Panapaná*

No dia seguinte o cachorrinho esperava dormindo na porta do barraco a comida que o alimentava. Ele o fez com carinho. O dia iniciou-se alegre. O morro soltava pipas coloridas.

Do armário ela retirou a roupa que iria satisfazer o dia chuvoso.

As rosas na praça quase deserta.

Ela tamancava no chão gritos espessos. Ela encontrava no chão os vizinhos e seus pais jamais poderiam ouví-la chorar.

De castigo.

As estrelas foram feitas para brilharem mesmo depois de mortas. Os mortos são amados mesmo não necessitando. A necessidade humana de respirar. A angústia não sabe respirar. A dor está sempre presente. Não precisa de ar. As lágrimas são necessidades humanas. O choro é a necessidade de dor. A dor não necessita de projeto, apenas de hospedeiro. Apenas de estrelas, apenas de luz. A luz de um corpo. Um corpo forte pode muito mais que sentir dor, muito mais que sofrer, um corpo forte alumia. O amor obscurece se não pode sentir dor, se não pode sentir que um determinado corpo já não sofre, sem sentir dor não existiria o amor. Sem o amor ninguém reconheceria os animais mortos. O amor compareceu na história pela primeira vez quando um corpo morto não conseguia mais matar. Um corpo que não pode matar, um corpo incapaz de inflingir a dor já não tem interesse. A dor é o primeiro interesse. O segundo interesse é ainda a dor do outro. Reter a mesma junto de si, para depois num ato que é chamado amor ou altruísmo, colocá-la a disposição do outro, ordená-la ao outro, formá-la e assim poder ter a vaga sensação de que a felicidade existe. Toda tensão omite seu grau de felicidade. Exibe um grau de controle que refaz do poder aniquilador em poder criador. Amanhã a tarde continuaria. A noite continuaria. O riso ou o choro, a percussão que o íntimo elabora não pode esconder a presença constante de inúmeras loucuras. A habilidade de qualquer íntimo é explicitar-se, externar sua dor para o lado de fora, reconduzir a dor a um outro interior, tomar outro íntimo para assegurar o seu íntimo do não fenecimento. Recompor-se e violentar. Conduzir e inflingir. Dissuadir e persuadir. A magia do amor está em matar, em deter a felicidade em primeira instância e reencontrá-la quando já se esperaria encontrar somente a dor. O amor ao outro é a vaga sensação que a dor própria pode ser compartilhada por um íntimo, mesmo que estranho, à semelhança da crença em existir. A dor nasce pela manhã, pela tarde, nunca a noite, a noite conduz a dor aos acontecimentos do sol porco.

Quando descobriram que os animais estavam mortos, mais magros do que mortos, mais mortos do que tudo em volta, mais felizes do que ele mesmos, puderam chorar copiosamente. Chorar sem lágrimas alguma, chorar sem mesmo refletir, chorar para viver ao menos esta espécie de viver. A natureza vivia neles. Viver num tempo quase sem nenhuma umidade, ver as nuvens se dispersarem sem nenhuma contenda, ver a terra numa batalha estérea, ver a plantação e não vê-la, as lágrimas eram objetivas como a cachaça, como a magreza dos animais que já a esta altura não pareciam mais animais, muito pelo contrário, doíam-lhes vê-los assim, os animais eram vegetais com ainda corações.

Os acordes conduziam a música a fazer companhia. O bar ia fechando, as mesas armazenadas em local apropriado, os poucos fregueses que ali permaneciam eram quase todos homens, bêbados, tristes, carentes. Das poucas mulheres que estavam ali, algumas eram feias, fracas, dissimuladas e nem tudo isso diminuía a vontade áspera de felicidade. Só quem trabalhava sabia da hora. Os que bebiam muito nem por um minuto deixavam de narrar suas queixas. Os que bebiam ali, por misericórdia ou por amizade tinham uma visão espacial distanciada. Os que reunidos em amor ocupavam os corpos reciprocamente ou diziam palavras com muitos olhos. Algumas pessoas estavam conversando, as palavras e o mundo amanheciam com certa fadiga, mas também com uma imensa ternura, embora tardia, talvez assim fosse quase imprópria.

Tentavam se jogar do alto da janela, já havia uns quinze minutos. Não conseguiam, embora soubessem que se jogassem morrer seria quase invariavelmente acertado, naquela altura, aonde todos cairíam não continha nenhuma, ou quase nenhuma esperança. A janela era de dimensões avantajadas, todos estavam de pé, todos queriam ir juntos de mãos dadas, no tempo mesmo cronológico queriam cair. O nono andar ficava muito acima do chão, a vista dali era bela se pudessem enxergar o que ela oferecia. As chamas os impediam de quaisquer solução. Não havia marquise, nem janelas ao lado, os bombeiros porcausa da distância do local, ainda não haviam chegado. A população narcótica por tragédia estava ali no chão a fazer rezas e felicidades. O fogo empurrou sem querer o primeiro que se foi, deixado pelas mãos que quiseram ainda encontrar no ficar uma razão. O segundo foi expulso em chamas, o terceiro com a cabeça em chamas caiu gritando quase que implorando morrer, o quarto soltou-se agressivamente e saltou com uma coragem que não media o medo, os outros quatro conseguiram se reter juntos e juntos morreram no chão.

Ela se jogou da ponte e sobreviveu.

Ele esteve em coma e pode viver.

O cachorro foi apenas morto por um carro.

O cavalo foi incenerado pela prefeitura após ser morto na autoestrada.

Elas foram enterradas depois de matar outros como elas em outro carro.

A picada de abelha matou a doce criança.

A mãe morreu mas o bebê sobreviveu.

Ele morreu no rio pescando.

A árvore morreu cerrada.

A tarde feneceu e ofertou.

O escorpião estava no céu, o barco no mar, a caravana andava pelas areias sem lua, os elefantes pela lama, os pássaros no vário dos ninhos. Águas calmas e para o sul o vento se dirigia.

Ela se despiu antes de entrar no banheiro.

Berrou, e a mãe pode então voltar.

Depois de costurar aquele longo corte no braço esquerdo, ela pode visitar determinados pacientes.

Ele apertou o pedal e a roda gigante parou com os dois lá em cima e de lá de cima ela disse a ele da gravidez. Ficou enjoado imediatamente; ficou tonto e a roda gigante que estava parada começou a rodar de um jeito um tanto estranho. Ela tentava acalmá-lo em vão. A música festiva sobreelevava o temor que minutos antes era algo bastante prazeroso. A cabeça lhe caía do tronco, a vertigem se tornou ainda mais forte quando verdadeiramente a roda voltou a girar agora pelo lado oposto, suas costas feridas por aquela brisa estavam encurvadas para frente, sentia como quisesse vomitar, sentiu vontade de mijar, de chorar, de gritar, a cada volta as coisas simplesmente pioravam. A acuidade dela não dispersava nenhum dos males, ficou surpreendida com aquela reação, e ele ainda mais surpreendido começou a tossir. A roda gigante já estacionava para eles mesmos descerem quando já com os pés em chão não tão firme o próprio desceu todo seu corpo ao chão. Acudiram-no imediatamente, na barraca de algodão doce rosa foi devolvido a vigília ainda tão envergonhado de si mesmo que esperou momentos inteiros para que assim pudesse abrir seus minúsculos olhos em lágrimas. O folêgo se recusava a ritmar-se, suas pernas tremiam, suas voz, a primeira voz que saiu foi tão embargada que a garganta necessitou de um arranco forte, indiscreto. Olhou-a e percebeu os lagos. Envergonhou-se ainda mais de si mesmo. Envergonhou-se e uma imensa vontade de partir apareceu na imagem de um cruzeiro rumo a África. Havia no dia anterior assistido a um filme policial que era ambietado num tremendo barco de cruzeiro. Vou ficar bem, disse ele tentando confortá-la, tentando readquirir o controle de si mesmo. Uma água com ácucar foi-lhe oferecida, ela não tinha coragem de dizer nada, se mantinha num silêncio tão frágil que sua estatura que não era muita, fazia-lhe o favor de ainda mais diminuir. Seus ombros recurvos para melhor vê-lo, os medos vividos no interior dos seus últimos dia agora pousaram como corvos em seus ombros como numa grande árvore. Os olhos dela já tinha o aspecto cristalino e enternecido aceitaram ainda uma dose ainda maior de transparência. Assim ele pode ver nela a doce decepção. O desamparo que ela estava imbuída não escondia a decrescência do amor.

A água formava uma horizontal indevidamente perfeita. No grande lago onde o vento resistia muitas vezes a tocar a superfície, esta afirmação atingia a máxima experiência. Os diversos beijos dos peixes, os círculos do centro para fora cresciam. A cor azul ameaçava a escurecer em conformidade com a tarde. As nuvens tardiamente avolumavam no horizonte. Os aspectos monótonos da água eram substituídos pela aparência estética, pontilhada agora pelos primeiros pingos que começavam a cair.

As primeiras horas do dia não desapareceriam enquanto eles estivessem vivos.

Uma linda queimada surrupiava a serra.

A carteira caiu no chão antes dele matá-lo.

Poucas palavras.

Um quarto de hora em silêncio.

Ela passeava como quadrúpede pela casa limpa e tranquila.

As coisas apresentavam as formas costumeiras. O abajur, o grampeador, a televisão, o rádio, os óculos, as cadeiras, a mesa, a cama, as cortinas, as janelas, o tapete, os chuveiros, a geladeira, o fogão, o liquidificador, as lâmpadas, a estante, os armários, o sofá, as panelas, os bifes, as frutas, os livros paralisados, os colchões ortopédicos, a máquina de costura, a máquina de escrever, as raquetes, os chinelos, as roupas, o roupão, os sapatos, as gaiolas, as escovas, as bolas, as paredes, o cabideiro, os quadros, os espelhos, as portas, os animais, os relógios, as pastas, os cobertores, a máquina de lavar, as gargantas, os lustres, as carteiras, o bolo, os perfumes, a banheira, a garagem, os vasos, o leite, os cabelos, as brigas, as toalhas, o trabalho, o rosto, os lencóis, os vasos sanitários, os dicionários, as aberturas, as receitas, as dívidas, o silêncio, o quintal, as dúvidas, as visículas, os rouxinóis, a tristeza, as vozes, as paixões, as crianças, o telefone, os olhos, as causas, o tempo, as medidas, as tigelas, as saídas, irmãs, as participações, idéias futuras, o pano-de-chão, o prazer, o mercado, os medos, o fogo, as músicas, a paciência, a saúde, os preços, os amigos, a maioria das estranhezas, as primeiras lembranças, as mortes marcantes, os dente caídos, as ambições imbecis, as unhas pintadas, os maus hábitos, as escolas, as ficções, os canditados, as cores fatais, o prefeito, o termo inapropriado, os génios, os tacos, as superfícies, as pernas, pena, as folhas, a magia, as mágicas, os jogos, o respeito, as mudanças paralisadas, os perdões alternados, a barba mal feita, os aspectos ocultos, a miopia, o governo, país, o samba, a entrada franca, o pelotão, as prisões, os momentos ternos, felicidade e dor alternavam-se graciosamente pela noite silenciosa e sorrateira. Não chegava, não chegavam.

Encontraram a tarde. Ainda não houve necessidade de almejar as luzes. A escuridão carecendo de concisão não despertava estorvo. O amarelo mágico conduzia na sala notas silênciosas e providências necessárias. Abria-se o show antes do porvir da noite, antes dos gritos das estrelas. A lua transeunte estréia. Testemunha. Alegrias e tristezas. Obrigações.

Ela conseguiu a janela enquanto elas estavam no banho. Constelações medianas no céu, o azul retorcido esbranquiçava no horizonte. A terra se sentia redonda não importando quantas montanhas existentes. A vida aparecia eterna não importando a esperança de morrer. O tempo fugia, fugia, fingia haver. O instante sacrificava-se incessantemente. Muitas medidas falsas, a experiência acontecia.

Encaminharam com roupas limpas até a janela, a mesa foi posta pelas meninas enquanto que a mãe delas na cozinha redigia o já-ti-vi.

O bife esfregava-se ardilosamente por toda a panela. Ele chegou a tempo de colocar as crianças e a cebola assada na mesa.

As portas foram abertas sem abrigar nenhum esconderijo, sem ser portas de casas, ou de apartamentos, não eram portas do estádio, ou portas automáticas de banco, nem de ônibus, não eram portas abstratas, nem portas significativas, não eram portas simbólicas ou de ferro, não eram portas prisões, não eram portas para o perigo ou para a liberdade, não eram portas religiosas ou portas da morte, não poderiam ser portas legais, artificiais, reais ou fantasiosas, não eram portas existentes e nem inexistentes, não eram portas individuais nem portas coletivas, não eram as portas do silêncio, nem da agonia, não eram portas barulhentas, nem eram portas vagarosas, não eram coloridas, transparentes também não eram, não eram portas cosmicas ou também subterrâneas, não eram portas marítimas, nem portas atmosféricas, não eram portas gasosas, líquidas ou gasosas, muito menos sólidas, não eram portas transubstanciais, nem sensíveis, não eram portas infantis, não pertenciam a este mundo nem a um outro, não eram portas odiosas, calorosas, maldosas, ou amorosas, não eram portas mágicas, não eram portas desérticas, não eram portas filosóficas ou linguísticas, não eram portas científicas ou mesmo intelectivas, não eram portas sensitivas ou musicais, não eram portas rupestres ou biológicas, não eram portas históricas ou naturais, não eram portas psíquicas, ou mesmo portas tecnológicas, não eram portas elétricas, nem portas de outras dimensões, não eram portas divisoras, não eram portas que se subtraíam, não eram portas faladas, não eram portas desenhadas, não eram portas somadas, nem portas arquiteturais, não eram portas frágeis, não eram portas multiplicativas, não eram portas de nascença, nem portas sepulcrais, não eram portas de grama, não eram portas perdidas, não eram portas bucólicas, as portas não bebiam, nem fumavam, não eram portas pensativas, nem portas animalescas, não eram portas viróticas, nem portas cervicais, não eram portas mundanas, não eram portas sociais, não eram portas inteligentes, nem onipotentes, não eram portas onanistas, nem altruístas, muito menos egoístas, não eram portas visuais, ou medicinais, não eram portas grandes ou pequenas, não eram portas covardes, não eram portas baleadas, nem portas orientadas, não eram portas antigas, não eram portas aquáticas, não eram portas andarilhas, nem portas duvidosas, não eram portas duais, não eram portas personificadas, não eram portas carnais, nem portas humanas, não eram portas de outro mundo, não eram portas saudáveis, não poderiam ser portas doentes, não eram portas fechadas, não eram portas cabíveis, não eram portas cerebrais, nem portas palatáveis, não eram portas perfumadas, nem portas confusas, não eram portas amigáveis, não eram inimigas de ninguém, não eram aliadas de ninguém, não eram portas constantes, não eram outra coisa que não fossem portas, não eram valorosas e nem medíocres, não eram portas duras, não eram portas paternas, nem quiça maternas, não eram portas de pernas, nem portas retratos, não eram portas aviões, não eram portas guerras, nem poderiam ser portas pares ou ímpares, nem portas paz, nem solúveis, não eram portas escritas, não eram portas nuas, nem portas mesas, não eram portas lápis, nem poderiam ser portas causas, não eram portas importadas que se importasse com algo, aquilo que seja, aquilo que não é, portas mutantes, portas práticas, portas vassouras, não eram portas histórias, não eram portas felizes muito menos portas sonolentas, não poderiam ser portas doloridas, não eram portas paredes, nem portas rios, portas risos também não eram, não poderiam ser portas lugares, nem portas paixões, não eram portas momentos, nem portas cansativas, portas adjetivas não eram, não eram portas números, não podiam ser portas totais, nem portas zelosas, não eram portas angulativas, nem eram portas correntes, portas míticas não eram, nem portas poéticas, não eram portas amargas, portas aquecidas não eram, não eram portas frígidas, não eram portas imbecis, não podiam ser portas cavalar, nem portas tigrezas, não eram portas futuras ou portas passadas, não podiam ser portas gordas, nem talvez portas temporais, não eram portas hoje, nem portas instantâneas, portas areias não eram, nem portas dores, não eram portas padres, não eram portas penas. Portas jóias não eram, não seriam portas quadros, nem portas jogos, também não eram portas femininas, nem portas súbitas, nem portas cinzas, também não poderiam ser portas niqueis, nem portas luvas, nem portas risos, não eram portas alegrias, não poderiam ser portas chuvas, não eram portas pálidas. As portas abertas.

