fugiu de mim, o que se desdobrou à frente foi uma versão da história, as perguntas que sempre fiz, que faço a você, meu caro amigo, ainda faço, ainda almejo ser feliz, educado. O fim de uma conduta não esclarece a conduta a seguir, o próximo passo a ser dado será como antigamente, joga-se os dados, talvez ganhe. Quero como qualquer um, o pão, o café, leite, não levarei meu filho na escola porque não tenho, não farei sexo com a minha esposa porque não tenho, pelo contrário, quero me adaptar ao mundo, ao mundo leigo, o mundo do dinheiro, das vantagens, serei o sempre exigido, um crédulo. Se em mim ficarão partes vazias para respostas, sem satisfações, paciência, loucura, amor, existência, filosofia, música arte, poesia, falência, numa mesa de boteco poderei ser mais um imbecil. Tanto trabalho, tanta ternura, tamanho desperdício do tempo, díspares sombras me acompanharão, o meu parque será alguma estrela cadente.

...após um número, contado, sou eu que escrevo, parece, que comecei esta carta ainda hoje, estou na metade da primeira página, tenho muito para fazer, tenho que trabalhar. Uma imensidão de assuntos me aguarda por dizer, no, no começo tudo se parece de mesma de mesma importância. A medida da primeira linha não se diferencia da última. Só no seguir dos dias, das páginas, alguma alteração é refletida; não me equilíbro antes de cair. A física me diz do equilíbrio dos corpos muito mais do que a arquitetura diz sobre as concretas arquiteturas do homem. O equilíbrio dos corpos, esse enunciado, esta expressão diz mais do que o uso. Quero esta mesma interpenetração no que te digo, quero ousar os meus anos neste papel, nesta caneta, quero ousar, quero dizer o quão distantes os meus músculos estão da presença tua, na presença do mundo me recolho, timidamente, minha missiva tem a responsabilidade de encarar os olhos de outros, os olhos teus me assombraram muito tempo atrás. Na realidade, quando moramos no mesmo teto, dormimos no mesmo quarto, quando todos os dias nos contávamos os erros cometidos contra alguém ou nós mesmos. Lá estavam seus olhos redondos, grandes, firmes, neles repousava uma veracidade que os meus não possuíam, por isso mesmo quando te dizia de alguma coisa que me chateava e tu me dizia que não era assim, acrescentando às palavras um olhar que sucedia para mim uma gravidade estampada e rubra. Sua face é uma gravidade que muito atrai. Não encontrava palavras, o que via no seus olhos; para estes é que lanço minha sonda. Não há mais nada, é tarde da noite, é tarde para ficar contando e sucedendo. Muitas coisas são esquecidas ao escrever, muitas não deixo passar para o papel, principalmente aquelas que me tornariam perante você, monge, ainda é rei, mas eu por minha vez não sou um escravo. Na sua corte faço o que na minha mando, já não é mais necessário hierarquias. O corpo desnudado de saudade privilegia o amor, este se aproxima mais e mais, porém para tudo há uma pequena dose de mentira.

...não chegue mais perto, não me venha com delongas de festas passadas, não me venha contar o quanto fomos felizes, não me venha lembrar que eu sou passageiro de seu avião. Minha cara, excelentíssima, esplendorosa, minha senhora, Prosa, minha de versos incolores, hoje o que aponta tua presença na minha calçada é nada mais que carros que se batem, pessoas que morrem; que a sujeira seja minha mais nova companhia. Pureza, ingenuidade, beleza, viva voz, as gueixas que me encantaram não mais me possuem. Deixei de lado o prazer, deixei minha pessoa neutra do outro lado do rio. Que rio é esse? O rio onde nasci, vivi, quando adulto viajei ao estrangeiro. Fica lá do outro lado do rio. Nunca mais serei o mesmo, nunca mais voltei à minha terra natal. Minhas cartas nunca chegaram, minha voz nunca mais ecoou, meu amor não mais se elevou por aquela terra. Deixei uma margem, pensando ser feliz na outra, percebo então, após tantos anos seguidos, como minha terra era uma paz segura. Não me pedia nada, não me requeria para nada, estava sempre ali, o rio em frente, eu olhava sua água escura, seu odor puro, mas mal me contendo, e lá estava eu do outro lado do rio, sonhando estar feliz e estando sonhando. Que descontentamento! Que brochura! Deixei que a curiosidade mandasse em mim, hoje quando olho o mesmo rio, do lado inverso nada vejo, senão uma marola que conduz minha esperança. Há muito a coloquei no rio, todos os dias peço para que consiga chegar do outro lado. Dando notícias minhas para aquietar corações, os meus próprios corações. Hoje a margem que eu invejo foi habitada por mim, a margem que antes invejei nunca soube me acolher; me ofereceu muitas flores, sempre flores, coroas e coroas, buquês e buquês, aguardando a hora. Que rio é esse? Meu caro amigo, ao desenrolar meus tapetes trançados, ao tosar minha melhor lã, ofereço a você o meu dorso, imberbe, meu corpo nu ainda sente as viravoltas do mar. Quase sempre é tarde quando me despeço de alguém, quase sempre a noite está no fim quando decido dormir, quase sempre é uma expressão própria da minha vida. Se não há lugar para o certamente, se não há lugar em mim para o duradouro, se o espontâneo de minha pessoa é efêmero, que hei de fazer? Sorrindo dos sorrisos de alguém, feliz pela felicidade do outro, meu caminhar tem as mesmas pernas separadas do corpo.

...não te falei que conseguiria, em breve termino a missiva, em breve terei o melhor da minha pessoa. Talvez assim com o processar do tempo, com as distâncias alcançadas, só assim verei do barco com a mesma aflição o rio, verei o barco o peixe grande que tu és, Prosa, leviatã, dona dos setes mares, dos infinitos rios, neste barco acenarei pra ti, do outro lado do rio acenarei para ti, do meu lado estará quem me ama, meu amigo, ele sim será a única testemunha desta visão. Como visão, só o futuro poderá dizer se ela será legítima. O futuro tem suas leis, mesmo tu, apesar de poderosa, se encurva, nessa humildade forçada morará meu melhor paladar. Não percamos mais preciosas palavras, o que tenho a te dizer, querida Prosa, será dito, espero que até o final desta carta eu exponha para esse amigo, mais isento de tudo o que poderia ser, as faces tuas, e que nestas mesmas esteja explícita minha intenção.

...vivemos em um presente áspero, modulado, inusitado. Nos despertávamos para milhões de desejos, realizávamos nossas paixões, não havia lugar seguro para nós. Ela, meu querido amigo, atravessou minha garganta, fecundou no meu íntimo traços quase mortos de minha infância, fez de mim uma armadilha - que a prendeu, que a dilacerou, longe dito morava o amor. Eu, por minha vez, não soube dizer não, eu, por minha vez, me disse sim. Negar ao outro aceitar a si, me vivenciar foi naquela época comprometer o restante. Como comprometi minha felicidade, a felicidade dela, hoje penso assim, mas lá, diferentes normas regiam minha moral. Será que as tinha? Só as tivemos no momento que dissemos basta. Por aí interpreta a consciência antiga de minha pessoa. Não sou uma história que se diz analisável, interpretável, deduzível, não sou, nem fui manuscrito, se no passado com minha vã consciência dei conta de algo que não se interessa por julgamento, suspeito da consciência que tenho agora, esta também constrói os julgares, o bolo que cresce se difere pela forma, eu não me difiro do que fui, eu me acrescento continuamente, mesmo que seja perda, ganhos, escoriações, nocivo ou dócil, permaneço como o tempo que me criou, um inerente aspecto.