A balança subiu, subiu.

Atendia o telefone, alcançava a voz falada, escutava, deixava-se amar moderamente.

As fronteiras delimitavam o país. A cerca de arame farpado conduzia a força do raio. As pequenas células recebiam as descargas elétricas.

O rio.

As árvores.

A chuva.

O sol.

As minhocas.

Amanhecer.

Limonada.

Dormindo.

Anoitecia aos sábados.

A primeira alegria que apareceu; estava tão dormente as mãos.

Dóia, embora delicadamente não dava a atenção a cabeça.

Ganhou o respeito em campo depois que fez aquele gol.

O futuro não havia chegado.

O mar ocultava.

As margens.

As gotas caindo.

Ultimamente o que estava saudável sentia uma grande saudade.

O gelo sentia frio no congelador.

Um constante espetáculo. As cores. As águas. Frias.

As pálpebras estavam caídas. As pálpebras estavam mortas. O animal estava morto.

Ajeitaram no chão da barraca.

Acordaram no chão da barraca.

A cachoeira estava por toda noite locomovendo-se.

As vezes conseguia subir na balança.

Estava deitado tentando dormir inutilmente. Tentava pensar inutilmente. Trabalhar inutilmente. Seguir pela estrada.

Recebia a atenção imerecida.

Contava a história de forma incompleta.

Fazia as contas incessantemente.

Atirou.

Assim.

A viagem acabou.

A floresta andou. O sol impedido de entrar; enciumado.

As oito raias seguiam paralelamente sem se tocarem no chão e na água. Contornando sem se tocarem. Voltando sem se tocarem, Contornando o maleável líquido sozinho, intentando tocar o próprio corpo desmedido, vago e ósseo. As raias gritavam e contorciam para o lado do vento. As raias animadas, iluminadas, cansadas, salpicadas, cortadas por braços; grandes ou pequenas pernas. As raias aflitas no futuro. Nada. O presente era nada. Tantas pernas em paralelas. As mágoas iniciais da carne. As dúvidas enfim chamavam as raias da carne. Creme, branca, negra, azul.

As chamas d’água bailavam nos braços da piscina.

Os pulmões de vento não cessavam de correr e nem de contorcer.

O fim de cada raia são pernas e braços, água e vento.

As contas aumentavam sem que ela esquecesse de manter a calma. Saltava pela janela, os seios com medo de seguir em frente.

Desceu as escadas, ensaiou as melhores palavras, as palavras que sabia que não diria nem a ele, nem a ninguém.

Quando olhava-o daquele jeito, enquanto que, ele recordava dentro de si mesmo aquele olhar, que embora fosse apenas um a mais, um daqueles que pertencem ao banco infinito de olhares que cada pessoa inimaginavelmente tem, ele sabia que aquele olhar não era de brincadeira, trazia sim a textura imensa, colorida, afável da cor ingênua e pastel do genital.

Depois que a enterrou, depois que rezou com palavras bêbadas na frente da terra que a cobriu, depois de ver o sol porco queimar as razões verdes, depois que o meio-dia se foi com letargia, depois foi procurar inutilmente pelos filhos, inutilmente pela cachaça, pela felicidade, pela esperança, depois foi procurar pelos orifícios respirantes, depois que as nuvens se afastaram e deixaram o céu em luminosidade o bastante para maltratar mesmo as abelhas, os marimbondos, as borboletas livres e perecíveis, os calangos nas pedras paralisantes, o verde fraco seguia ainda com esperança o curso seco do córrego, depois que a cobra se foi, enquanto a tarde caía encardida, enquanto o vento se ausentava e a morte única presença que conseguia ali e em qualquer lugar trocar de roupa e pela noite as luzes silenciosas manifestavam um tipo de piedade que dói e entra pela madrugada clara, enquanto junho resecava os lábios, enquanto a noite trazia a poesia de cordel, enquanto todos preparavam para a festa de São João, enquanto a lua estivesse no céu cor-de-rosa, enquanto corpo a noite virava, tornava a ser uma manhã, enquanto o sol aparecia e ele chorando e desidratando, enquanto as agulhas estivessem no braço pobre e pardo daquele menino que via no casebre uma sombra que lhe dedicava o carinho de dias tão sozinhos, enquanto lava a roupa velha deles, enquanto contava o fim triste e certo do compadre, enquanto o padre andava pela rua abóbora e sem prefeito, enquanto as luzes estavam apagadas e o sol fadigante dissolvia memórias, enquanto as pedras se assentavam opacamente, enquanto o mundo corria ladeira e planície, enquanto as montanhas fossem vistas com falsidade ou na esperança de alguma verdade, tudo era surdo, tudo era doído, o homem era pobre, a velhice adiantava-se sem viver os domingos, sem poder deitar nas segundas, sem poder trabalhar, sem poder ir a escola, sem conhecer o que tinha acontecido, sem saber dos seus filhos mortos, sem saber qual é a terra que podia tê-los aquecido, sem poder rezar, sem a voz dela, sem a pesca, sem a cachaça, sem a enxada rir, sem a vida acenar, sem se atrever a nada, sem a sombra, e talvez sem saber da dor. Sem o amor, sem a verdade plantada, sem cio, sem as noites e com muitos dias, com julho, em agosto, por todo setembro, sem primavera, sem as chuvas, sem as nuvens, agora a brisa vendia barato e a noite sua felicidade gelatinosa, grisalha e muito afável. Com as luzes a noite, com as ruas desertas, com os bares fechados, sem trabalho, com as costas cortadas, com a rede velha chorava ainda as últimas memórias que ainda lhe faziam saber que o mundo girava em contra-mão. A terra redonda não podia girar, correr assim, sem dizer e nem aparecer, nesta terra de planície seca, nesta ausência de curva, neste horizonte seco as idéias como as pedras eram opacas.

A criança aquecida no colo sugava a seiva. Ele que a olhava não podia ver onde começava o amor, o que sentia, o que via, o que dizia a si mesma, o que calava sua voz, o que diria ele, ela que o olhava, ela que amamentava, ela que se retirava para um sítio qualquer, ela cruzou o olhar, ela flertou com ele no colo, olhou os seios, os seios deles todos, os peitos delas todas, as bocas deles todos, ela estava com vírgulas no coração e eles e elas estavam assim sugando músicas biológica, o sol ardil e límpido pela janela recontava a história, as poucas sílabas sonoras, as mãos agarradas, e ele podia vê-las assim, naquele quarto claro e ameno a morte tomava as primeiras e as últimas providências. O mundo está núpcia, a violência paralisada, a ternura aí, as casas sempre vazias, as mesas sempre vazias, a tristeza em qualquer lugar, a liberdade em todas as pedras, a verdade em desamparo, as manhãs sempre passando, a lua no céu com nuvens ou não, as estrelas surdas gritam para as meninas de calcinha, os homens frágeis esperam as costelas, as partes emboladas, o gozo acabando, o forte morrendo, o câncer sempre começando, as paixões aqui e ali, o amor está sempre imiscuindo pelo ístmo, o mundo se movimenta brisa abaixo, as minhocas que não se veem respiram, as células livres reproduzem nos cérebros suas melhores imagens, os sinais do medo, as contas pelo chão, os livros duram em silêncio e a janela aberta, a vida ensaia, a atividade o homem e o viver.

Começaram a conversar na reticência. A imaginar os sentimentos próprios sem revelar e nem desvelar o outro da face, o outro dentro, víbora e perto. O lado se encontrava pelo avesso e a respiração saudável dizia pulmões para dentro. Os passos parados de lá fora, externava a voz fraca e melodiosa cheia de alterações, da madeira saía o som solo dos dentes rangentes em cima e em baixo havia muitas esperanças guacas pela garganta. Caía na decadência e a traquéia levava o falecimento, o acordo tratava sem olhos. Quando deixaram os corpos se tocarem, uma melância passada estava entre eles, as semente renasciam vermelhas, a diarréia entre eles, entre eles a intoxicação. Avisaram as camas do começo, os quartos com as paredes apreenderam e aprenderam a se deitar.

O teto se pintava, refletia as normas. O pasto corria lento sem assombração, sem o sol, com muitas poucas sombras, com sinais esquisitos, uma melâncolia alternada, encurtada nas mãos, as peles parricidas, as vezes endesejadas, esquecidas e amadas, as medidas magras, o disco cheio e perto de acabar. O som certo e silêncioso sem sofrer reticiênciava mais momentos menos singelos. O que era violento caía do auge, consumia e acatava insossamente. Os passos lá de fora começavam a andar dentro do quarto o caminho que nada encontrava, como sinos as paredes dobraram em cima deles, as barrigas machucavam-se, as medidas emaculadas, o sangue vermelho concatenava a pintura da pele, assim e assados, geladeiras vazias, aspectos enxugados e monótonos, vogais sem sonoridades, sílabas azedas. Untavam as conversas com rejeitos e releituras velhas, construções curtas e isoladas não diziam o que nada teriam a dizer. Os lábios passados.

O passado até lá aberto. O passado até ali fechado. O passado pelo quarto. O quarto passado. A tez sofria escoriações das palavras escondidas. Oculta, a dor calava oculta. A carne servia refeição mal passada. Na cozinha falava diálogo.

As manhãs, as noites, as entardecidas friezas, as cinzas coloridas, a força extingüia. Iniciava-se então a conversa pobre. As facas, cegueira vaga, as palavras cortantes em repouso. Os rostos pálidos, as bocas não eram bocas, os gestos acabaram de dizer, eles não entendiam nada do que queriam dizer.

O edifício conheceu o apogeu. O céu cobertura em repouso suspenso. Na fatura de todo o belo as estrelas.

Se existisse neles toda a coragem possível, que fizesse neles, sempre que possível, fizesse que eles esquecessem do começo, que fizesse que eles retessem a simples sensação de sempre começar, poderiam então dizer que a vida nunca se acabou, que o amor nunca se acaba, então poderiam dizer que a morte é além de inexplicável, inexistente... poderiam então dizer que Deus nunca foi criado e jamais seria criado e jamais seria necessário criá-lo. A eternidade perderia a dimensão eterna na qual pode machucar, para então, após conquistar uma violência literária, poder aliviar. O presente seria então além de um conceito, uma divagação abstrata, sem importância, nem utilidade. Nasceria então a grande ciência, a ciência do efêmero seria a vida com a qual nunca desistiriam de aceitar. A dor que os impedem, que os fazem retraírem, a dor que se aloja nos bípedes que pretendem amar, não deixariam de se alegrarem, não externariam o choro em outro tempo. Fixariam com as multidões os olhos no chão colorido, nas nuvens, no sol, nas estrelas, no cosmos e as cegueiras enfim, numa dimensão desconhecida, enxergariam o que interiormente sentem.

Na companhia de uma mulher, não havia quase nenhuma alternativa.

Por favor, desculpa, perdoa, muito agradecido, não seja por isso, não a de quê, não teve a intenção, por favor acabou. Terminou as nuvens caindo no chão. Acabou correndo até a boca mais próxima. Se tratando na primeira estação plausível. Pela boca humana. Pelos beijos humanos. Pela quente e pela tarde fria corriam. As lágrimas corriam. Os rios e os corpos cromos e sofridos conheciam o lado fatal. Por favor, não fale, desculpa as palavras, agradecido. As paredes gélidas. As árvores soltas. As mulheres todas as ruas. Desculpa, não, não, não, ela e ele não poderiam assim dizer, as lágrimas não souberam dizer, os corpos não diziam, deitaram, dormiram, a quente e fria noite, a fala triste e metálica, desculpe, perdoe, agradece, não seja isto, aquilo que vai triste e lágrimas pelo bueiro. Os homens todos os bares. Assim desculpam. As camas estendidas em paredes longas e brancas, as vozes caindo do céu escorrendo pelas gargantas dos bueiros e a cidade que não conseguia fazer sexo espremia neles os sentimentos, pelo céu gritando surdamente o sol porco do outro lado e as estrelas gritando pela noite não se molhavam com a chuva, o que escorria pelas árvores eram alguns pássaros vermelhos, algumas asas, desculpe, ele promete, ela remete a promessa a si mesma antes das noites se acabarem.