... na semana passada dizia eu sobre ela acabei dizendo sobre mim. É um erro antigo este do qual eu mesmo me apercebo. Uma confusão de pessoas de pessoas fazemos ao recitar palavras que outros disseram, ao viver o que é vida de alguém, o que é meu que não é dela, o que nunca foste dela, o que nunca de você, ao lado da minha linha, milhões de linhas, aparelhos, emissores, destinatários, amores, mortes, sujos, sombras, moléculas, poderia prosseguir neste parágrafo com milhões de palavras, mesmo assim meu pensamento não é só inteiro, nem só meu. Quando nós dois morávamos naquele quarto de pensão, como amigos unidos, ditos como tal, nossas naturezas eram ainda combatentes. Não, nós nunca pertencemos ao mesmo ruído, nós vivemos sempre nas paráfrases da família. Nunca procuramos nos esquivar dos nossos caminhos, tortos são os caminhos, mas seguimos. Foste torto o seu, regrado firme, muito longo, penetrante até mesmo na mais profunda gruta. Não importa aqui dizer sobre o certo ou o errado, sobre o que é meu e não seu, sobre as nossas estirpes, sobre as nossas sedes - também não é mensurável dizer; o que me resta a fazer senão do amor. Foi através dele que conheci você, é através dele que volto procurar por. Neste país em que você vive, em que já vivi, este outro lado do rio tem árvores que fui eu que plantei, agoei, podei, revesti de ternura cada folha. Delas recebo a curva isolada de um raio de sol. Se me assombro ao receber em minha face essa pequena claridade, me assombraria mais ainda se eu soubesse que aí, tão distante, recebesses alguma claridade de mim. Pálida, ainda assim muita felicidade me causaria. Mas é descaso da natureza não refletir toda a beleza que nós homens queremos dar às coisas, aos outros homens, é ela a fonte do descaso. Embaraçados nas malhas finas, nas redes bravas nos debatemos antes de morrer. Isto se a morte não existir antes. Antes de que? Não compreendo o que eu próprio pergunto. Meu caro amigo, há muitas razões que me fazem não pensar o quão duvidosa é minha própria razão. Me foi dado acreditar em alguma coisa, não sei que coisa é, pelo menos em vida. Se agora menciono vida não posso esquecer de mencionar flores, como não posso esquecer de mencionar Prosa; muitos cortes brutais ainda farei no rosto. Neste exato momento alguém passa alguém passa por debaixo de minha janela, por sobre meu passeio pela porta do meu hotel pela rua que eu sempre ao sair daqui atravesso. Alguém muito especial passou debaixo da minha janela. Não é operário, não é intelectual, seu passo é de mulher, e essa mulher é uma prostituta. Minha janela é um bordel anônimo.

...na última conversa esclarecemos as importâncias. Se assim é, o afastamento não será mais difícil para mim do que para tu. Minha cara Prosa, um longo recesso está por vir, quem sabe será o mais longo recesso nosso. Ao teu lado conheci maiores e menores altitudes, maiores e menores atitudes, a prova de tanta riqueza conhecida, conquistada, está no que sou no que és, minha destra inimiga. Quisera uma amizade sólida, um andar de partilho, quisera eu ser o maior das vontades. Não foi possível, não foi, minha querida, como eu quis, não foste como quiseras, não será como queremos. E o que queremos? Por minha vez, respondo a cada dia que passa uma resposta diferente, e a cada dia que passa não será como queremos. E o que queremos? Por minha vez, respondo a cada dia que passa uma resposta diferente, e a cada dia que passa não sei como tomar as novidades nos meus braços. É atrasada minha vontade de saber o quero de ti, o que quero de você amigo, o que quis dela, quero de mim, meu querer me manda notícias pelo jornal. Novas me parecem todas conclusões que descubro, saudade tenho do caráter firme que já tive, hoje em dia meu caráter não afina com nenhuma verdade, ele apenas especula o que tem as coisas. Que coisas são essas? São as que me deixam em pé a cada dia, são coisas contínuas pertencentes a quem precisa de víveres para uma viagem de caravela pelo oceano atlântico. Ao contar pelas frases o teor de toda conversa que tenho com esta fulana ilustre, meu amigo amado, me perco para sempre em perguntas e respostas, em sentimentos e frustrações, não sou mais do que um veterano a falar as minhas desnecessidades.

...não sei quando vou voltar a olhar o que em roda me ofusca. Não sei se é direito ou não, minha próxima revelação será o céu prateado incolor ausente e submisso que me confraternizo junto com o destino. Será melhor aceitar do que recusar os diabos que me visitam. Não há constrangimento, nem há motivo para pedir socorro, nem há você meu amigo. É bom que você more no país em que nasci, onde queria eu poder morrer. Assim bem de longe, na barca clara imparcial, possa ver os erros ou acertos da pessoa que escreve. E essa pessoa que escreve ainda é a mesma que um dia o amou. Não pergunte ao estranho quem eu sou, não confunda pelo brilho, mas lembre-se, meu verso, minha prosa, minha beleza é bem mais nítida do que se possa imaginar. Se contigo conto, dos meus embaraços desvergonho, não é à toa nem raro, assim mesmo me guardo no leito. Quem habita meu hálito me ama em jejum. Voltei hoje do serviço, no ônibus pensei já em escrever para você. Coisa que agora faço nesta tarde mansa, me perguntando sempre, sempre, sempre... qual será?