As mil e uma noites se acabaram doendo, doendo. As mortes acabaram com toda a literatura possível; e toda coragem possível morreu sozinha; mais tarde, todas as palavras saíram cansadas e as malditas esperanças caíram sem sorriso algum. As velas acesas não puderam rezar, a fé acabou com os padres podres e doentes, e a felicidade já encontrava melhor o que conhecia, as dores que conheciam, as dores pelas manhãs remotas, as tardes sem nuvens choviam, o sol negro em lua clareava este e o isto do céu, sem voz tudo está sem voz, sem brilho, sem ar, não havendo pássaros, não conhecendo quem poderia estar ao lado, não sabendo quantos quartos são, não sabendo o que seria ser sãos, tudo acabava assim em doses únicas de dor, o amor sofria de abstinência, causava abstinência sem substituto, sem diálogo, sem som, duravam a eternidade de muitas saudades. As dores estavam frente a frente, sem que nada pudessem fazer, choravam sem choro, as lágrimas de ontem ainda seriam as únicas lágrimas a caírem, a única coragem manifesta, a única saída possível, o telefonema possível era morrer de alguma doença normal num quarto de hospital branco e empulhado de máquinas e médicos, vociferantes animais. Os animais do amor começavam a encontrar o ponto de fuga, o foco do medo era agora a brisa que está nos pulmões, na barriga, na solidão hereditária, na verdade que alia as muitas paredes nuas. As paredes mudas e nuas. O banheiro límpido e baixo. A terra suja e sem jus, as dores do medo, os cães foram avisados da batalha perdida. A guerra poderia continuar e findar e utilizar o que se tem a disposição, os corpos a disposição, as mortes estão a disposição de matar, assim há o amor, o perdão, a merda e as hemorroídas todas, estes nescios humanos, este escárnio humano, esta teta humana, esta terra, as maldições, os pequenos e malditos ritos, estes encontros sujos, esta alma pequena inexiste, inexiste algo e as almas grandes e no mais, inexiste e acontece, vendo ou não, cegueira ou não, começo e fim rugem. Os animais pequenos morrem na boca dos grandes e os grandes conhecem o medo de morrer, morrer aqui e ali famintos sem comiseração, a pena é dos mortais frágeis, o reino dos céus é dos idiotas, os idiotas dos livros, as mundanas paisagens e não basta olhar, uma visão é sempre uma visão de esgoto, sem tratamento. A doença está com tudo. Todas as liberdades estão doentes, os muitos tipos de poemas, as muitas e diversas amizades, todos os tipos de sexo, todas as vozes tem seus calos, toda a vida mata sem liberdade, toda dor está livre de ser feliz, a felicidade está cheia de coisas sujas, a felicidade está cheia de morte, a morte está cheia de tudo, a doença está com tudo, todos os desejos são felizes porque sabem morrer, porque querem morrer o quanto e o antes sem felicidade e com felicidade, a dor está com tudo sem morte ou com infelicidade, aqui no corpo e no outro corpo e nos outros corpos imagens e em outras imagens felizes, ficcionais, é necessário adoecer e esperancear. É necessário dizer sobre as jaulas, sobre as capturas, sobre os animais uma única palavras basta, a palavra dói e não pode ser dita, mesmo que seja uma única, uma, aquela que liga e que religa e não diz nada, não pode ser dita a palavra liberdade, não pode existir tal significado, não pode existir tamanha doença, a felicidade não pode existir, como doença pode existir doenças e micróbios, liberdade não pode existir como doença, pode existir como dor, esquisita talvez, externada, indizível, presente, liberdade pode significar sílabas de homens dormindo em sílabas de mulheres, heterodoxia banal, homossexualismo banal, vida banal com felicidade ou sem felicidade, pouco importa, a palavra feliz não pode existir aqui neste mundo magro, nesta terra achatada, neste azul pardo e secreto, nesta atmosfera de sílabas, nesta atmosfera de dor, nesta palavra monossílaba se encontra o que encontra a morte. Morrer, que tamanha sílaba, que alcance, que futilidade, a dor é fútil, a liberdade é mentirosa, é melhor a futilidade, a vaidade, a conservação é opaca e não precisa nada mais e nada menos. O quarto está destruído de corpos, os ossos de todos os diálogos são imprestáveis, somente a guerra, somente violentar, somente a ternura, somente começar, jamais o meio e o fim inexiste. A doença é livre em qualquer lugar.

A idéia crescia aos poucos no cerébro. Pequenas imagens e muitas sensações aos poucos e aos montes progrediam os risos e as lágrimas.

A fachada estava toda pintada. As paredes deitadas. Os peixes todos mortos. Os bifes esticados. As panelas secavam na sombra. O telefone tocou lentamente. Quando atendeu, ninguém estava na linha. Os nervos estavam longe de estarem ocultos. As escamas sujas e os olhos deitados pela pia. Na cozinha estava uma porção de tarefas inacabadas. Na geladeira uma quantidade de violações primárias. Na sala um grupo de famintos. No quarto um homem deitado. A televisão fazia a mísera companhia. As panelas que enfrentavam o fogo sorriam sem dentes. O gordura esquentava perdoando a noite mal dormida. As crianças campinavam na sala os brinquedos, a bola, o cachorro, o cavalo, a mãe, as vacas sem dar leite, a solidão sem virar amizade e a cozinha já se desesperava pelo almoço. Ela sonhava jantar fora, queria que não existissem crianças e pelo contrário não queria mais ser mulher. O cheiro de peixe e de coentro enjoava-a como as grávidas. A dor estava começando um pouco mais cedo do que de costume. As vozes que vinham dos cômodos de fora da cozinha não a predispunham a sorrir. Chorar não podia amarelar. O almoço exigia suas regras, falsas ou verdadeiras, não que se importasse em sofrer, não que não tivesse muitas lágrimas, não estava ali para ser alegre e nem podia temperar o peixe com as lágrimas. Os bifes podiam apanhar, mas os peixes podiam fugir nadando para algum lugar que queriam ir. Fugir pelas latas, esconder no molho de tomate, brincar de pique de esconde na farinha, encostar no fogão e tudo explodir. Ficar livre de tudo aquilo e ainda ver o homem chorando. A pequena entrou na cozinha.

Ela foi beijada mas não beijou. Ele estava com vontade de chorar mas refreava tal espetáculo, ajudou a tirar a mesa, foi para a cozinha cuidar dos pratos e das restantes louças.

A noite alcançou o princípio, o começo, o início, o inverso do dia, alcançou a temperatura mais baixa, alcançou mais baixa, alcançou a solidão mais profunda, alcançou o silêncio mais fraco, alcançou o momento mais tenso, alcançou a respiração mais melodiosa, alcançou o maior número de países, ameaçou os animais mais frágeis, buscou a lua mais clara, deixou as estrelas mais tristes e claras, cultivou o poema mais raro, encontrou a pessoa mais bonita, assediou o engano mais forte, ameaçou a bola mais rica, pintou o quadro mais puro, calcou a memória mais nítida, salvou-se, a noite salvou-se, conheceu os moinhos e os dias menos ricos, chorou nas mãos daquele menino, abençoou as formigas trabalhando, olhou lá embaixo na terra dos homens, perguntou as areias como estão os desertos, aos mares falou da tenacidade das ondas, contemplou os nove planetas, massageou as pernas mais bonitas, conheceu e iluminou os melhores becos, nos confins, onde os quadros verdes hasteados e sem bandeira chamam a voz terna a cantar serviu para retrato, aconselhou aos rancores a dormirem, admoestou a felicidade a não deixá-la, dissuadiu a dor a virar as costas e a andar sozinha, conseguiu os caminhos limpos para os cegos andarem com segurança, matou sem implantar o pânico, aumentou a tortura para abrandar a paixão, calejou as mãos e encontrou no descanso os sonhos de dias mais felizes. Perguntou as pessoas erradas o que lhe tinham para fazer, bebeu com os alcólotras sem conversar sobre o passado, abriu as portas das jaulas e soltou os animais, amamentou o bebê até enfadá-lo, percorreu a intimidade sem ameaçá-la, dominou a pessoa sem maltratá-la, ajudou o mendigo sem irromper-se, aprisionou o assassino sem testemunhar o feito, afagou a vulva sem cometer sexo ou adúlterio, margeou a luz, aviltou a pobreza, menosprezou os palácios pobres, deitou na relva flácida e a beijou longamente, devolveu ao fogo mais áspero as chamas amarelas, devolveu o azul redondo aos olhos quadrados, devolveu os envelopes as cartas, mudou de fantasia, mudou de roupa, deixou a claridade se apagar, deixou as estrelas brilharem, deixou o choro fluir, conseguiu sonhar sem precisar de acordar de manhã, convenceu o time a perder o jogo, conservou as amizades, conservou os poderes autênticos, congelou a carne e guardou, congelou o inverno até o próximo verão, enviou todos os rios para o mar, alterou o humor sem perturbar os gênios, contou as histórias sem mentir, resistiu aos risos bestiais sem deixar de sorrir, cometeu a saúde a todos planetas, destruiu a violência reflexiva, enterneceu sem desmentir de formosura, sem banir, sem vê-la ainda pôde admirá-la, sem ajudá-la ainda exaltava, sem poder ainda movimemtava, sem dentes ainda conseguia comer, sem mácula e sem medo não se deixava descansar, com remorso não se deixava não fazer, sem poesia não respirava, sem música não podia pintar, sem pintar, ainda sem pincel encobria com os olhos e com as estrelas toda a planície, sem água e sem sede, sem viver ainda a noite sobrevivia do outro lado. Sem sair, sem permanecer, sem estar, sem arder, sem untar, sem assar, sem virar, continuava a beijá-la longamente na relva flácida.

Lindas. Belas. Lisas. Brancas. Torneadas. Lícitas. Longas. Não feriam as ruas. Enquanto a roupa protegia os olhos, as noites protegiam as pernas. Ele podia conservar suas palavras dentro das pernas dela.

Aumentaram tudo e não reduziram nada. Comentaram as maiores futilidades. Na esquina os medíocres distraíam as notícias de todas as responsabilidades.

Fugia com uma dor no peito.

Atiraram minúsculamente na artéria do coração.

O sangue escorria devagar pelas patas.

Os dentes semicerados estavam caídos na porta do colégio. O cavalo estava atropelado na rua do colégio.

A doença; livre.

A poeira rosa como o céu é escarlate de manhazinha. O ar transparente produzia luz. Na estrada os bois não entendiam o que as placas diziam. As mulheres pariam as primeiras nuvens. Sem se alimentar o sol já nascia jovem e adulto, forte e pouco misericordioso. Aos poucos as estrelas fugiam do céu humano. Os homens despertos articulavam as primeiras palavras. O cérebro sem com quem diologar aquecia as memórias mais recentes, fazia o seu café, escondia as primeiras impressões de quem o possuía. Quando pediu que raciocinasse, a primeira vez no dia, enjoado, regorgitado, aceitou a ordem sob pressão e sob tortura. Não podia rebelar, deixar e enxergar o que tinha visto, mais impróprio e mais perigoso; voltar a dormir. Seguiu as ordens até a matemática; tantos números. Os dedos não queriam trabalhar. A voz não queria sair de casa. Os braços dóceis, afáveis, deixaram de lado a tristeza. Os primeiros pensamentos ainda não poderiam acontecer. Com aquele sol viril nada nascia bonito. As águas corriam enfadonhamente. A brisa momentâneamente movimentava os pequenos animais de uma folha para a outra. Os sapos já estavam calados. As pobres borboletas decoravam matinalmente os ares arredondados. Era lassidão. A verejeira encontrava na estrada os grandes hotéis. Não havia vasos mas muitas flores, não havia espíritos mas muitos gritos. Não havia berro mas espécies falantes, um conjunto de urros daqui e para ali, uma ameaça de carros, uma quantidade de tragédias ainda não estavam prontas a rodar. O filme vazio. A lata vazia. A barriga rosa. A mortadela dormida ainda respirava. Os pães deles eram os pães delas. As mandiocas estavam na terra. A farinha no armário. Copos e xícaras. Leite e porcos. As primeiras pragas ancoravam na goiabeira as suas existências. O sítio era verde. A mata tinha conhecimentos de música mas não usava de modernidade. Sóbria e viva. Verde e abatida por tantas vítimas, lenha de cá e pau de lá. Fogueira e incêndio. Sem pátria as borboletas visitavam os campos. Sem a beleza das águas bailarinas só restava uma miúda esperança. Esta manhã prometia besouros, pastos quentes, bois iletrados e dor de cabeça. As primeiras poeiras apareciam atrás dos carros. A atividade do almoço começava cedo. As crianças saíram a pé percorrendo a longa distância para a escola quente, a merenda parca, a professora estúpida, o futuro tinha cachaça, congada estragada, felicidade para ter muitos filhos e pouca duração. A adolescência inexistia. A infância trabalhava. A terra era rosa, vermelha, abóbora e sem vergonha no quartos e nos campos. Na planície o arroz alimentava anuns. Nas árvores o machado machucava. Os animais escondiam a calma em fugas e esconderijos temporários. As pessoas tinham em seus teatros desertos, no peito lástimas, na voz murmúrios, na reza a feição, nas pernas a tração feminina era bem mais forte, nos braços de muitas roupas não faltavam polidez e nem limpeza nas roupas. Quarar era a obrigação de todos os dias enxutos.

Temeis o abandono; o desamparo; a morte; a fala; a solidão. Temeis mais ainda o amor, a justiça, o carinho, as virtudes, as artes, as crianças, as verdades, os desejos, os motivos, a liberdade e as mulheres. Temeis menos a falsidade a violência o arbítrio o perdão a ajuda a solidariedade a sonolência a ignorância. Temeis o mundo, o mundo todo temeis. Temeis o medo de não temeis, temeis as horas exatas, a felicidade, as honras e as provas. Temeis o corpo, temeis a doença, temeis o sepulcro, o fogo-fátuo, o lusco-fusco, temeis os automóveis velozes e os aviões voadores. Temeis. Temeis de verdade viver. Temeis a vida. Temeis o viver. Temeis o perigo fino e os resíduos noturnos. Temeis a manhã, a prosa. Temeis. O tempo todo temeis e encontre assim algo que é possível não temer. Não fale. Temeis em falar o que descobriste. Temeis agora em silêncio.

Embarca pelos aviões, no interior dos navios, adentro dos carros, por cima dos ombros, debaixo das camas, atrás dos armários, dentro dos olhos, pelo cerébro, nas mãos, nos lábios, pelos pulmões, entrando pela garganta, dentro do sangue, com confiança ela entra sem receio ou escrúpulo. É aceita sem hesitação, amada sem reflexão, inspira e respira, a doença é livre e encontra na espécie a liberdade da dor. A dor é livre mas aprisiona os doces.

A respiração estava medianamente alterada. A pressão atmosférica parecia ser a mesma do que a meia hora atrás. Olhava pela janela e via pelo hotel a estrada vermelha, a poeira abóbora, o sol porco, a escola pobre, a cidade sem verde e sem água. Depois da podre comida, depois do meio-dia só podia partir no final da tarde. O tempo em contínuo ferir. A estrada lhe causava enjoo com tamanha antecipação. O ônibus sujo e morimbundo. Tudo crescia; menos a esperança de chuva. Tudo se somava, menos as nuvens, tudo estava vazio, menos o calor, tudo é pobre, menos os animais, tudo é cachaça, menos as crianças. Em volta daquela árvore espírita e frondosa, debaixo daquela mangueira coberta de fungos, perdida entre os amigos, de vestido sujo e feio, com a cara empoeirada e alegre, ela; com eles; brincavam de pique. O último salva todo mundo! Tarefa que executava com uma magestade que fazia dó. Cabras e cachorros, gatos e galinhas, porcos e outros animais se esbanjavam no lixo solto. Quem encontrava comia. Quem não encontrava procurava. Os porcos ciscavam com fucinhos e resfungadelas. Os cachorros resistentes e magros trabalhavam por algum alimento mordaz. As cabras se proclamavam onívoras, e os gatos demosntravam as habilidades naturais. Entre o pequeno zoológico rural e as crianças, a motivação era a mesma; fazer o tempo passar, não admoestar ninguém, não recorrer a nenhumna aflição, sonhar, sonhar, sonhar...