...ontem à noite fui a uma boate. Lá havia muitas mulheres, muitos corpos másculos, lá havia quem me dissesse basta. Bem tarde da noite fui para cama; não pude senão dormir. Não foi por ela, ou por elas, não foi ocasião de me enganar. Já na luz do dia, ela me perguntou - Por que? Eu tive que mentir, disse que não, que outros ninhos haveria para que eu pudesse amar. Volto para casa, tomo café, vou ao trabalho. Neste mesmo dia voltei a boate. Para a cama fui com a mesma mulher, agora disposto a sorrir, Não mudou nada, o quarto era o mesmo, o lençol havia sido trocado. Dormi além do que podia, cheguei atrasado no serviço. Ela não voltou a me perguntar o porquê, nem eu voltei a falar, nem mais voltei àquela boate. Não há mais nada igual que desejar. Monotonia mais antiga, se não é o amor, é desejar por todos os momentos alguma coisa. Não desejei a boate, não me feri num passo a mais do ferimento. Estanca minha vontade. Meu objeto amigo, presentemente a monotonia e a variedade se deslocam para um mesmo lugar. Não acuso a natureza de nada. Não recebo dela nenhuma solução milagrosa. O vento é próprio do ar. Eu sou como nódoa, como bicho, tempo é desejo. Quando descubro meu véu, olho minha face no espelho, olho meu sorriso em algum olhar quando me descubro, quem me olha nu é quem me deixou desacompanhado. Subo a serra, em algum vilarejo procuro não olhar pedras soltas. Se minha vida não muda percebo então o esforço longo que faço para não envelhecer. Não há maturidade em envelhecer. Abismo, verdade, passos frios da matéria. As gotas do orvalho que chegam do outono não me diz outra coisa senão de uma mansa ordem. Eu quero sempre importunar a ordem do mundo. Como seu amigo, quero importunar a ordem do íntimo. Como seu inimigo, porque me aproximo sempre do que é sincero a você, quero importuná-lo com o medo. Minha ausência é como uma bomba que te ama. O que eu destruir em ti, meu amigo de infância, deixarei para sua família. O que é da família senão o meu desejo mais do que sincero, desesperado, de permanecer eloqüente. A mente que tenho, limitada artesã. Não sou eu todo o sujeito que declara, como não estou só a declarar que sou muitos. Este rio que você vê do alto de seu prédio não é o mesmo que vejo do meu hotel. Minha inveja mora contigo, meu amor me deixa mais caldo do que eu sou. No entanto, escrevo a história de que participo. Você meu querido, pego de empréstimo para ser o meu único leitor.

...algumas vezes acho que estou abusando de você, não vou ao seu encontro na pessoa que sou, mas me viro, como anjo persigo os homens.

...é tarde para me visitar. Faz frio e recolhido na cama espero o sono. você Vens à minha procura por carência ou por amor; assim mesmo não faz da procura uma diferença. Tu, nobre e condessa, prostituta e patroa, me ensina o carinho das almas infelizes. Agora não olho, nem me viro de lado, deitada na minha cama se acasalas ao pensamento, intriga-me curiosamente, mas eu não me viro, nem olho, tu pertences ao mundano, aos sonhos das realizações, eu, que de carne e osso ando, tento a solidão mais sadia, despertas o coração, a atenção mais esquecida, mas não é hora nem do escravo trabalhar, agora com alforria já em mãos, mesmo com o alto salário que tu me ofereceste para trabalhar, ainda que valha a pena estar a seu serviço; cara Prosa é tarde e faz frio, frio. Meu sono é firme e contínuo, enquanto isso a estada no seu país é sempre motivo para golpes. Não, não, não, vá com os teus, deixe-me liso e público. Permaneço de barriga para cima, o teto que vejo não é o dos mais belos, e nem é esse momento tão sublime assim, mas não, minha cara, quero apenas um sigilo normal, sem devassidão, nem pontes de safenas. Querido amigo, ela insiste na mesma lembrança, como há uma venda futura, minha recusa não tem para ela a não ser uma união de vingança com a necessidade. A escolha que tenho é a mais perto escolha do que é breve. Demasiado longo continuar, se não o é, ela me caça na altura dos meus defeitos, na extensão de minha ambição.

...o relógio tocou às seis e meia da amanhã, ao despertar tudo me parecia subsequente, não olhei para o lado, me pus de pé. O céu era uma mesma madrugada. No ônibus sentado, à beira da janela fechada, o ar que respirava era o mesmo da última saída. O homem ao lado, sentado, um vazio enorme devia ter entre as pernas. Me esquivava de suas coxas na hora das curvas, o rosto de tal fulano era uma vírgula num diálogo de surdos. Queria não andar de ônibus. Algumas quadras à pé até a mesa. É necessário dar um ponto final para que eu continue a falar, amigo, de coisas que dizem respeito somente a mim. Escrevo sobre você ou para mim. Se confundem em minha mente os tempos do verbo. Condenso as notícias nas entrelinhas. Já é hora de abrir meu ventre e expor.

...uma floresta fria foi a única coisa que lembro do sonho desta noite. O que deixo descansar no esquecimento me pertence com ausência. As descobertas têm as medidas dos atos. Há um equívoco aqui. Um grande e sonoro equívoco. O pertencente à minha pessoa é o que me saúda com companhia. A solidão como regra geral. Finito semblante das virtudes humanas. Meu amado, meu caro amigo, hoje em dia, no cotidiano, o que me falta para viver é o que encontro ao escrever para você. Esta carta que redijo parece bem mais do que a vida que me visita aqui, sempre me lembrando o quanto sou anfitrião. Um corpo faz sua saudação, não há o moderno para se utilizar, uma maneira mais digna preciso descobrir para ganhar o transitivo; alguém vai me acompanhar? As máximas estão nos livros de bolso, em algum casaco sujo, uma pessoa recita a solução. As agulhas de crochê dos poetas não me servem, as vozes dos cantores conservam o tom, entre eu e minha amiga resta apenas aquele pequeno sinal de estranheza, essa amiga que volto e volto sempre a contar, nessas conversas, a você, essa amiga me deixa só quando estou só comigo. Com essa solidão me enfeito e a glória que tenho escreve o mal-estar mais recente. Os contrários que se arriscam em estar a meu lado são testemunhas do conflito. Qual seria esse conflito? Quem pergunta não está presente. Quem ouve não se julga capaz de responder. Uma boa hora para se calar - quando podemos estar felizes.

...anteriormente, há anos atrás me livrei de grandes problemas. Os casais não ousam nem dizer. Melhor teria sido uns qualqueres, é tão sórdido negar a conquista da dor; eu sou assim, meu caro amigo, um poço de baratas, cuspo e lambo, ainda perco a memória de ser barata. O sentido que faço do que fiz é na, na maioria das vezes, a maturidade mais inútil. Me sinto feliz, por abusar, por criticar o que foi, me é superior o que rejeito por não possuir mais. Desenhar o passado, a velhice mais atroz que um homem pode ter. O que tenho se não é comprometimento, é eu sozinho, comprometido com o que sou, com o que fui - o que serei não promete responsabilidade, se sujeita ao tempo. Você também, meu caro amigo, se sujeita a ele. Quem participa do mundo se sujeita. Quem é louco perde a cidadania do tempo. Quem é o tempo? A memória que verifica o caminho da velhice. Quem é a memória? A célula culta do homem. Quando esbarro no que é, me vejo no inverso do que sou, penso - o material de conflito é o mundo, é o homem, pensamentos deuses, memória, tempo, as palavras são grandes, não eu. Minha lição de casa é viver, sociável a quem? O homem com o animal, animal racional e animal, homem e homem. A sociedade que vejo é a sociedade que tento penetrar. Não são janelas comuns, o universo não se tem redor, tem em si o que me falta, minhas próprias palavras. Aquela amiga parece se inquietar sobre isso, se debruça sobre minha mesa, se debruça sobre meu bloco, ela, , .