Os cabritos cagavam redondo.

Ali não existia nenhuma rês, nenhum adulto tomava conta das crianças e nenhuma delas tomavam conta de animal algum.

Deus está em todo lugar!

Tem lugares que não aprisionam quase nenhuma beleza. Naqueles animais não apenas existia fome; cansaço. As crianças de modo algum eram animais. Brincavam sem eles. As crianças fizeram passar pra noite os advérbios.

A água cozinhava o milho na panela. A base de lenha o fogo inconstante, irregular, queimava. A casa não tinha vidros, pouca transparência, uma única porta, buracos e furos na paredes. As mariposas circundavam o lampião amarelo e mágico. Ela estava em pé no calor sufocante do fogão. As pequenas tramelas, janelas inúteis. O cigarro de palha. As palavras sem dentes. As crianças sem brinquedos e com muitas estrelas. Luzia no céu sem dicernimento alguns planetas. Cotovelos no parapeito da janela. A brisa oscilava as chamas que por acaso ousavam sair do fogão. A fumaça pelo lado de fora. O zoológico disparava seus sons. Luzes surdas nas ruas sem zelo, repleta de sombras, festejadas de insetos. A sanfona dançava no bar da esquina, causava nos peitos uma certa comodidade, acerto e satisfação. Quando a madrugada reunia o silêncio de todos que dormiam, ainda assim, havia resíduos notívagos permanentes, que pelo carater de sua estreiteza e freqüência só eram apercebidos naquelas primeiras horas. Quem viesse a conhecê-los sabiam onde repousava o silêncio do mundo.

O que acontece dói.

O que poderá acontecer doerá muito mais.

O que deixou de haver dói retroativamente no futuro.

A dor é livre. Benfazeja.

Encomendas de felicidades aceitas e não aceitas. As encomendas aceitas é a dor consentida e submetida. As não aceitas é a dor em latência dominante.

O estupro — sem consentimento — o sexo: consentir ser e fazer estuprado e estupro.

A dor é livre. A doença é livre.

A liberdade somente dói em presença ou em ausença.

A liberdade é dor, ora se oculta, ora se exibe. Na sua exibição é como uma super nova. Quando se oculta, torna-se como os planetas, brilham sem ter luz própria. O sol não se vê, e o planeta traz o sol até os olhos mais proóximos. Os planetas trazem os olhos e convidam os olhos a ver o que se oculta. Ocultar-se é revelar-se indiretamente. A felicidade oculta uma dor indireta. A dor é felicidade exibida sem nenhuma mediação.

Saiu feliz do restaurante mesmo vendo inúmeras crianças pelas ruas. No hospital encontrou a tristeza que não sentia. Continuou a fazer seu trabalho em inúmeros leitos. Encontrou pessoas e pacientes, encontrou pacientes e somente os pacientes tinham paciência de suportar além de todos aqueles tratamentos a frieza, a invasão, a guerra, a pobreza de afeto, os espíritos de deuses tortos com estetoscópios, radiografias, quimioterapias, operações, filas, sujeira e muita medicina. A paciência tem limite. Não ali. Braços quebrados, pernas quebradas, olhos quase cegos, cortes e muitas doenças livres. Pouco, quase nenhum respeito, muitos tipos de frieza, muitas profissões lavando o chão, lavando roupa, na portaria guardas, as pessoas caídas em leitos, pessoas sem estima, sem carinho, doentes, doenças livres e a medicina grande. A escola de medicina é grande. Os pacientes pequenos, como nos livros, a doença sem sujeito.

Comida de hospital é paciente. Alegria de hospital é remédio.

São muitos corredores, muitos médicos colegas, alguns eram seus amigos, algumas eram suas amigas, as enfermeiras pequenas formigas, motéis, bundas e bostas.

Os pacientes são apenas bostas doentes.

Reforma agrária no hospital é viver em corredor, morrer sem pessoa. Carne, corpo, bosta. O hospital é um grande sanitário. A medicina dá descarga. A profissão aperta o botão. Viva o cloreto de potássio, a morfina, a codeína, a maconha, o cigarro, a bebiba, a mescalina, o lsd, a heroína, felicidade, felicidade, viva a cocaína, o axixe. Os médicos deviam ao entrar num quarto de hospital munidos da felicidade, deveriam oferecer aos presidiários seus últimos pedidos, depois escrever, insuficiência respiratória ou parada de respeito.

As flores; flores foram colhidas, para fazê-la feliz chegou em casa com um pequeno buquê.

Iluminação; acontecia de manhã, coberta de nimbos baixos e pretos.

O que acontecia de manhã estava fraco; o que estava claro; escurecia...

Palavras pretas, água suja.

Montou no cavalo verde assustada cruzando o rio.

Alguém escutava a estrada de ferro.

A menina escutava a viola caipira. Palavras sujas. A narrativa ambígüa acontecia à beira da cama. A mãe saiu do quarto. As velas ficaram apagadas, o escuro era escuro, sem luz.

As palavras voltaram assinalando as pequenas mudanças. As imagens do sol, as suas manchas, a cegueira, velhice, a morte de todos os cavalos verdes, as barrigas crescendo, crescendo, sem antes parir, crescendo verde as barrigas, as portas fechadas, a luz parda e ferrada no escuro, as bolhas no rio. Os peixes estavam tão grandes, a estrada cooperava. O automóvel escorria como quiabo pela planície marrom. Sentimentos. A voz pereceu à beira da estrada; metade criança, metade pobre.

Seria necessário muito mais do que nuvens, mais do que centenas de goiabeiras retorcidas, nem o solo neutro, nem o solo alcalino, nem a vida tácita, nem mesmo o sabiá. A vida se dedica a movimentos, que embora muitas vezes sejam belos, na maior parte das vezes sem sentido. Sentir é uma questão de hábito; os abacates, as mangas, as carambolas, as pinhas, as canas, as mesas, as falas...

O outro lado do rio. O outro da ponte.

O espetáculo da felicidade ingênua, as sombras, as casas caiadas. As fotos. As núpcias foram tantas, e todas já tinham ido embora. As crianças ignoravam.

Foi a primeira vez que viu bem de perto um avião subindo. Sua mãe pegou na mão dele, o nariz colado no vidro, embaçava e desembaçava o vidro com a outra mão ainda solta. Ouvia aquele barulho devoniano aparecer e desaparecer no céu. As tias chegaram. Pálida, embriagada, cansadas. Estavam esperando as malas quando ele avistou aquele senhor velho dormindo inequivocadamente na cadeira.

Ela pediu e ele consentiu. Não fazia tanto frio, mas dormiram com cobertô.

As ruas fracas. Ninguém bebia. A cidade gripada em pleno feriado prolongado. As portas fechadas da linda casa. As gavetas remexidas. Missas vadias celebradas, tarde ensolarada, transitória saúde, o ar parcelado e úmido, muitos relógios andando lentamente. Os aborígenas, depois os pigmeus, a pipoca na bacia e a televisão tinha uma cor muita viva. A palavra matava a última chance do livro.

Caiu no chão, sugestão, chuva, velocidade. Encontrou-se as pequenas esferas verdes, a chuva de granizo complacente e gélida.

As notícias corriam confusamente pelas fileiras dos jornais.

As mãos inchadas estavam cortadas no chão

O primeiro sorriso não alcançava as faces, guardava a alegria no peito, reduzia a felicidade à sensibilidade das mãos, mirava sem esperança, sem aflição, não filtrava o que entorno deslocava a luz de lugar. As intenções de amor atentas, as partículas móveis do ar coloriam o cobre leito da cama, a janela salgada e aberta, a brisa cálida e lenta assediava os lábios, certas lembranças sem cor e sem som, dentro da cabeça havia silêncio sem espanto, o torpor preto-e-branco de certas imagens se avermelhavam, as marcas fulgentes, as cicatrizes, uma palavra morria silenciosamente. O jeito de respirar longamente, a fabricação de paciência, pendulava a manhã pela lateral do quarto, as casas coloridas e baixas não deixavam de demonstrar o quanto era domingo. As primeiras crianças da manhã jogavam bola na rua sem festejar. O almoço estava longe de aparecer. Como as camas estavam para arrumar, como a mesa de café estava ainda por tirar, como as roupas não estavam lavadas e o sono ainda tanto incomodava como agradava, não havia retiro.

O que estaria correndo tão fulgentemente pelo céu, pelas águas, por debaixo da terra, o que estaria acontecendo longe. Um lugar se movia, fantasias dormidas, cortes e dores. Havia sinais em todos os lugares, pedras em todos departamentos, pedras corriam pela cidade, jorrava petróleo na cidade, gritos pela cidade, as pedras colidiam doces. As passarelas eram assassinadas, as pistas ficavam ensangüentadas, as coisas estavam com saudades dos tempos mórbidos. Era agora lembranças, todos os desperdícios possíveis estavam verazmente mortos para todos. As bombas caíam, o petróleo vermelho jorrava pelas ruas. A luz era rara mas acontecia. A água sujava-se de vinho e de fezes.

O mar. Como pôde acontecer só naquele agora.

Encontrou na rua aquele casal dançando e no bairro coloria as casas pobres.

Pequenas criaturas determinadas. Noite toda. Todo o dia — houvesse o que houvesse — pequenas criaturas. No aquário de areia, no subsolo, no interior de aparelhos eletrônicos, no telhado, pela grama, pela roda, no parque de diversão, nos parques.

O leito corria de um lado ao outro, de uma ponte a outra, margem a margem. Corrente de água descendo matas e verdes, água escura e pobreza pelas ribeiras. Sinais de tolerância em todo o caminho; registros do sol, da chuva, do vento. O tempo ardia crescente, inequivocadamente. A cortina de fogo consumia a fofa floresta. A água nada podia fazer. Pelo leito do rio só se podia ver os estalidos de horror.

Não se pode fazer transfusão de rios quando rio se definha.

Sorrir já seria sensatez.

A calda descia avermelhada e lentamente.

Embora soubesse o que tinha a lhe fazer não exigia palavras pequenas. Os gestos estavam justos a calça, a camisa, as pernas expressavam pequenas partes de palavrões esquecidos. As vozes marginais secas. O céu corria vermelho para dentro da boca, mas quando podia começar a chorar uma opinião alheia lhe tirou a dor. A cinza maleta do peito fechada, a lacrada meleca do nariz estava ainda lá na frente dela.

Ele só podia chorar ali sozinho; na sala, em casa, no trabalho, no banheiro, com a porta aberta, podia chorar sozinho, sozinho e devagar, cada lágrima caíria vagarosamente sobre as maçãs brancas, cada ruído, os dentes seriam solitários dentes de choro, só poderia chorar com os dentes, de cabeça baixa, entre as pernas moles, entre as portas e as paredes, entre os atos até o choro, sozinho e vagarosamente poderia chorar e não se levantar, não fechar as cortinas e nem atender o telefone, não abrir as portas, nem levantar as pernas. Chorar.

As cordas estavam amarradas no salão; grossas, finas, quilômetros pelo salão. Trançadas, coloridas, rodopiando pelo salão da loja. Cordas de navio, de museu, cordas de montanhas, cordas de bombeiro, cordas de carro, cordas vocais amarradas na boca. Cordas de violão esticadas num uníssono espetáculo, cordas amarradas no coração, nos cães, nos cavalos, nas éguas, cordas em volta dos pescoços. Cordas azuis no mar revolto. Cordas amarelas pelo gramado. Cordas separatista no meio da praça, no meio da confusão, cordas vocais cansadas, cordas antigas naquele avião. Uma corda puxava-o a bailar pela água amarela e salgada. Corda verde áspera no cabo de guerra. As cordas roucas da multidão. Cordas no palco, cordas no salão de automóveis, cordas mecânicas no cerébro, nos braços, nas pernas, cordas transparentes nas pernas, cordas azuis nas pernas. Cordas para massagear, cordas macias trancavam o corpo dela, mordia a ponta da corda, rodava, subia, andava pela multidão abaixo. A corda feria os animais presos, a corda feria a corda vocal. A corda antecipava as cordas. As cordas deitadas enroladas como cobras pacientes. As cordas paravam o brinquedo, movimentavam os relógios, as cordas velhas amarravam as patas, as cordas no pescoço e o pescoço paralisado antes, anteriormente a tetas, as cordas que guiavam a ponte a passar pelo abismo, as cordas vocais gritam ao passar naquelas montanhas, as cordas de força, as cordas do cerébro paralisaram.

Destruiu os estandartes, atirou, maculou as fêmeas, marchou até os orgãos genitais dele, massacrou, cuspiu nos olhos, cortou a garganta, atirou, jogou as bombas, assinou as sentenças, cortou a água, cortou a água, cortou o sol, cortou as cordas do cérebro, cortou os desejos e os matou. Os bezerros, as praias, as cordas vocais estão presas no céu vermelho. Cansadas, amarradas e mortas.

Eles estavam sentados numa mesa de bar, sentados no carro, no ônibus torcendo ver o céu escurecer. De madrugada, enquanto o verde variava nas ondas brancas, enquanto o azul estava de noite, um continente, dois continentes, um poderoso rio saía da báia para o mar, uma cadeira boiando, um conjunto de aeronaves chegavam descendo sadias pelo ar. Os anjos estavam grandes, maduros e trabalhando. Estavam na mesa bebendo. Estavam as mulheres nuas trabalhando, a sensação alimentícia do olhos. Tudo estava zenite na mesa do bar, na mesa os anjos ficando tontos, um grupo grande de cinza caía no chão. As cartas na mesa. Os olhos parados, os olhos em zenite parados. Os cordões parados no pescoço. A percepção parada. Alguém começou a falar dos apitos dos trens. As estações não podem ficar paradas, não podem estar sozinhas, sem as pessoas, sem os trens, sem a população, as estações são desertos justos, cansados, solitários, extensos. De um tempo ao outro, começo tarde fim água potável. Na memória livre vai os pedaços vestidos, os corpos negros redondos. O negro redondo. A margem distanciou. A mala preta. A barca azul. O carro verde. O lápis dele caiu no chão. O beijo até era assim, ventania. Correntes de ar. Céus vermelhos, brancas nuvens de marfim piano. As estações silenciosamente. A dor atividade redundante do silêncio guardado. Alguém asfalto desceu as pequenas escadas, uma atrás das outras com muitos joelhos longos. Uma verdadeira era.

A paisagem sofria pela janela. Passava dez minutos e décadas inteiras derramadas, um cintilar aumentativo das coisas naturais, uma batida de coração não representava o pequeno intervalo. A dor reunia a vida inteira, o corpo sentia todas as formas letais. Crescia, com beatitude, sem beatitude, com reflexão, com intuição, crescia, se volumava nas paredes da carne vermelha, da carne parada que sofria a perda. Dóia, o cerébro doía, a compreensão doía, a metade doía, a metade do amor, o inteiro se calava ali e acolá, sozinha era linda, ao lado era grande, quando estava a par de tudo era necessário sair em busca de glossário, e nem as mais famosas palavras podiam escrever uma ordem tão singela. O amor acabava. O sexo começava a chorar. Ontem e hoje, a fora e dentro. O corpo. Tudo se contentava em objeto abjeto, opróbrios da dor doem. Tudo utiliza um começo, justificado ou não, a água corre para baixo, suave, turfa, suja, verde, vaga, forte, fria, corre assim para a baixo, a dor está para baixo, está aí, aqui e sempre, abaixo. O amor está abaixo. O amor iniciou-se no sexo, na ventania verde do beijo, na aberta magra do vermelho escondendo o laranja e a paz. A paz é morta, calada naqueles seios, capada naquela impotência, a paz é traumática, acaba singela, mas dói como parto, e parte afora o lugar que se leva, esvai sem sangue, branco seria o sangue da dor teórica, sem carne, a dor é branca, sem vida a dor é átomo, sem cor a dor é invisível, a paz é a dor sem doer, coisas do homem que não se cansa de morrer mas não pode escolher nem como nem onde e quando está proximo de tudo acontecer, o desamparo é tão grande, está tudo tão próximo, está tudo aí, sem reza, sem luz, sem palavras, tudo tão livre que as cordas se cortam. Está tudo aí, os interevalos remotos, os mesmos seios sem que alguém os enxerguem, sem o leite, sem beber, tudo tão podre, tudo tão fraco e lindo. A fraqueza é tão, o fracasso é tão, o medo adormece quando todos dormem. Os punhais cortam firmemente qualquer conto. Qulaquer som varre montanhas e favelas. Qualquer luz rica. E ritmar. Maestria melanina do sol. Acende, a palavra separada, sílaba a pessoa, uma fuga caseira dos sentimentos, o nome se apaga ao sol. A memória se apaga. Somente ave maria.

A queda d’água fornecia suas vozes. A mudança desenvolvia sua trama. Algodão, e a medicina das mãos plantavam ferimentos brancos na terra ainda que verde, sofrida, verde-catarro. A mala descia quase com rima do ônibus sozinho.

O nadir daqueles olhos acordavam na cama sem que ela visse.

Sem as paredes do quartos, derrubadas as portas, abertas as pedras, a fragância era a mesma, o paladar o mesmo que o diferente. A vida vinha repleta de sombras. Da torneira esquecia a água e saía para o balde fundo e veloz. Mexer a ternura, debaixo de lençóis limpos, abaixo, o chão. Veludo negro encapuzado de pelos negros pelo corpo magro, torneiras de músculos, o suor.

As damas nas cartas. Muitas cartas na cama.

A felicidade conhece ângulos, compassos e máquinas. Uma matamática faz doer os cálculos na cabeça. Rolada a bola... A família; infância. Os doentes; infância. As prostitutas; infância. Os operários; infância. Armas sem pássaros. O cérebro reagiu na infância; ainda cedo; colaborou generoso. Dedais; pétalas do tempo. Amarelas penas espalhadas pelo chão. O adeus é marcantes. Gotas de sangues na pequena escada de mão, as mesas estão vazias e pra sempre desenhadas. Uma tarde grande ameaça as melhores manhãs. As noites estarão sempre ainda agitadas debaixo das cobertas ou abaixo do céu estrelado, pela praia que se remexe as águas bárbaras do mar estão as primeiras histórias móveis. O pequeno cérebro, aquele que se esconde dentro das cabeças, a pequena casa recoberta de luz ilumina. Não é luz fria, nem amarela, não tem cor, ilumina sem brilhar sem ciar sua cor, perpétua, sem resíduo. Em lugares negros, em retinas quadradas, em atmosferas simples, o tempo dura o tempo necessário, e acontece o que acontece necessário. Acontece e melhora. O cerébro melhora com comprimidos de ar. O tempo passa sem melhora; muda sem deixar lugar; muda sem passar o lugar. Está longe de estar. A mulher mudou de lugar. Trocou de olhos, trocou de ar, trocou amar por perceber que amar não encontra outra razão que não seja morrer de amor. O tempo começa hoje e termina nunca. Jamais homem, sempre tempo, começa pelo cérebro e termina ontem, jamais homem, animais e vegetais, racionais e irresponsáveis as terras que se vê. Essa voz que corta o sangue; aguda e trêmula; este timbre que fere coágulos e hemácias, esta perda moral, esta falta animal, esta máquina de proibição, este cérebro pequeno, indecente, fogoso, mal, coberto de testículos por todos os lados e ângulos, estas memórias falsas, falaces estúpidas e mal concebidas, tudo começa hoje e termina nunca em nunca, jamais pelo jamais. Mau, mau, mau. Mal começar a sonhar, acordar, acordar sozinha é horrível, sem cordas. Estou amarrada. Estou firme, estou pronta, estou acabada. Que fado! Termina hoje as inscrições literárias, as putas literárias estão acabando. As porcas estão engordando em alguma cama sorridente. Este chiqueiro está morrendo. Esta câmera está andando atrás de mim, está me olhando, está me vendo, está me olhando onde eu estou, estava sozinha e cheia de companhias. Está acontecendo de novo. O cérebro, a água solar cai, o sol porco vem, a merda doce está, o cabrito está aqui firme, esta ereção que sinto, esta cova cresce, espera o corpo descer, esta ruga, este espelho hoje encerra ontem e está sem fim, sem me ver o que sou. Estou precisando morrer ainda um pouco mais rápido, fenecer e contribuir, dar lugar e procurar meu lugar. Que hora negra é essa! Está acontecendo de novo! Está acontecendo de novo, estou perdendo o controle de tudo, estou perdendo tudo. Está acontecendo de novo, está ficando frio e a barriga hoje não quer roncar, este dente só quer comer, esta boca só quer chupar. Está descascado, está ferido, está morto, o tempo está sem cérebro, sem cor, todas as doenças possíveis, todos os gestos melancólicos, toda esta tristeza tem beleza, está tão bonito este dia cinza, esta dor sozinha, esta bainha da causa precisa ser feita. A urgência cresce nessas mesas redondas. As paredes estão frias, as pencas estão perdidas pelo mato. As boias estão longe das famílias. Alguém ficou afogado de fome, alguém perdeu a cabeça, matou o bebê porque vinte minutos ele chorou. Acordou morto. A alma acordou morta depois de vinte minutos de choro. A mãe não estava ali, a mãe não estaria mais viva, depois que seu filho morto pelo seu pai, ela estava morta. Estava viva, estava morta, foi preso nos hospitais, em muitos ele vai passar, por todos os tipos de remédios, ser cobaia e humano, o erro dele é ser humano, o erro de todo mundo é ser humano. O erro mais comum e menos perdoável é ser humano, é ter desejos, é ser só, sentir desamparado, sentir fraco, sentir na pele, é o erro mais forte, mais raro e mais humano, é o erro de viver, de querer um outro orgão, é erro de família, de todas as raças, de todos os cérebros, é um erro saber que se vai morrer. A vida é um erro inconcebível, inquestionável, a vida é um erro total, é um erro morrer assim ou assado, um erro começar de novo, se verter de novo, se comover é um erro imperdoável, é um erro único viver sua vida. É preciso errar, perdoar o erro e errar satisfatoriamente, sem voz. A voz está errada em falar, os gestos estão errados em dizer, está errado morrer e nada é mais errado do que viver, está errado está aqui, está errado viver aqui e ver toda essa gente morrer de fome, está errado matar, mas é preciso, preciso, errado, preciso, errado, esta vida está assim hoje e termina nunca. Termina nunca, termina aqui, quando jaz termina nunca, dói sempre quando algo é nunca e jamais, sempre e constante, tudo que perdura dói, dói, esta garrafa, este álcool nas veias, esta matança. Está errado viver e não viver, morrer e matar, está errado o errado, está certo está errado, está triste, está firme, este barranco vai cair pela primeira chuva, está assim e está nunca, nunca mais está, está chato, está forte, está perdido, está porco, está cru, está aqui, está sempre.

Ela, pois, precisava morrer de amor; mas não conseguiu. Ele continuava precisando morrer de amor e conseguiu apenas amar.

A tarde iniciava noite, sozinha, sem lua amarela. O céu delatava as estrelas.

A dor começa de algum lugar. A dor vai de algum lugar. Sai de algum lugar. A dor existe. Sempre ameaça não terminar, sempre passa não ter fim, sempre aproxima. A dor começa feliz, começa viver feliz, ameaça viver feliz, alimenta. A dor acontece. Nos dentes, na cabeça, nas pernas, nos músculos, a dor acorda de manhã, acorda sozinha e precisa de ter companhia, a dor abre a boca, procura o peito encontra a cabeça sai pelas mãos, volta andando, encontra alguém, a dor pode ser beijada, a dor de manhã é forte, a dor é bela, plena vértebra da coluna, a dor na cama, a dor de saudade, a dor passa ilusões, a dor está no braço, está nos cabelos, está fria a dor. A dor aparece e desaparece, desaparece de vista não muito longe. A dor tem suas portas, suas maneiras, o sorriso caiu e a dor entrou. Ela deitou e a dor deitou. A dor está sozinha com ela, a dor está conversando com ele, está no medo, está prestando atenção. A dor quer casar, quer ter filhos, a dor quer ter uma casa, quer ter uma família, a dor quer ter o que pode ser destruído, a dor quer possuir a violência, consumir os espetáculos, dissolver os orgãos, a dor quer morrer, agora, ontem, amanhã cedo, amanhã a tarde, amanhã a noite, amanhã de manhã, a manhã da semana que vem, as manhãs. A dor pode contar piadas, pode conter esperanças, pode abrir o tempo e morrer. A dor está vendo com os olhos, vendo com as pernas, a dor pode saber o que é bom, o que é ruim, o que é nobre, o que é objeto, o que é vulgar, a dor pode saber onde está o saber, onde está a felicidade, onde está a paz, onde está a saudade, a dor pode saber onde ela mora, onde ela vai, onde ela ama, a dor pode saber escolher, pode saber onde está o carro, onde está a viagem, onde está o amor? Onde estão os orgãos? Onde estão os sorrisos? Onde estão os corpos? Onde estão os movimentos? Onde está a sutileza? Onde está a fuga? Onde está a dor? Onde está o amor? Onde está? Onde? Acabou o tempo, acabou a esperança, acabou o amor, acabou. Acabou as plantas verdes, acabou o mar, acabou as ondas, acabou os peixes, acabou as lágrimas, acabou as mãos, acabou os pés, acabou o amor. Acabou a cama. A cama está suja. A cabeça está quebrada, a cabeça partiu e não encontrou nada. Acabou o amor. Acabou a viola, acabou a palavra. Acabou. A dor morre. A dor não acaba. A dor morre. Simplesmente; não acaba; morre. A dor morre ontem. A dor morre agora. Quando morre agora? A dor quando começa agora. Quando encontra agora. A dor quando a encontra; quando desencontra dele. A dor morre. Quando a dor morre e acaba não é dor. Quando acaba não é dor. Quando morre; quando a dor morre; a dor é quando dor. A dor morre. Quando é quando; acaba acaba; morre morre. É a dor. Quanto, quando, como, quando e como, quanto e como, quanto acaba. Quando acaba. A dor acaba sem abra cadabra. A dor vaivém. A tristeza vaivém. O amor vaivém. A vida vaivém. Quanto vaivém! Quando morre, vaivém. Como é o vaivém da dor? Vaivém dos olhos; abra e fecha da rosa, o nascer e o continuar do sol porco, o vaivém do círculo. Vaivém da bola. O vaivém de tudo. O vaivém da dor. O vem da dor. O vai da dor. O vai e o vem. A casa tinha seu vaivém incessante. A cidade tem seu vaivém incessante. A noite tem no vem o sereno. O veneno também está de noite. A vida está de noite mais escura, os fantasmas estão mais cheios de medo, de noite o bom conselho dorme.

Conseguiram encontrar o caminho de casa. Apesar do mato alto, da noite que se acelerou no término da terra, apesar de encontrar nos seus próprios medos algo viscoso, apesar da tarde não perdurar para sempre, apesar do medo ser atento, retornaram vivos e cheios de memórias. A narrativa era a mesma; entre eles e elas, entre todos, entre os pais, entre as preocupações de morte, entre a saudade e a proteção, ao abrigo da luz e da lua, quando todos entraram em casa cheios de triunfantes sorrisos, a comida, pareceu a eles, muito mais, a água, a xícara, o café, o frio, a noite; a aventura de envelhecer subia a ladeira para a cabeça acima.

Estava sadio encontrar. Encontrar tantos animais assim, soltos; ver assim; amamentar a felicidade assim.

Atrasada. A lua trazia a luz marmela e flexível pela estrada de chão.

Pôde então encontrar sem brilho uma fotografia dela jovem. O tempo sem as malditas retas, a realidade como ficção dizia muito mais narrativas. Muito mais ciência nascem; mais ciência morrem. Quanto mais ficção, mais cronologia, mais glória menos humanidade. Mais humanidade, mais circularidade. Mais círculos, maiores as esferas. As criadas de passagem. As pessoas que ficaram até agora sem existirem, ficaram até agora sem existirem as plantas azuis. O céu verde partiu bem longe daqui o céu verde ainda daqui partiu. As pequenas primaveras, as primeiras aparições cessaram.