...saúdo a saudade que sinto de ti, saudade essa, íntegra. O que cerca o meu conflito com esta moça são as leis. Esta Prosa que vejo andar por cima dos meus livros, na cama, no banheiro, no trabalho, esta Prosa que bem vestida sempre está, ao alcance do meu corpo a qualquer momento do dia ou da noite, ela tem seu veredicto quanto a mim. Meu amigo, o veredicto que falo foi o preço que paguei para poder freqüentar o clube. O veredicto é imutável. Não sei qual é, mas sei por ela dizer, sempre querendo me pressionar, que o veredicto está em lugar fresco, imperecível ao tempo. Todos os dias a senhora me lembra. Todos os dias esqueço a ocasião de morrer. Em breve, estou me ajeitando, não perderei a oportunidade dada, lembrarei da voz e a voz lembrarei, ( a minha voz de morrer) . Como qualquer um, menos do que um, mais do que meio. Como tenho vontade de vê-lo meu querido amigo. Estar ao lado de braços tão confortáveis, não sendo justo tal sonho, realizo minha tela.

...passei o dia inteiro comparando meu humor de hoje com o de ontem. Nada de diferente. O gênio dá algum sinal de monotonia. Preocupação! Talvez tudo seja em função da idade. Talvez tudo esteja em função de meu carater. Estão os caracteres a retratar, tarefa que tenho cumprido, sendo o começo de mais mudança. Minha aparência, a que tenho hoje, um pouco turva, esverdeada no cabelo, a barba de quatro dias dá um aspecto de esconderijo. A letra que tenho, um pouco indecisa nas pontas, arredondadas nos meios é mais um sinal de mistura. Visto roupas leves, quase sempre, pelo menos em casa, posso assegurar, estou nu, passo o dia algumas vezes nu. Chego ao serviço no horário, sou demoradamente carinhoso, abuso muitas vezes das lágrimas guardadas. Continuaria a descrever a você minha aparência, mas não, passaria a carta inteira falando; concluo então, que o melhor a se fazer é concluir. Meu carater é a soma dos gênios anteriores com os gênios que ainda se sucedem, que ainda se sucederão. Antigamente, não precisarei dizer, foste meu cúmplice, meu amigo, o gênio de hoje decifro por ocasião da sorte, o que elucido até agora é uma antiga vaidade, à importância dela dou o nome de mania, existe uma vontade de amor. Amanhã as vontades cessarão. A certeza da morte esclarece meu gênio. Um tempo, um lugar - um plano de filmagem.

...eu fiz sexo com ela, quase nos matamos, não espero recompensa, nem análise. A falta é a falta. O amor é um antigo pedaço que perdi ao nascer. Procurei nela, fizemos tudo aquilo à espera de encontrá-lo. Não foi possível morrer. Quero o direito de me alegrar porque estou vivo, porque não a matei, porque não a deixei me matar, dou a ela o papel de crítica, só a ela, nem mais ninguém pode temê-lo - o amor. Justo ou injusto assim sendo. Não me importam os sacrifícios, as perdas, as ruas e foram muitas que eu deixei sujas, impassíveis de gente. A coragem que juntos demonstramos nos redime de qualquer erro, estou em plena justificativa, em julgamento, porém o que concerne ao amor é só o que o concerne. Falo a você, bandido, perdão para pecar, absolvição para a culpa. O mundo me deve muitos dólares. Eu evitei um assassinato mútuo, eu evitei o que queria.

...noite como outra, como ontem, agora noite. Por sobre a calçada os mesmos vestígios longos. O homem em trânsito, vindo de muitos lugares, uma cantiga milenar toca a minha janela, na rua quieta, enferma, a roda de crianças, nessas horas quando olho para seres tão miúdos, tão cheios, como leve e cheio é o ar, o sorriso fica na contra-mão, a esquina é iluminada, os carros que ainda passam me lembram a hora de jantar. Comemos muito macarrão naquele quarto, eu e você, no decorrer de muitos trabalhos, a época era um dia anterior ao nosso futuro. Mal sabíamos do resguardo do destino, éramos como silhuetas de gavião, no passar ao chão faz-se tremer aos pequenos. Tal vigor é da juventude, tal pretensão se acresce com medo. Aos poucos deixamos de lado o que está em frente, a memória que ia se cabendo refletidamente, crescia em nossos corações os particípios do silêncio. O que tomava o paladar agradavelmente, o que ia sendo esclarecido pelos sentidos, em breve tivemos na luz de todas as ocasiões saudades antecipadas. Era como se ao estar ao lado de quem muito se quer estar, estamos assim, abertamente na véspera da ausência. Meu querido amigo, muitas vezes em que nas conversas nos acariciávamos procurando no corpo estendido de outro do outro a matéria segura do amor, estávamos ali, órfãos, eu, por minha vez, não morri. Sadia tivesse sido toda a permanência de nossa amizade. O espinho mais antigo também é o mais úmido. Não falemos mais do passado, pelo menos daquele que ainda vive hoje, que de passado só os toca as mais lindas palavras.

...em retiro pareço estar. Impelido de motivos, sinto a vagem de todas as manhãs.

...escondido em algum mato está o caçador. Em redor a água limpa tão boa isca que é, nem a arma que vigiada pelos céus amedronta. A morte certamente não apaga a sede. Ontem à tarde, voltava eu do serviço, fiz o trajeto com minhas pernas, ao chegar, o corpo quente suspirou na tranqüilidade do lar. Era eu, bebendo água, prazer. Não obtive da água nenhum sinal estranho, ali, dentro, minha renovação era líquida. Beber me faz crescer. A vida me é, um desvio relativo.

...não sonhei com ninguém. Não me lembro de nada. O que preciso é de descanso, não quando durmo, mas quando vivo, em vigília. Quero o corte de minhas pálpebras na realidade que vejo. Se não é possível confundir o que sonho como que vivo, se nesta dicotomia há um tráfego infeliz de decepções, não há um criminoso pior do que eu, durmo para guardar minha existência, para não constituir uma realidade que desagrada também a mim. É pérpetuo como uma cadeia, ao abrir os olhos me é dado aceitar tudo. É como é, eu, meu querido amigo, não compreendo os méritos de minha ações. Continuo a agir, assim, como quem sabe conjulgar verbos. Os olhos que se seguem nas páginas, nas misérias alheias, os olhos que acompanham o teto por todo o quarto, na rua vejo longos saltos, carros, pessoas, vozes, barulho, meus olhos não se acostumam, o que vejo tem tem o impacto da primeira primavera. Neste tombo, ao acordar, não há maneira alguma de trabalhar, nem de se acostumar, bem verdade é poder dormir numa cama limpa, num lençol de algodão, na companhia de alguém, assim sendo, sonho sem nenhum corte possível. Hoje quando voltava para casa, passei pela cidade, fui ao cinema, fui a um bar, comi algo bem lamentável, o dinheiro que me sobrou e o que me resta do amanhã.

...faz um ano e meio que não a vejo. Não recebo carta, não recebo notícias. Não tenho saudade, não tenho por onde procurá-la. A memória é minha pena, escreve em mim o que senti, o que ainda sinto. Volto a dizer a você, ao terminar minha missiva, segredo não haverá na minha vida para você, meu ouvinte, meu amigo, minha distância que falta. A cidade que mora no meus pés é bem diferente da qual morava em nossos pés. Hoje os pés não sabem pisá-la, hoje as mãos não a acariciam, hoje estamos um dia após a juventude. Mudam-se as épocas, muda o paladar. O que arde em minha garganta, arde no campo como na cidade. De um lado, como do outro lado, o rio.