A primeira lua estava na janela saudável. A primeira tristeza estava com ela na rua. As vozes estavam todas soltas hoje. Uma seqüência infinita de números saíam da roleta para os rostos dos apostadores. A lua se abria dentro dos rostos, o sol queimava outros rostos lisos, outros velhos sonhavam com uma noite completa que nunca se configurava como um pequeno gesto de esperança. Uma tarde líquida, uma janela florida, um mar revolto, uma montanha suspensa, uma risada estranha, um corte no supercílio, uma varanda fria, um naco de bife, uma maldade explícita, um dia fervoroso, um dia longo, o preço a se pagar pelo quadro negro, uma perna branca, um dia sem nuvens, noites de chuva, a morte a espreita, a barca querendo virar, o salão repleto de fantasmas, o baile acachapado de álcool, muitos homens chorando, muitas lacunas vazias, muitas mulheres nuas, quase seminuas, muitas tardes brancas, muitos discos voando, muitas horas vadias, muitas horas sem encontrar a pequena estranheza, a caça acontecia serenamente até o pequeno fato aquebrantar os falsos sorrisos, a noite guardava os abraços apertados junto ao peito velho. Uma longa espécie de saudade pelos cantos da casa, uma saudade de ainda saudar o que vem. O que virá do famoso tutu, o que vai fazer o tatu, ou o tatui, que mar é este, que sete é este, que fileira é esta, que morte é esta que sai do cemitério, esbranquiçada pelos túmulos. Que dor é essa que vem em festa? Que roupa é esta? Em todas as canções, começo meio e finalmente o silêncio púrpuro. A despedida é longa, farta como um banquete, a despedida antecipa encontros. As palmas antecipam as mortes. O amor antecipa a vaidade. A vida antecipa o brilho. A tragetória antecipa a queda. A vitória antecipa a alegria. A cor antecipa os sonhos. A verdade antecipa a novidade. A criança antecipa a cegueira. O tempo antecipa os acontecimentos.

As rosas encontram as rosas no jardim. As rosas encontram os espinhos nelas mesmas. As rosas encontram roseiras nas palavras que ouvem dizer. As rosas estão crescendo de tamanho, entonações, matizes, solo, sol. As manchas na fronte, as fontes, a chuva pela terra, a chuva.

Uma poeira ali, uma pedra bem perto de cair.

As ladeiras somente paredes. Andar somente pelo espelho. Convexo, côncavo, plano, quebrando múltiplas irônias. Antecipando o tempo. Semipterno. Nada sem narrativas. Um olhar numa pequena tijela vermelha. Tinturaria das palavras.

O céu vermelho de rosas, as pedras caques; chão pardo, parco, sem outras cegueiras; as minhocas, uma locomotiva transitava pela planície salva de pedras. Outras cegueiras seguiam reto a vinda e a volta solitária.. O apito voava ora na vez do meio-dia, da veia fraca da tarde, na estação breve; dissolúvel; estridulava o som pedregulho do ferro vapor, acidente do estridente trilho, assim macia a vaca passeava pelas ramagens, talvez amarelas, talvez melâncolia cômica. Sair e voltar. Despedidas vazias e cheias. Cheias de som e vazias de ar (cacete e quente). A vida verde e mansa. A vaca simples, preta-e-branca.

Sujo polimento, nos cantos, no ar, nos olhos, no chão do assoalho, no trilho febril, dilatação sem suor.

O punho seco de cada bitola, a marca neta de escravos e operários, a poeira símbolo de todo sacrário, toda reza se faz embelezar; inutilidades não se multiplicam à toa, somam-se aos medos mais medos, aos moinhos mais águas, a saudade soma-se a esperança. Ficar no meio de estreitas sombras, parte, sorriso no ferro fechado e lacrado, parte a dor surda e verde do horizonte nunca chegante, parte a viola de luas e os ataúdes de estrelas, parte moscas em mosaicos culinários, parte sangue. A mata mela de delírios. Devaneio verde aberto. Borboletas aladas e secretas. Ao ouvir o ferro gemer de frio ou de calor, ao ver o ferro gemer e reter retendo o carinho atritato, borboletas abertas, semiabertas, semideslocada do reino natural, todo deslocamento de ar conseguiam encontrar refúgio no azul do verde, nos olhos do verde, nos lábios do verde, na encosta amarela das asas uma sedução fria. Noite ou dia, estrelas ou sol, água ou lua, risos e ternos olhares, percepção desatenta ou defletida, sabor. A lingua do trem bebia bitolas e mais bitolas até se embriagar da carne da mata, sangue sólido queimado e púrpuro, fornalha e método, a viagem descia sob a sombra e a berlinda de uma máscara felicidade. Acaba. Feita. Certa. Sim. O sino apitava aberto quando chegava a rezar, em contrapartida o trem apertava o passo retílineo e passava fazendo pai. As imagens da estação viajam. As palmas da estação abertas e fechadas. Os corações escutavam uma mão sozinha. As borboletas fechavam as matas ocre. As borboletas fechadas as asas paravam as matas. Nariz é o trem. Quem queimava os precipícios, onde feliz anda águas, dói os olhos e as bitolas. Dói a madeira se salvar; dói-se aonde está; o ferro transladado; a pátria e o solo se misturam sem se encontrar.

Pela paisagem passageira, pelos vidros, pelo chão marrom ou gris, pela variação de temperatura, pelo o vento que sorria, pela tarde que despencava, pela retidão, pelo aprumo, pela barca, pelo sol, pelas fotos, pelas memórias, pelas tragédias passadas, pela roupa suja, pela roupa quarante, pelos recados deixados no umbral da janela, pelo fogo amarrado, pelas matas algemadas, pela paixão cintilante, pelo ardor que sentia, pelo sono que sentia, pelos sonhos que não possuía, pela encosta ligeira descia sombras modestas e recatadas, pelo riso guardado, pelas vestes malfeitas, pela maldade dissipada, pelos cantos dos lábios, pelas horas restantes, pelo café passado, pela ponte atravessada, pela expectativa infeliz, pelas partidas perdidas, pelas palavras escritas, pela massa feita, pela região montanhosa, pelos regatos e riachos, pela seca, pela garganta, pelos braços nus, pela pobreza, pela miséria, pela imaginação, comiseração, inclusão, felicidade de diversos ontens caíndo pelo solo do magistério natal.

Uma voz entoou ali de cima, ali de cima dali para baixo, uma voz partiu ali de cima, de cima do peito, ecoou dali para frente. Uma voz ali ao lado, ali a trás, uma voz. Uma voz amarela, uma voz ontem, uma voz de amor, um sonho, um copo d’água foi dispensado do alto do prédio. Dos lábios partiram indecentes beijos. Dos beijos chegaram uma serena vontade. Da vontade ouviu-se famosos silêncios.

Ela estava deitada, descansando sem saber qual é o objetivo de tal atividade. Ela estava com as crianças na cama, costurando na cama. Ela estava grávida na cama, completamente grávida à cama, completamente pálida a cama, ela estava sozinha, as crianças estavam sabendo do que brincavam, e a brincadeira estava grávida e deitada. Ela tinha azuis carregados de mato, cheios de colinas, coberto de artifícios especiais, despertos e vadios, maravilhosos e voláteis, ela tinha decisão nos lábios, havia muita perna no ar, pela cama haviam inúmeras pernas pelo ar. Os lábios surfavam nas infinitas ondas de pele. Os lábios abriam como lençóis em dias quentes, estendidos e vermelhos.

Equivocar é saudável. Amar é equivocar-se sem dúvida, é o desacreditar na dúvida, é viver sem lágrimas póstumas. Sem passado, quem ama não pode ter passado, quem ama não pode ter futuro, o presente é engano, a dor é mensagem e destino, a felicidade acaba, a felicidade dá medo, sem sinal, sem coragem. A felicidade morre, falece, fenece, vai, consome, parte, deixa, esquece, encontra, sempre fala a juventude, a felicidade fala a juventude. A felicidade fala a velhice. A felicidade muda de endereço sem avisar. Sem cep. As vozes gritam. As palavras se apagam. O coração pára. A felicidade pára no ponto de táxi, espera a conveniência muito mais marrom que azul; muito mais verde precisa para colocar a felicidade a caminho do caminho. O muro empresta obstáculo, cria alívio sem cair e sem andar. A felicidade engana a si mesma, engana a imortalidade da juventude, engana os risos, os corpos, as mentes, as almas, a felicidade é trágica. Empréstimo doce, os homens se esquivam, torpor, tontura, menstruação, cólicas, a felicidade é vermelha, sangra, é hemofílica, sem uma transfusão feliz a felicidade morre. Quadro negro, quarto aberto, quimeras minerais descem pela terra. As histórias iniciam-se hoje felizes, no momento tudo é mais feliz, no ano anterior tudo é menos feliz, no ano atrás do anterior a felicidade declina sem desinências imperativas da memória e todos os recuos acabam não produzindo felicidades constantes, intervalos mutilados de memórias, espaço vago e recoberto, postula no tempo todas as antecipações, todos os acontecimentos já aconteceram. Morrer e nascer já aconteceu, viver e prezar já conheceu acontecimento e tempo, dor e desespero já se fez, pálido, embutido o corpo do hoje, pelo som do ontem, pela luz a viagem da felicidade inexiste. A água que desce em horizontal radical. A fundura da felicidade, a presa perna no cavalo azul dorme. A felicidade não sabe dormir, não sabe descansar, não sabe o que é a paz feliz, a felicidade não sabe o que é a paz feliz, a felicidade só sabe ser felicidade em presença, ocupando, invadindo, corrupções de felicidades pelos corpos plásticos de boneca de brinquedos fazem da felicidade um trajeto industrial divino ou humano, a felicidade é primitiva e contemporaniza muitilações felizes pela pele do tempo, os acontecimentos dos cânceres vermelhos e laranjas, as úlceras amarelas e lúteas, as brasas azuis de felicidade de uma fogueira, a floresta em chamas produz sons desconhecidos de felicidades. A vida é vermelha quase se acabando sem piedade, sem compaixão, sem solidariedade negra, sem as borboletas nada seria criado feliz. As asas artificiais de todo cérebro são ícaros pelo mar manifesto. É necessário dormir, é preciso dormir, é saudável dormir, é verdadeiro dormir e imbernar aqui e ali as cascas de laranjas, fazer chá e chorar, chorar o leite derramdo, deitado na lateral das camas, dos braços, das pernas, das mentiras, do amor. O amor promete feliz. Promete feliz mas acaba. Promete feliz mas não cumpre com plasticidade cinematográfica o que se fotografa com os olhos que queimam o instante em nuvens. Bancos de águas de todos os lugares verdes e azuis. A felicidade tem espinhos modestos e pequenos, mamilos menores do que espinhos, a felicidade não faz cria, não faz passeio, não faz chover no sertão. O olhar é sertão, encontra fundo raso e perdido — modesta esperança — impotênncia, esperança magra e artificial, uma goiabada vermelha sem queijo e sem mina. Toda cárie está feliz.

Primeiramente. A casa está vazia. Está fria. A verdade caiu. Tombou ali espectativa ativa. Velozmente toda saudade do mundo subia pelas paredes brancas, pelas paredes brancas subiam todas as árvores verdes, pelas paredes nuas toda atmosfera celeste subia para o teto, para as paredes brancas a saudade tinha uma cor tão grande, tão azeda, tão forte, aquele cheiro forte de saudade saía do ventre das paredes, aquele azul celeste subia e descia, aqui e agora, as paredes nuas sacavam suas armas pretas, aquele tilintintar dos garfos amarelos, aquele inferno branco, a saudade é sem cor, a verdade é incolor, a prisão é branca. A morte é azul, o fogo-fátuo branco, espumante pela cidade, da janela do carro se via a fumaça branca subir obscenamente. Quem via escolhia viver mais um pouco, viver mais um pouco não importando se o bem viver é completo. Rarefeito está o ar, estão os moleques da rua opinando seus gritos pelas alamedas sem entreabrir a cólera no peito sujo. As brincadeiras estão no chão, estão no chão esperando passar os pés que todos vem passar do chão para as calçadas, para as casas. As portas não tem opinião, não escutam nada, nem são surdas, simplesmente não escutam nada, as portas de madeira, as portas de ferro, as portas plásticas, as portas simplesmente não escutam nada. Elas até que tem grandes ouvidos, porosos, latejantes e sensíveis, mas mesmo assim, não crendo na virtude não escutam nada, guardam todos os acontecimentos numa memória compactada, sóbria, às vezes, depois de beber certos silêncios, depois de ver diversas pessoas, depois de encontrar preguiçosas pessoas, as portas depois de caminharem em ângulo, após interromper certas brisas, ou então, após encontrar certos sopros, delas os corações emitem sinais morses, alienígenas compreensíveis, por compaixão e distância, retornam em timbres diferentes variações da mesma conversa. A saúde das portas estão fechadas, estão em guerra, estão cansadas, estão com fome. As portas sentem fome e preguiça para lutar por comida, são finas pela ruindade da luta, são principais, estão no fundo, estão sozinhas e permanecem sozinhas, tirania e envelhecimento mórbido. Não podem morrer, não podem suicidar-se, o máximo que alcançam é a forma de morrer, mas não morrem, sem ajuizar-se do tempo, sem recorrerem as plantas nupciais não podem se reproduzirem. As portas são solitárias e ainda que quase assexuadas sofrem de janeiro a dezembro, de domingo a sábado, em todos os fusos horários, em todos nenhum lugar acolhe. Acolhe. Abrigo. Aviação. Planetários. Barcas. Pijamas escuros. As portas de todas as xoxotas, as plantas de todos gânglios, as infecções de cabeças são risíveis e enlouquecedoras. As portas foram enlouquecidas antes da morte chegar ao último capítulo das novelas. Antes de acontecer o que deve ser acontecido tudo foi olvidado. Os atores de todos os tempos são madeiras. Os cientistas de toda a história são ripas. As portas estão fechadas, quadradas. Os círculos correm redondo, mas não encontram a si mesmos. As portas não participam dos círculos, não participam seus medos, não destroem suas moléstias, as portas dormem entrecortando as dores, imiscuindo seus medos em navegações quase estranhas, as portas se queimam no fogo e no inferno se escondem chorando lentamente. Sem rosto que não significa sem feição, sem pulmão isto não quer dizer sem respirar, as portas respiram com dificuldade em dias quentes, permanecem paradas.

O mundo se acaba, todos; e muitos; estão seres. Muitos estão vidros e se apegam a falsas transparências. Quase todos mortos, sem desejar olvidar a vida vai. Quase todos os mortos ainda não estão contente em estar mortos. Os que voam, os que passam, os que andam, os que cantam, os que sabem, quase toda transparência pede socorro. Do outro lado da vidraça a menininha chorava, o carro com seu casco de cavalo tocava o asfalto sem nitidez, com muito brilho. As bolas paradas. A transparência parada. Em outro verso da transparência a vida fica. O tempo antecipa todas as transparências, o fogo-fátuo esbranquecido pela janela amolecia fogosos corações. Os corações transparentes, os cérebros de vidro, as mãos cajadas de dor, as platéias opacas, as multidões mentirosas, a praça redonda vela pelas noites. As estrelas transparentes, as diafanidades do pensamento são retidas e expressas em gestos. A menininha chorava até ele chegar, até encontrá-la chorando ela chorava cristalinamente pela rua branca. Até que suas lágrimas secassem, até tocá-la, até a porta abrir, até amanhã.