...muitos anos atrás, antes de conhecê-lo, em minha cidade natal, tinha eu nove anos; brincava de bolinha de gude, cinco marias, queimada, (uma estranheza feminina me perseguia). Apaixonei-me no tempo mal corrido. Pelo corredor mal me percebi jovem. O que tenho deste período? Uma lembrança afetiva dos meus país, uma estranheza sexual que carrego, um medo enorme do feminino, medo maior ainda tenho da mulher. Não sei, a escola me apresentou a sociedade futura que teria eu de enfrentar. Alguns meninos foram amigos, alguns, não muitos; todos marcaram uma época, um estado de menino, mas nenhum permanece no que sinto ser. Não pensava na morte, não tinha medo. Me sentir criança é minha lembrança mais forte do adulto que sou. A ponte que faço não é de concreto, não é firme, nem absoluta. A cada tendão ligado pretendo cirurgicamente saber do que me espera. O quê? Os traços loucos do corpo. Os desejos mais querendo, sem descanso. São, consciência sã, não pretende morar na lucidez. Não pretendo morar nos corações de ninguém. Entre a razão e a emoção, minha ansiedade cresce. Por que? Quero este termo meu, querido, amigo, quero este estado, inspiração? Após o transbordamento - A minha criança é quente. Meu adulto é seguro. Quanto junto estas reses, não as vejo se multiplicarem. Revibra minha ponte falha. Peno ao cair, ao descer alturas longas, o vento que bate na cara acorda-me. Sou jogado a acordar, a cair. Não há uma realidade. Vigília ou sono, sonho estar em qualquer uma das palavras.

...a porta em grau se abre. Não range, não ouso passos. Talvez seja noite, quem sabe plena luz do dia. Estou sentado no meu bureau amarelo, ela vem, sonolenta, parecia que tinha acabado de acordar. Não a vejo até então, suponho. Sobe em minha mesa, olhava eu para uma página escrita, ainda que não tinha visto. Ela não respira, não enxerga, não tem corpo, nem fala, não faz som, mas eu acabo de enxergá-la. Recomeça uma puta. Digo que não, não posso. Ela me pergunta o por quê? Digo o tempo não é o mesmo. O que, que mudou? Não sei. É pelo que fiz que você não deseja mais minha companhia? Não é, nem pelo o que tu fez, nem pelo o que tu se deixou fazer. Não me importa tu e teus atos, não a quero mais ao meu lado. Me roubas a tranqüilidade. Não evoluiste! Sim, sim, mas custou muito caro, quem sabe até demais. Não desdenhe o prazer que comeu. Não é isso, teu menu já me enoja. Deixe o nojo de lado e me ame. Não a amo, nem posso amá-la. Não posso amar gente, tu então, impossível. Seja impossível meu caro! Não posso morar em corpo. Principalmente sabendo que eu, a qualquer momento poderei morrer. Isto para você, querido amigo, - não vale, não vale não. Muito menos para ti, errante. Não tenho, contudo, de ti dar explicações. Teu interesse por mim agora me assombra. Eu fico realmente satisfeito por você me procurar, mas agora suma. Não é tão simples assim, meu caro, me vês, só os que me pertencem me veêm - querendo ou não você é rojão no ar. Meu prezado amigo - como companhia - terminou, foi-se embora. Abri a janela esperando encontrá-la partindo.

...me dei conta com a mania de chegar atrasado ao trabalho. Chegar atrasado ao cinema chegar atrasado em casa chegar atrasado ao hospital. Estar em desvantagem com o relógio não é o pior. Hoje à tarde queria ler alguma coisa; na estante fui procurar. Desconforto nas mãos, colocava este para aquele, livros; aos poucos, o benefício da escolha se tornou ansiedade. Já não retinha tal livro o tanto de tempo que havia retido o quarto, o quinto, o sexto. A tarde escorregava para o sem constrangimento. Eu ainda não havia escolhido, olhei, o relógio marcava cinco e dez. Restavam meia luz, não havia começado a ler, já me incomodava a chance de anoitecer. Pus a mão..., , aquela, queria, a vontade de estar lendo na cama, deitado, a luz do dia clareando as páginas; o céu rubro, não haveria mais tempo para terminar a página esplendorosa, soerguer o livro a fora do peito, me levantar e pela janela olhar a rua, talvez crianças brincassem, fazer do livro companhia minha, paraquele momento aberto ao noturno. Escolhi o livro errado, no tempo errado, cheguei atrasado mais uma vez, escapou pelos dedos, cravei a mão na cama, a outra atravessada, com um livro que não possuía a mim e eu, por minha vez, não tive o sonho de ter mais uma vez a chegada de um noite agradável.

...foi dito, ele, ela, ela, nós dois, meu caro amigo, semelhante ao fingimento, mas não durmo mais se não me masturbar, pedir ao corpo a calma não basta, beber não tem bastado, mulheres, esta voz me alcança, femininamente, o amor é para os porcos, para os que tem juízos, para os covardes que se alimentam da falta, a falta é a falta, não me falta sofrer, não me falta corpo, apenas pago por um juízo mal concebido. O império dos sentidos vagos-mortos. Os assuntos que são presentes na memória do homem, talvez eu pense que, ao relembrar os fatos, sensações, esteja bem perto de me livrar do erro, de não ter culpa, de poder ser sonho, somente portador de uma responsabilidade animal. Deixando para atrás todas as areias brancas.

...não desta vez, nem será na próxima semana, se sinto saudade de vê-lo escrevo para você, nesta sexta-feira volto encharcado de álcool, na boate canelas e pernas, rostos, moças, muitas e muitas mulheres. Me sinto zonzo agora, faço uma força enorme para permanecer deitado com o caderno na mão, a caneta no dedo, a cama roda, mas, quem sabe, posso contar sem censura alguma coisa que já tive vontade de antes fazer sóbrio.

...que ressaca meu chapa! A caneta caiu, não me vi dormir. Chegando do trabalho, parece que cheguei de alguma estrela bem quente querendo explodir, mas é assim mesmo que se tem que viver, dias males são uma aproximação com as rugas, não me olho no espelho quando estou descontente. Faz dias que ela não me procura, não ouço falar, não vejo em parte alguma, nem sinal de sua vontade, parece que o quarto repousa tranquilo; à noite, depois que durmo, nada me acorda. Não a vejo em sonho, não a vejo no teto. Talvez ela esteja me testando, querendo me persuadir, em breve terei uma resposta segura para a você dar, meu amigo, nunca ela passou tanto tempo sem me visitar. Não sei o que pode estar acontecendo, a quem ela acorre, a quem ocorre a visita. Mais um cristão em braços religiosos, mais um poeta poderá ser sacrificado, mais um anjo será morto, em prol do nome, da república, do dicionário, em prol do verbo, da ação verbal, do glamour, fatias de queijo serão distribuídas, sinal da lua. É preciso esperar, ter um passaporte, transitar em lugares vagos; as lacunas que ela me deixa, as sombras que ela me faz. Resista ao fogo para poder se molhar. Digo isso toda manhã de inverno, cinzenta, verde, vai passar. No sertão, de bicho papão ainda tenho medo mas a chuva vem refrescar, a geada é que vem braba, a tendência de alguma coisa acontecer me intriga. Por isso espero, porque tendo ao dom do acontecido. Não quero me enganar, ela vai voltar. Uma noite dessas, num dia desses, naquela tarde morna, no crepúsculo, se algo eu puder fazer, farei na companhia dela. Sutil é o vírus que penetra na pele, invisível aos olhos humanos. A ótica é: sobreviver a qualquer custo. Espero perder como lagartixa apenas o rabo.