A chuva adiava a conversa de molhar. O chão adulava a poeira a chegar de mansinho onde quer que subisse, onde quer que descesse. Onde existir o tamanho e as dimensões razoáveis, onde existir fronteira, onde existir saudade, onde existiria o amor naquele lugar seco, onde estaria o carinho agudo das batalhas vencidas, em que lugar provavelmente aconteceria o fim do sol. A noite negra alugava o céu cheio de estrelas escondidas, guerrilheiras saíam caindo e escondendo. A lua não vivia. A vida perdia-se em calúnias. A morte começava a matar. De segredo em segredo, os grilos contavam.

A covardia sonhava na cama dentro da mente legal daquele velho. A menininha chorava sua última lágrima. A última lágrima criada. A última vontade ensuada. O verso vacilava, rima e narrativa, as histórias do tempo matam.

Ele encontrou na barriga dela uma linda criança. Reencontrou no sorriso uma satisfação arcanja. Se afastou da bola lentamente para depois chutá-la com força e muita coragem. As crianças brincavam na rua sem atuação das magias. Na roda a alegria estava em diáspora por toda minúscula cidade. A poeira e o sol se acasalavam pelas roupas. A manhã antecipava a próxima noite. Um dia azul cheio de estrelas esconderijas de luz, um dia quente, confusamente quente, um dia natalino para o cinema, um dia de imagens estouradas, escarniçadas novidades, as lendas das pernas desciam a rua plana fotografadas por todos olhos vivos, por todos os olhos proibidos, por todos os olhos o sertão fazia sexo.

A flacidez da carne esticada em cima da pia.

Uma quantidade exaustiva de opiniões em cima da mesa.

Um tanto de azul naquele quadro.

O rio descia sujo, sem formosura pelo leito árido e violento. Um rio, um quase rio, um quase nada, decorria descer. Tiros de água suja descendo lentamente pela planície preguiçosa. O rio sem sabedoria, sem peixes, sem reflexão, sem perdão. Descia ignorantemente a maldade, sem encontrar maldade nenhuma, sem fazer malefício nenhum, descia a maldade enudada e sem respirar. Descia sem matar, sem ser admirada, descia sozinha, árida pela planície majoritária. Descia sem pena, sem maquinar, sem se voltar para trás, sem morrer, sem matar.

O abdômen flexionou singelamente antes dele retirar a roupa. A porta se fechou, a luz se apagou, o banheiro se fechou, a água começou a cair. Antes dela entrar, pediu licença, no marco da porta, flexionando o abdômen a viu se despir momentaneamente.

Eu não poderia amá-lo, nem odiá-lo, não poderia deixá-lo, nem poderia ser amiga, não poderia tê-lo como amigo, não saberia tocá-lo sem amá-lo, não poderia amá-lo sem tocá-lo, não poderia sorrir sem delatar o choro, não poderia chorar sem os dentes, não poderia sofrer sem ter uma parte de esperança, não poderia esperar, não poderia morrer muito longe dele, não poderia beijá-lo sem beijá-lo novamente, beijá-lo todos os dias seria uma insandice, não poderia amar lucidamente, não poderia ser totalmente louca, não poderia ser somente louca, não poderia dormir todas as noites, todas as noites, todas as pernas jogadas naquela cama, os rostos colados, as vozes fechadas, o tempo plácido. Eu sinto um amor insuportável, insuportável olhos, toda nudez é insuportável, a minha ou a dele, todo beijo mata, todo toque destrói, todo carinho que sinto não pode acompanhar o que desejo. Desejo o começo de tudo, o início de tudo. Tudo começou assim, sozinhos um dia nos beijamos. Aquele beijo foi feliz, feliz demais, forte demais, um beijo, um beijo bonito, um beijo longo. Já não tem como parar, beijar se tornou uma quimera que se tornou eterna. Desejaria morrer beijando, nós dois na cama, morrer na cama, morrer no cinema, morrer. Eu estou morta, ainda sei beijar, ainda sei desejar, ainda o vejo, ainda o acho muito belo, ainda a beleza me fere, ainda tenho vontade de chorar, de me matar, ainda tenho sonhos eróticos, ainda tenho esperança, ainda tenho vontade, ainda tenho saudade, ainda tenho força, ainda tenho eu. Não é por muito tempo, mas ainda tenho tempo. Tenho tempo, segurança não, filhos não, sonhos só dormindo, felicidade é algo estranho, eu preciso de felicidade. Eu preciso viver feliz. Eu fui feliz, eu sou feliz, eu não sei se feliz é feliz, eu duvido quando estou feliz, eu duvido duvido feliz. Eu estou com saudade, saudade do tempo em que tudo tinha uma explicação convincente. Tudo; menos eu. Menos ele. Tudo é verdade e estranho. Tudo está morrendo e é estranho, está continuando, está escrevendo, tudo está vermelho, tudo está em paz, em paz, a paz é estranha. Verdade e paz, eu estou em verdade sem paz, sem ele, eu estou sem eu, eu já fui. Terei partido sem me ver partir, eu me parti.

Agora depois da divisão, da métrica perdida, depois que tudo aconteceu, depois que o desejo se realizou, e agora, sem chué, sem água, sem forças. Agora que poder poderia evocar, que saudade aguda, que medo que sinto, me faz inóspito, estou sem ar e preciso muito respirar. Preciso encontrar as forças, recuperar minhas lembranças, recuperar e chorar o que devo chorar, recuperar as forças magras, recuperar eu, aonde está eu, aonde está tu, aonde está o sol, o que procuro, o que encontra não me procura, não encontra em mim paz. Eu não sou paz, nem felicidade, não sou coração, deixei o que desejava na entrada, deixei na saída minhas forças, tudo se acabou para mim, sem amor, sem dinheiro, sem casa, sem carinho, sem lucidez, estou ficando louca, ficando mais sozinha, mais com medo, o medo me devora, me encarna e me prende em suas teias, eu estou morrendo, estou morrendo de alguma doença não médica, estou morrendo, morrendo, parada, estou sem conseguir amar, estou sem conseguir felicidade, estou longe, longe demais, estou longe da porta, das estrelas, estou longe da lua, longe de mamãe, longe de papai, estou infeliz, estou sem saber a criança que sou, estou criança, estou quase morta. Ainda preciso de respirar, de encontrar, de mudar minha aparência, quero ter uma aparência tolerável, queria muito sair pelas ruas e encontrar o que procuro, o que procuro, estranheza essa, estranheza vai-e-vem. Um estranho me aborda, um doce recai na minha boca, as nuvens caem na minha boca, os versos saem pelos meus ouvidos, estou esquecida, já não trabalho mais, já estou partindo, eu me parti e eu não vou me colar. Estou antiga, estou pobre, estou perdendo, estou fraca, estou sofrendo, estou sem meu amor, estou vendo a noite azul. Estou morrendo sem beijá-lo, estou sem beijar há muito tempo, estou morrendo primeiro, primeiro morrendo, depois tudo acontecerá. A noite está ali em cima, está comigo e me apavora, estou apavorada, estou e estarei morta. Já estou partindo, eu me parti e eu... não vou me colar...

Todas as alegrias estão correndo pela janela atrás do vento que se perde entre ribeiras e esquinas. As alegrias engendradas por aquele ventilador, as alegrias reagem em círculos, buscam como os urubus, sem bater as asas, içar-se. As alegrias começam a migrar. As alegrias são para o mundo. A alegria mansa. A verdade; nem sempre alegre; e muitas das vezes, feroz. A verdade, experiência amorosa, em qualquer tempo, alhures, toda experiência amorosa oferta preciosos instantes. O silêncio é redondo, sem aresta, sem persuação, o silêncio é manso e denso. Sem anseios, o silêncio se ouve. Primeiramente ouve suas próprias pausas, além do ambiente, do mundo cercado e cercante, além do cosmos ágil, além das estrelas surdas, além das nuvens pardas, além da dimensão visível, o silêncio se prepara para o devenir. O tempo hoje. O tempo amanhã é bom. É bom todo o passado. A memória tem suas preferências.

A vidraça iniciava a viver, após ser colocada, depois de certas horas rarefeitas, a boa chuva tanto fez companhia, quanto sonororidades.

As mesmas crianças pela praça deserta cheia de tarde. Na tarde de domingo a mesma repleção de crianças. No silêncio da cidade a fadiga premonitória da semana. Guiado, encoberto. O tempo vocifera lentamente, nuvens altas, céu azul, sol brilhante, desejo, melâncolia, maldade, fofoca, frangos mortos, porcos mortos, peru mortos, coelhos, capivara, boi, peixe, cobra, lagarto, rato, lesmas, baratas, besouros, grilos, camarões, ouriços, mariscos, todos mortos. Angu e quiabo, muqueca, leitoa, feijoada, frutos-do-mar. As mãos cozinham o domingo.

Esperando que pudesse ser apenas asas batendo advertidamente por um gato, que gato é esse, sem estas asas, sem as pequenas sonoridades.

Primeiramente, antes de mais nada, que seja o importante, que seja o imprescindível, desejar é o que antecede, escolher o desejo é questão proeminente. O desejo possível encontra o cenário a ser realizado. O desejo é o primeiro, o primeiro desejo é sempre o primeiro desejo, sempre é o primeiro desejo, o primeiro tempo é o primeiro, o primeiro tempo é, é sempre o tempo primeiro, a primeira aparição. A aparência do desejo permanece jovem. Desejar é a primeira e a última ama.

Tudo poderia ser assim, assim, um talvez. Então; talvez; tudo estivesse simples.

De frente a máquina, em frente ao espelho, enfrentar a máquina humana, enfrentar o zoom piscando, enfrentar o sertão de abóbodas celestes, enfrentar a tez ardil, enfrentar os lábios sonolentos, enfrentar a fronte tão próxima, enfrentar a pátria, esta casa parda, esta riqueza esvanecente, este tempo abreviado, esta vontade que não se interrompe. Mutilar as unhas, aquebrantar o rosto magro e severo, recorrer as bochechas coloridas feições, recorrer rapidamente a magia laranja de um sol sublime, recorrer nas horas vagas ao sertão passageiro (sertão e queijo), descarnado, viril, vaticinado, escolher o riso, recolher o fardo, acompanhar as mudanças, amar as bestas, domar a metade da maldade, domar incompletamente os desejos, insanamente, subrepticiamente, morrer feliz.

Pergutaram do que se tratava. Trata-se de câncer, aids, psicoses, vergonha, avareza, bulimia, gravidez, solidão, fome, cansaço, felicidade, depressão, terra, homens. Da verdade e das neuroses, trata-se de amar, de amar sem lugar contíguo, amar sem oprobriedades do cotidiano, amar sem faltar de mais, sem tratar de menos, falta amar sem recibos, sem histórias, com estórias (narrativas desprovidas de vírgulas), amar tratando do tempo como se este ente inexistente inexistisse aqui e acolá, jaz então o tratamento perfeito, jaz então as últimas e as primeiras esperanças, tratar sem impotência, remédios somente os da memória, trata-se com tradição. Trata-se sem metro. O olhar está certo, os olhos estão vendo, em cada objeto, em cada gota de luz aparente nele uma atitude de alegria. Trata-se com alegria, com descaso, com desejos, com liberdade, trata-se de alimentar, de recolocar no corpo e no cérebro serenidades.

Nos corredores as veias encandescentemente de sangue iluminam cada porção do corpo.

Na primavera de todo inverno, nas rodas do sol, os amarelos das faces, a lua farta de tanta branda luz reluzia encabeçando o céu com muita formosura, feições de véspera, rostos de noite, altas nuvens pacientemente sofridas lá em cima, aqui em baixo, somente o sol tácito, sem escrúpulo, sem medo. Tudo acontece sem medo. Tudo encontra o fim, verdadeiro ou falso, sombrio ou transparente, as sombras estão verdes, pretas, sozinhas e muitas crianças berram brincando ainda mais. Este cinza no céu, este azul, este verde, este tudo é um mar. Só se pode encontrar vocabulário se se procurar no dicionário o coração, o cérebro, o corpo, o corpo começa alternar suas fronteiras, as terras do tempo, as mesas de jogo, as partidas, as vozes, o medo é longo, feito de chumbo, feito hoje e para sempre muitos amanhãs acontecem de bruço, viva o buco, as almas estão mormente todas mortas. Na imensa escarpa solitária nenhuma viva voz, na planície limpa sinais de paixão.

As coisas são contentes. Do jeito que são. Contentes. A tristeza subtraída, certa superação, certa saúde superando de perto sofrimentos. Mesmo que seja num tempo próximo, indevido, esvanecente, sim, num tempo urdido, uma subtração, um contente perdido entre árvores laterais. Está tudo contente, alegremenmte contente, está tudo exalando risos são; as coisas são; são melhores e maiores, as coisas são alegres e verdes, algum amarelo, algum azul, algum vermelho. As cores são contentes, são saudáveis, são antigas, são as mesmas que me mataram na noite passada. Eu era pintor, não sabia que estava sendo pintado, estava sendo morto pela tela e pelo pincel alheio, estava sendo retratado sem doçura, estava de folga e não percebi que ele me pintava salientando tudo que via.

Começaram a tomar a sopa rala na calçada fria.

A roda das pernas estavam nuas, separadas uma das outras, arbustos negros e uma gramínea eriçada, as bolas dos rostos encurvadas uma sobre as outras, um conjunto de vontades sadias e doentes por sobre as faces rugidas de vermelho, as mangas das mãos, os dedos lisos, sentidos maiores, fundos menores, sombracelhas azuis e velhas, memórias ausentes e presentes no tempo uma abóbora majestosa circulava as costas rasgadas, cortes de papéis pela sala resfriada, doces pelo chão, a geladeira aberta, a garganta cortada e arrancada, os seios trancafiados debaixo do lençol, os lençois debaixo da noite e o sol coberto de coleções de estrelas vermelhas, pólvora no chão, sangue de alegria pelo chão, rugas azuis pela orla branca da cama, as camas gritando por toda casa, as panelas esquentando seus genitais sobre as trempes, as nuvens na banheira, os tapetes deitados e cansados, abatidos pela poeira negra da poluição, a noite engordava apesar de fazer ginástica. O desejo iniciava o jogo e os quadros do medo matavam o desejo atrás, o desejo iniciava pela manhã, na tarde, entre família, entre amigos, por entre amigos, por entre mulheres e animais de porte médio, entre os animais rastejantes, entre as pulgas machas, entre as baratas, os ratos, as borboletas paradas, as bolhas de sabão acordadas em cima da pia, as pistas perdidas, as coisas cansadas trabalhavam em hora extra, sem remuneração desciam aquelas lágrimas, as primeiras perdidas, as segundas escutadas, as terceiras mortas, as pastas das pernas fechadas, os risos contidos, as bocas suadas, as mãos desciam encontrando interruptores, interlocutores estavam dispostos e maduros, os desejos estavam saindo andando em ziguezague, os desejos infantis, os desejos começaram abrir as portas, as alegrias estavam todas ali, estava ali, as formigas, os pernilongos, as doenças acordadas até a madrugada começar a fugir, até a lua esconder tudo se encontrava de noite, tudo se perdia e se permitia adormecer sem dormir, não sem dormir, não sem sonhar, sem morrer, sem namorar, sem fazer amor, sem fazer as dores começarem por entre as cobertas viciadas, por entre as partidas de xadrez, pelas mortes, mel e o mate na xícara, alguém alcançava as músicas, alguém consumia os tambores, as vilas perdidas, os carros delatados, as prisões cheias de novelas, as mesmas revistas, as coisas corriam agora, as coisas corriam antes.