...acreditei ver, corpo em corpo, andando pela rua, a calçada estava repleta, não duvidei, apenas descobri que não era verdade. Estava no centro da cidade, o ônibus engarrafado no cruzamento, o mar negro, ainda bem que não fazia calor, passou em baixo da janela, estava a procura de algo que me distraísse, que me tirasse do desconforto. O corpo que vi não se diferenciou da imagem que tenho, em cada parte, o original; passou ela rápida pelo ônibus, na esquina em frente, quando virou, reconheci a diferença, melhor seria considerar um alívio, mas a desgraça me seduziu, não foi assim que imaginei o outro encontro, mas seria uma bela apresentação do acaso. Poluíção, fumaça, amor. Eu fui para o serviço, trabalhar para o sustento de uma quitinete, de algumas cervejas, cinema ali e acolá, de vez em quando um passeio pela barra. Novidade mesmo é quando o sol nasce, igualzinho ao dia anterior, aquela mesma bola quente jogando futebol na terra, .

...o que até então penso é morrer de alguma doença normal.

...o mesmo silêncio por sobre a mesa. A rua que agora repousa com alguns gritos agudos no fundo. Não havia engano, de certo previa; mentindo ou não, para mim mesmo, ela não virá mais me procurar, quem sabe do antigo tumulto que é o futuro. O que esclarece é o que vi, como das outras vezes, como em outros tempos. Mansamente dizendo, para que eu pudesse ouvir, ela entrou pela porta da frente. Meu prezado amigo, não é de admirar, todos os dias ao estar ao lado de minha caneta, registrando o território de origem, estou aqui, fazendo para mim, uma antiga vontade de antes. O frio que passa pelas mãos, me atinge a espinha, o dorso se dobra por cima da mesa, e a rua que me dirige ruídos estranhos. Se divertes, esperando, se divertes. Não me venha zombar. Por demais sei onde quer que eu chegue. Um olhar de tua pessoa, tua coisa que revira, revibra pelos meus músculos quase caídos. Não pára. Não dá. Você reluta em acatar. Acatar o que sempre te pertenceu. Não, não é assim, os lugares são novidades legítimas? Todos os que conheci? Oferendas para um aleijado, é isso que me ofereces? Não te disperta que os homens contém gotas de orgulhos, ácidas e perecíveis é o que acha que elas são? Não diga o que eu sei. Sabe imitar o riso, porém não o possui pela alegria. Alegres montagens. Copião fabuloso de histórias. É preciso sensibilizar a todos. Minha honra é essa, não só minha, como vós, homens, a querem, negam mas a querem, precisam mas mal trabalham. O equívoco tento corrigir, com vistas diárias, semanais. A senhora está certa em dizer, meu amigo, quem me fala fala de mim, umbigo, de nós, homens. Ela não faz parte deste mundo físico. Físico! Que engano contém tanta verdade. Um dia acabo por morrer. Quero uma defesa para minha morte. Juízas de certo não faltarão. Até então, esperança e companhia se despedem. Lavando roupas sujas em casa de estranho? Não me venha considerar-me uma estranha. Passado se tudo, facilidade de mercado. Como sempre, sumiu. O éter que desaparece. Converso com você, sozinho para ser o mais exato. A chegar nas suas mãos, existe tudo para você, o saber das peças, dos metais - a história do país.

...quis acreditar que consegui. No meio de uma platéia, um espetáculo formoso. Durou minutos a impressão. Não consigo conter a satisfação. Embora não fosse idéia minha, não era bobagem ver um mundo povoado. Alegres são os campos que me fazem sonhar. Tirei do cinema; agora está aqui neste sonho. Melhor seria suspender. O sono ser sim apenas uma espécie de lugar de descanso. Ao acordar de uma realidade morta, ser possível o viver. Sem que volte o desejo de amor, sem que volte o medo de morrer. Meu caro amigo, dou mais do que tudo, tudo pelos vivos, minha morte inicia-se através do apego. Que seja qualquer apego, virtude ou vício. O que me importa nos paradoxos são as linhas retas de um pensamento que se encurva livremente. O que me impressiona ao dormir é senão é, o estado de mudança. O encontro do encontrado. Pelos anjos, por mim mesmo, um anjo menor, um homem vivo de posse. São os sonhos, é a memória que se desfaz, o caos se afasta e se recolhe para dentro de mim; quando acordo no mundo novo, em contínuo, pareço não saber do que se trata.

...não havia deixado nada suspender meus atos, nem por relance, nem uma memória fizera parte de um gesto. Naquele dia, contido em minhas obras, meu apetite estava cru, só aceitava a sangrenta carne vermelha, nem tempero nem frigideira. Como máquina trabalhei, me esquivando do humano, me esquivando dos rubros rugidos da consciência. Não foi tão mal assim desfazer-me dos sacrifícios da razão, não foi tão lícito assim, foi preciso um punhado de mentiras. Me fiz de bobo por um dia feliz, melhor seria por um espetáculo feliz. Ninguém esteve ao meu lado para me aplaudir, ninguém a não ser você, amigo que pousou por muitas vezes suas mãos em meus ombros, é a você que dedico as horas e instantes mais laboriosos, com você compartilho os pedaços e os inteiros. Minha vida é uma fração imprópria, ela se despede do silêncio na mesma hora que alcança a imensidão. O vento que me eleva em visita, me traz muitas saudades, saudades de você, de minha terra natal. Do outro lado do rio permaneço. As vezes olho a margem que é possível olhar, à distância o amor se mostra maior, não há ondas para molhar, não há ninguém para nos desmentir. Neste regato solitário, o dono e a fantasia se misturam num único pote de leite. A gordura é o sonho, o queijo, a vaidade, a manteiga é a doença. Não há moradia mais dotada de perfeição do que a mulher. Meu caro amigo, parece que não fui feito para viver entre amigos, parece que fui feito sem alma. Leve e físico, ainda assim há um peso que desmede minha consciência, que parte minha ternura em tantos pedacinhos, a falta me obriga a procurar uma religião; Deus se despede de minha absoluta ausência, se aloja num lugar úmido, eu, respirando ao lado dele, tenho na fumaça do meu cigarro sua mais sincera reprovação. Não é do engano que estou falando, nem da morte, o amor que espere, falo do cortejo do corpo que exaure minhas vontades e nesta envergadura mais nua, onde só o lençol pode me cobrir, tremo em febre, meus delírios noticiam as sinas. As que carreguei até aqui são como chocolates, um pouco de espinha e nada mais. As que carrego de hoje em diante me prendem o intestino, ainda tenho nas minhas mãos um poderoso laxante. As que mal conheço poderão me derrubar. O que conto como arma cobre a mesa em que todos os dias faço minhas refeições. Frugais refeições; uma parte de minhas manhãs é agradável como ter o estômago vazio, sem fome. Não cochilo, diante do espelho sou um artista que não tem medo da platéia. O que enceno não é com meu corpo, nem com minha voz, o que represento é uma louça fria que brilha ao sol. Quase todas as manhãs, antes de ir para o trabalho, penso em desistir, passar fome, morar sob alguma ponte bem coberta de carros e concreto armado. Dormir no barulho aquece minhas orelhas que, como cadáveres, já não se assustam com mais nada. Nada mais queria, minhas refeições completas, ao olhar pela janela lembro-me de você, na distância dos lugares, nas passagens aéreas venho visitá-lo um dia após o outro. Não alcanço suas mãos, não bebo do seu pote de água, meu corpo emagrece, nunca é tarde para quem se acostuma a pensar. As pessoas viram as costas, os lábios, o rosto, a mão, a cabeça, mesmo assim não deixam de pensar em momentos mais felizes. Não há mais do que uma bela tarde, em frente há um céu, carnudo e azul, as nuvens que nesta manhã perturbavam os ventos já se foram, é melhor não querer limpa todas as atmosferas. Agora percebo minhas mãos úmidas borrando um papel tão branco, minhas digitais se imprimem nesta carta, meu amigo, um motivo agudo me leva a acreditar no passado. As lembranças que armazeno, as músicas que cantarolo por quase todos os dias, elas dizem do que sou feito, de como sinto a solidão, como me dilato ao sol. Meu exercício físico é um puro respirar. Os pulmões que se enchem de ar levam o resto do meu corpo a acreditar em manobras aéreas. Sentindo falta em frente. Frente e verso. As mãos que carreguem os pulmões à diante. Uma cidade que ficou sem luz, não há carros, apenas um áspero silêncio anoitecido. Se o mar ruge no fundo, salobra é a boca que beija, afaga os anos aflitos; são ânimos, são doses de um veraneio. Valha o espetáculo constante. Entre mãos e vias, um sentido permanece claro. Assim se deixa passar a película; a demente imagem. Sísifa vida. Não há motivo mais redondo do que a terra. Cheia de lagos, oceanos, plêiades, vasos sanitários. A natureza nos oferece o fazer. Benzetacil aos deuses e comida para os homens. Uma gota fria de suor desce por minha testa. Já branca e terna, enruga-se para alcançar os sais . Quando novo, meu pequeno gesto (a mão no corolário da cabeça, me observo frente ao espelho), amigo novo e ausente, amo você mais mais.

...não é a bagunça de minha mesa que me amedronta, a poeira é flanela de licença, os livros estão fechados, são sombras minúsculas dos homens. Os livros não são para os olhos como sonharam os poetas. Meu corpo prova da vida externa; move o universo fora de ordem. Minha única dosagem imagina ser subjetivas imagens. Longe do músculo distribuidor sucedeu a saga. A razão me parece um prêmio merecido, feito de grandes esforços. Se alguma certeza reside neste grão, há muito mais dunas do que supõem os biólogos. Lado a lado, um rosto colado ao outro é melhor não separar. Permanece mais legítima a indagação. Amigo o que farei do tempo. Pães crescem sem fermento, à custa de sol e paciência. À custa de que viver? Em mim não há necessidade bastante. Em quem me olha desejando não sabe dos quinhões que está entregando, facilmente me levam a crer no amor. Que amor é esse. Precisa de despertador para acordar, tem a lei para educá-lo. Que amor é esse que se vê comprometido comigo. Chega em mim, mas não nasceu em mim. Só o coletivo é amor? A individualidade espia na falta! Se é falta, que amor inteiro é esse que espero antes de dormir. Não deixando de lado, não quero esquecer, digo a você meu prezado, representante do mundo, eu tento crer no amor que não existe em mim, senão no outro. Nasce da barriga ou nasce o bebê. Obstetra é a fé, que na guia de seu chocalho existe veneno. Morrem todos os inimigos. Como então sobrevive o amor. Como os quatro elementos, o amor é inimigo de si próprio. Um silvo breve para todos os motoristas.

...não foi uma saudade espontânea, nem o medo da velhice, o que me leva escrever esta missiva não está no apuro de um só sentido, de um significado regulado e sacramentado. O que se desvela como perturbador, pelo menos para mim, não sei se acontece com outro qualquer, é a vontade de relatar, de incorrer com palavras as vagas e o tempo. Colocado na frente das minhas lembranças, num embaraço de linhas parece que à espera de um nó, um remendo feroz, eu estou esperando aleijado na cadeira de rodas o milagre. Estar ao lado de você, meu jovem amigo, não é verdade, poderia pegar um avião, um ônibus, talvez até de carona. O que é escrever uma carta se não é uma carta escrita por vontade e porque quer ser carta, legítima, punhada, endereçada, com selo, chegando em suas mãos pelas mãos de algum carteiro. Basta para me deixar feliz saber que certos papéis que eu eduquei chegarão em mãos. Provavelmente chegarão de mão em mão. Mão nossa, diária. Talvez não fique eu sabendo de alguma, ou de nenhuma resposta, talvez me responda, não goste de missiva, ache-a um longo membro. Esperar algo além de tê-la escrito não pretendo. É um apuro terrível, imaginar, supor, percorrer com a mente os passos de outro ser humano. Supor meus próprios passos já é uma longa superfície. Não nego a curiosidade de querer estar aí, com uma voz doce ler palavra por palavra por palavra do que escrevi, penso, detalho seus gestos, presumo que os músculos da face serão hábeis, expressivos, mas nada disso é garantia, é garantido que estou escrevendo uma carta para você, entre aspas, - que isso é real, que a amizade é, que a vida é, o que me leva a escrever a você é uma simples paixão, a ordem física do meu corpo comporta-se como uma criança excitada, eu escrevo mediante uma excitação. Que sentido minha ignorância caminha. Que bem fazer é este que preciso. Existe! Na volta do trabalho, bemais tarde na solidão mais descrita, aquela que faz mover uma única folha de um jardim de uma planta em um galho no terceiro tronco da direita e da lateral, uma minúscula folha eu vi balançar.

...eu vi balançar. Ontem eu vi balançar um momento. Minha retina permanece perfeita. Após esses longos anos, continuo enxergando os topos os prédios, a rua e os carros. A chuva é conseqüências do meus atos que me deixam choroso e por isso trivialidades visíveis parecem encantadoras. Eu vi balançar meu avô na cadeira. Um ranger de morte e madeira é o resguardo de minha memória. Loucura dos edifícios baixos, estes despertam o antigo em mim, e como tal, uma história vitoriosa (porque ainda existe?), sinto instalar-se eternamente na vida. Sabe-se quem, de quem eu presto alma para os diálogos. Amanhã, na medida do hoje, conto os rebentos calvos da cabeça.

...talvez foste a serventia que sempre precisei. Ouvido largo, distante para guardar o mundo. Ela havia deixado uma pista, uma data, como sempre descubro a pista na hora em que o crime acontece. Aconteceu algum crime? Não. Aconteceu alguma coisa? Não. Tenho alguma coisa para contar? Não. É a vontade de escrever. Como um bruxo, estar possuído, doente. A janela se abriu o vento veio forte, esguio e avesso ao costume, baixo da altura da cama. Estava lendo alguma página que me desse aquele sono, aquele que lê as páginas da gente. Não a vi ocultar tua presença, por isso mesmo não esperei, ela veio. A meu lado sentou, não como das outras vezes, nada falou, a olhar pelos minutos ela olhava para mim, com olhos talvez de fome, com olhos de amor. Existe? Agudo o inseto feroa. Ela deixou tuas asas na sacada, ela deixou a vaidade passar frio. Não a olho, não deixo claro o momento de regressar à leitura, não deixo clara a vontade de vê-la. Domino o lençol encostado a meu peito, o travesseiro que roça em minha nuca me faz de mim homem. Tudo fica assim, sem nenhum cheiro chegando. O dela, quase cristalizado no vento, vagueia. Qual é meu enruste, em tecidos moles ou duros. O cobertor no armário, fechados os olhos, o sono advém, se for do lado, se for vindo do mundo dela, não precisarei nem de comprimido. Mas se tudo for um blefe, recorro à cozinha, à leitura, ao meu sexo, remédios, por último, fico sem dormir. Sobram ainda etapas a cumprir. O instante é longo, a medida que se segue acende a vela num corredor escuro. Como eu tenho saudade de ti, como tenho saudade de ti Antônio. Não é a bebida que me deixa alegre, nem são os lados deste quarto que me calçam vivo. É sensação velha, é sensação de medo, quando ela me visita espero viver até amanhã. Meu seguro de vida vive amanhã. Não há um cumprimento da verdade, nem há como comprimir os desejos em seringa descartável. Queria dormir para poder contar como vivo meu querido amigo, queria dormir para poder contar a ela como sou gente de crédito. Ela deixou a janela olhando para mim. Fico eu aqui, contemplando janelas numa espera contínua.

...já faz um mês que passo quase todas as noites, todas as horas vagas a escrever para você. Meu caderno, minha caneta - as virilhas alérgicas. É a bagunça do silêncio, os olhos caídos em páginas brancas que dão para mim gratidão. Hoje fazem dois anos de uma noite inesquecível. É notável como a memória é liquida. Escorrem em frente da gente imagens que pertencem a um outro homem. Se falando de homem, penso estar dando passo rumo a decrepitude. A memória avisa dos desvios deixado; das lágrimas assaltadas. O passado está numa cronologia crônica. Parece falso mover fundos para o futuro. Sabe-se do futuro; uma imaginação se aproxima de nossas mentes, caracterizam-se os versos, colorem-se os sonhos, mas nada modifica o futuro constante que temos na mão. Não me responsabilizo se eu morrer amanhã de algum tiro fatal ou de de um atropelamento suicídico. Morrer é doar a responsabilidade. Mistério ou Deus, o nada é o divino inabitado. Não quero olhar para nenhuma criança brincando no zanga-burrinho, porque senão, a piedade e a habitação do amor me dirão que possível é ser feliz, porém a realidade é outra, conjuntiva e justaposta. As frustrações são maneiras capitalistas de ver o homem e o mundo, estranhando ambos as potências que, opondo-se, me fazem, senão um bicho encurralado, pelo menos um mínimo, uma bengala tenho nas mãos para atravessar a rua. É assim que vejo o derredor manchado e doloso. Não é parte estranha da razão, mas meu coração funciona na mente, lá dentro desta caixa porosa, vazante e livre, empunhando o riso suporto meus vários cânceres. Pelo corpo e pelo gesto fraco, me dedico todos os dias as violações, a interpenetração, aurora e noite. Brinco no parque fantasma, na fonte do rejuvenescimento, nos territórios lúdicos gesto meu bebê. Que bebê é este? Braços com ossos do ofício, pernas e joelhos longos, a tocar a bola do prazer, respira alto como uma árvore amazônica, do lado de fora só eu, que vejo sonhando com dias melhores, esses dias o acompanham, para assemelhar a um professor dou aulas, assim asseguro a mim o direito fecundo de ser criança e adulto. Gente que vive, gente que cria. Tenho em mim um pequeno deus. Sem culto, minha vontade se liberta na atmosfera mais íntima. O bebê que descrevo é mais alto e mais gordo que uma cadeia, é rarefeito, mas não pensa no ódio e não tendo amor para dar, ele é apenas parte de minha memória. Sou um tutor que diz ao certo o valor de errar. O certo já me diz. Isto também faz parte do meu domínio. Penso na fúria e o certo já me diz; isso faz parte de nossa relação. Penso na verdade e ela já me diz; não pense mais em mim. Sou um homem sozinho que vela na noite. Ao adormecer, ao sonhar, aos motivos, uma mudança irônica se processa. Não há valor que se abandona ao dormir, coincide tudo, repulsão expulsão, excremento alimento. Ao acordar de uma longa digestão, ainda penso nas mesmas coisas. Como tudo é assim possível vou ao trabalho.

...estou chegando ao fim da chamada, da guilhotina. A testa entesta ceras nas aberturas mais finas. As aberturas de que falo não são metafísicas, são as frestas que deixo no cotidiano, se parecem com o que fazer agora, semelhantes aos domingos, semelhante ao desnecessário. Esses espaços livres, no corredor de um lugar, na fila de algum caixa, esses despropósitos necessários na vida urbana, essa adequação que o cidadão se esforça em aceitar, ao ponto de colocá-las em forma de palavra. Realidade de tijolo com cimento, brutalmente construída também por mim, mesmo aqui de longe, neste quarto de hotel, ou mesmo na sala em que trabalho. Essas fissuras normalizadas, concedidas pelo tédio, são, são elas mesmas que empanaram a saúde de vírus. Não há asma pior que o sentido procurando lugar, não encontro nenhuma profilaxia, (é estar aberto), aberto aqui é adoecer na medida dos anos. Que são anos diante das gretas, que idade tenho, um surto de aproximação, é disso que vivo. Ao me aproximar do caderno, derrotado já nas estâncias de origem, como é que prossigo imaturamente a colher os frutos de meu amor que já não descansa em ventre algum, que já não tem mais baba, nem mais ombros, solidão de navios. A terra arredonda-se ao conhecimento, meu querido amigo, se poderei cessar esta carta perguntando-me por você, minha lápide está firme me esperando, gelada em condensação, é por isso que ela, a Prosa, na última vez em que me visitou, não falou nada, pois ela já sabia mesmo antes de mim, que agora, tomando coragem, revelo uma palavra antes que retorne o dom ingênuo da crença - viver - viver é crença que partirá no breve instante do meu revólver, aqui ele está nas mãos, como as folhas empilhadas em um único caderno, parto o bolo do casamento, o fogo e o contorno dos olhos, ou deixo a próxima palavra para quem me achar, para tu leres, Antônio, ou continuo a rastejar minha morte...

Toya Libânio
Enviado por Toya Libânio em 12/01/2019
Código do texto: T6548950
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