Estava sozinho, eu antes estava sozinho, sozinho e pelado cheio destas coisas que acontecem sozinhas, estava fazendo as coisas abertas e as coisas fechadas, estava querendo abrir os modelos, abrir a coragem e chorar fundo no ventre dela, chorar assim, enfiando assim as coisas lá dentro deste mar, dentro dos prédios tortos, enrolar as rugas flácidas, adentrar e mexer assim e assado no forno, assar espíritos, queimar as almas nas águas quentes de gordura, fritar toda a coragem possível em óleo comestível, perverter as vidas, perverter o máximo e o mínimo se somar assim sem tábuas, sem produtos perdidos, sem rasuras, com todos os tipos de vontades, com todas as tristezas no coração, saber no barco, deitar no barco, afogar no barco, afogar, eu quero me afogar, me matar, deslizar e sair deste tédio, sair de casa em casa com bolsos cheio de balas, sair de casa e sair e matar o primeiro, a segunda mulher que eu ver, matar e estivar a dor sem carregá-la muito longe, sem saber o que eu estou fazendo, fazendo as loucuras criarem mais loucuras, matar a sobriedade, matar o gelo, matar a vida e os icebergues, matar as dimensões visíveis, matar as estrelas, me enterrar catalepticamente na cama, sem saber o que é assim, saber vê-las morrerem e sentir prazer na morte delas, matá-lo por ciúmes, matá-lo agora e sempre, matar o cigarro e os corpos negros, matar os corpos brancos, matar a vida e não viver, matar e catalepticamente entrar na cama e nunca mais sair pelas ruas, sair bêbado, drogado, sair com as xoxotas na mãos com os pintos sair do galinheiro, sair com os gansos furiosos, sair com os cachorros latindo, latindo como as vacas cagando, sair rastejando pelo ar, sair voando debaixo da terra, sair vestido de alma, sair e encontrar os mortos, os mortos felizes, sair e encontrar minhas esposas mortas, matar minhas esposas, matar meus filhos, trepar com minhas filhas, sugar seios e verdade, sugar e matar o leite que se derrama, sugar a terra até acordar todas as pessoas bem nascidas e bem morridas, matar as primeiras ao nascerem, matar lentamente o bebê asfixiando até que cesse seu choro e comece o meu, matar e começar a chorar para matar meu choro, matar meu corpo, matar obscenamente deus viado, matar as rezas, as primeiras entre altares frios, matar e incendiar os mortos, eu quero me tornar um morto, morto, matar as primeiras comunhões, matar os padres, os budas, os limpos, matar os pensamentos, matar e encontrar em banquetes explícitos vozes lindas, eu desejo as vozes lindas, as vozes cortadas, matar a luz, a luz que ilumina, matar o silêncio, estardalhaçar as vovós em torturas lentas, jogar areia no ânus, jogar ácidos em xoxotas, jogar frieza e matar o calor, matar o fogo consumindo, matar as nuvens ali de cima, matar os rios, matar os miseráveis rapidamente, fuzilar os pobres com piedade dos céus, matar os ricos entorpecendo suas amizades com coca, cheirar cola até morrer, beber até morrer, bem antes disso, matar o gozo sem verdades, matar a verdade sonhando verdades outras e derretidas, matar a beleza com o grotesco, matar a espera, matar e dormir até dormir catalepticamente até o mundo acabar, matar o mundo dos heróis, deixar a vida a somente aos covardes, fazer sobreviver a tristeza, fazer da alegria uma prosa material do próximo assassinato, matar os assassinos, matar e eu estarei morto, eu estaria morto, sem desejar estaria morto, melancolicamente estaria morto, triste na minha casa, estaria morto mais rapidamente se encontrasse alguém que me colocasse a morte nos lábios, me encontraria feliz se pudesse possuir instantaneamente meus sonhos, os meus sonhos ardidos, estaria sonhando se pudesse matar a mim mesmo várias vezes, estaria feliz se pudesse matar elas novamente e os gritos fossem contínuos filmes, estaria feliz se pudesse encontrar debaixo da cama os poetas insanos, se pudesse fabricar poemas polidos, se pudesse encontrar as palavras estaria ainda querendo viver, eu não quero mais viver, não quero mais desejo algum, quero os cortes das carnes, quero as partidas, quero as vitórias em guerra, quero as pistas negras, a prostituição infantil abertamente para todos, para crianças masturbarem umas as outras, quero as crianças trepando com animais, quero as mães assassinando os homens e casando com seus primos e seus filhos perseguidos por desconhecidos amados, quero as crianças sujando as calças, quero as crianças matando as crianças, quero a culpa de matar e continuar matando a culpa, matar as noites infantis e matar as belas mulheres com seus filhos no colo, matar antes que elas o façam, matar os animais apenas para matar a matança, matar o mar e os rios, matar os córregos, matar as plantas, os desertos, matar agora e sofrer nunca, catalepticamente dormir.

Um monte de cachorro, um monte de bosta, uma porção de coisa ruins, assim, assados, são, uns tantos tons, uma quantidade de perfeição naquele corpo pequeno, sem favor, sem pedido, sem coroas. As manhãs ensinam algo mais claro que o sol, este sol, os corredores negros da noite, as madrugadas azuis. As nuvens estão encostando uma nas outras. Abriu a janela de abril, abriu a chuva de dezembro, abriu as águas de março, abriu fevereiro sem carnaval, abriu outubro sem nenhuma criança, abriu as festas de janeiro, as folias de junho e julho, abriu os padres a missa, abriu rezando o dia, começou encostando na reza sua raiva, sua doçura primeira, abriu a boca e encostou no paladar as melhores gotas, abriu a lata de azeite com um diminuto prego. A salada enfeitava a mesa antes de encontrar a tarde.

Iniciaram. Ainda jovens; porém, já não mais burros. Coragem sem sabedoria, pernas sem pés. Rosto sem expressão. Solidão sem inspiração, dor sem experiência. A pobreza saía de carro.

Comecei a amar quando cansei de amar.

Aonde está a tristeza? Que tristeza é essa! Vamos acabar com essa tristeza gente! Vamos acabar com essa alegria! Que alegrias são estas gente! Vamos acabar com estas mortes! Vamos acabar com tais amizade! Que amizade é essa! Vamos acabar com estes inúmeros sorrisos! Vamos acabar com os números! Que números são estes!? Vamos acabar morrendo. A pátria e o corpo. Vamos acabar esquecendo de tudo. Vão acordar, precisando acordar. Vamos ver os copos repletos de sol. Vamos acabar chorando. Sem doenças. Vamos acabar sem os espíritos. Vamos acabar assim. Nus. Entorpecidos de afetos e secreções. Vamos acabar maus. Vamos continuar ainda maus. Vamos sair desta platéia lógica, destas mudanças pragmáticas, vamos acabar objetivos. Perdidos. Vamos acabar incitados a nos matar. Vamos acabar corrompidos a amar. Vamos acabar amando. Vamos voar. Vamos viajar de avião. Vamos ruminar. Vamos sair. Vamos acabar primeiro em segundo. Vamos falar primeiro sobre o segundo tempo. Vamos ficar entojados. Vamos ficar amando. Vamos ficar vazios. Vamos acabar mudando de alegria. Vamos acabar mudando de tristeza. Vamos acabar acabar mudando de amor. Vamos varrer a sala. Vamos sujar o quarto. Vamos questionar a seleção. Vamos perdoar. Não vamos perdoar. Não vamos ter o que perdoar, não somos capazes de perdoar, não podemos perdoar, não temos o que perdoar. Não temos cura. Não temos doença. Não temos deuses. Não temos tempo. Vamos falar a língua dos anjos sujos. Vamos amar a sujeira. Vamos fazer a sujeira. Vamos fazer maldade pelo mundo. Vamos estuprar. Vamos torturar as crianças. Vamos operar os imbecis. Vamos matar as mulheres. Vamos deixar com fome os bebês. Vamos matar os médicos. Vamos estuprar os padres. Vamos torturar os homens, vamos deixá-los com sede e com raiva, vamos tomar o dinheiro deles, tomar o trabalho deles, vamos escravizá-los, vamos matar os policiais lentamente, vamos deixar as crianças enlouquecendo, vamos maltratar, vamos nos tornar maus, pregar a maldade pelos quatro cantos, vamos derrotar as palavras, vamos impedir as ações, vamos dominar os animais, vamos matar as baleias pelas mulheres, vamos poluir com riquezas e bravura o mundo. Vamos acabar com este mundo. Vamos destruir a lua. Vamos. Vamos ser maus.

Um bocado de torta no firmamento do paladar.

Ficou assim; desenvolvida; branca e amável.

Começaram a contar os grãos do deserto. Não havia lua quente escondida. Não subiria na praia o vento desperdiçado. Havia na encostada impurezas e solidão. A saúde estava laranja. Mercúrio ria da terra. Brotos de vegetação litorânea aqui e ali. O sentido do silêncio era tamanho e inequívoco. O entardecer secreto. Remotocidade no ar. O bicho de pau na sombra, permaneceu assim, até o sobrevir da noite.

Eu contava para todo mundo que se ela me largasse eu me mataria. Assim ela o fez e eu me matei rapidamente. Ninguém me contou com seus lábios. Ela me contou com os dela, eu me matei com os meus. Eu me matei para poder morrer. Eu morri, no meu lugar morreu eu, no lugar de mim mesmo morreu quem pensei quem eu era. Eu morri e era, morri sem lamentar, sofrendo, temendo. Morri ficando morrendo aos poucos, morri enfrentando meus lábios de manhã até a noite, eu morri cheio de saudade, morri cheio de vontade de viver, morri e a assim senti que meu lugar estava tomado, eu estava tomado por eu mesmo, estava tomado e cansado. Eu morri na manhã de verão mais tênue que já conheci. Foi uma manhã de outono, era o inverno que temia, mas morri no outono, mas os lábios dela me falaram na primavera, na primavera que me largaria. Acreditei na primavera daquele ano, acreditei ver tudo mais sagrado, primavera. Eu me admirava em demasia, ela se admirava em primasia, eu me dividi entre morrer e viver, escolhi e morri o mais rápido impossível, eu morri então no tempo que acontece. Eu morri velho com minha mãe do lado da minha cama fazendo sopinha verde para mim. Ela abriu os lábios flagelados, ela abriu a caixa de ferramenta da minha família e matou minha família. Fiquei aliviado. Depois foi minha vez de atirar todos os bumerangues disponíveis na janela da família dela, eu me dividi, morrer e viver, escolhi morrer. Estava sentado vendo as primeiras participações da primavera nua pela janela. Estrada e janela. Eu estava participando da primavera, da primavera da janela, na panela e na estrada, eu estava participando de uma primavera.

Você mostrou minhas vísceras; no entanto; eu não senti dor. Não tinha dor o que sentir. Vísceras e dor, não combinam com primavera. Os outros sonhos, os outros são outonos.

Eu contava o mundo, delicado em suas vestes, eu contava as flores, os jardins, as rosas brancas, eu contava as horas paradas, contava pensamentos dentro do cérebro, eu me esquecia de somar. Sem os cálculos dos meus rins, sem meu rosto flácido, sem minhas alegrias, este cérebro gelatinoso, poroso, estou sem as refeições da memória, estou emagrecendo, caducando, esvaziando, me tornando burro e vazio. As lembranças se esmaecem perigosamente, elas vão para onde não mais consigo avivar. O esquecimento engorda e eu emagreço ridiculamente. Começa-se do cérebro e termina nas mãos, a mesma magreza da infância me acompanha até hoje, mais pálida, mais rancorosa, mais velhas. Estas mãos que seguram xícaras e facas, que cortam o dia junto ao corpo plácido, as minhas mãos são menores do que o tamanho que se vê, elas são pálidas e sem sol, são tristes e aborrecidas, não contam piadas, gesticulam pouco, quase sempre deitadas em algum lugar, paradas, com suas falanges doloridas, suas palmas rosas já não existem mais. Deitadas na cama, abrindo um poderoso livro, descascando uma mexerica, coçando os ombros, alcaçando os cabelos, talvez, as minhas mãos sejam minhas pedras tristes.

A grande gruta estava presa naquela montanha verde.

Eu estava sozinho, e isto parecia sinal do mundo. Estava cansado mesmo. Deitado na cama mas não deixava de andar pelas ruas do meu interior. A madrugada estava gripada de nuvens, o frio era feio mesmo, machucava todos os lados do meu coração.

O prato aberto na mesa, limpo, vazio, esperando, vazio, limpo, deitado, junto com outros de igual vontade, assim na mesa pronta havia uma lamentação quase surda que espinicava no estômago de todos. Juntinho, talheres e copos, perdidas estavam as colheres na mesa, a concha, o jacaré, azeite, limão, as cores, na mesa exposta imposta impunha a toalha branca. Os amigos são tão estranhos!

Alguém latia e não era um cão.

Encontraram a primeira pessoa, não havia mais ninguém.

As luzes estavam acesas, mais acesas e mais frias do que o costume religioso da região. No quarto áspero havia uma enorme cama de prata, ou era alumínio, de longe não soube dizer. Disse a ela que estava cansado e que já não podia mais ficar acordado. Não podia ainda se calar, bebia ainda que não sentisse mais nada. Acordada, acordado, quase que dormia. Estavam enxugando a décima garrafa. Ainda era cedo para comer. A tarde vacilava em transformar os homens em lobisomens. Lua cheia, e todas as outras estrelas pálidas. O céu tem suas memórias, charme, profundidade, perfil, voz, cintilância, o céu tem seus precipícios, tem suas cores, jovialidade, eternidade, tumor. O céu é poderoso. Muito poderoso.

Eu estava grávida e ele nunca me perguntou porque. Eu estava sozinha, sem ninguém, e ela nunca quis saber o motivo. Eu estava triste e nunca enxerguei a causa. Agora é tarde e a vida continua. Sempre até acabar, contínua e diáfana, até findar seixos, água, secar a fome e plantar a transparência na terra. A beleza pode nascer corpórea ou não, a beleza pode sobreviver ou vai, pode acontecer ao contar os dedos das mãos não encontrá-los mais presente, pode acontecer e acontece desaparecer. Os dedos conseguem sua fuga e a mão não sabe de nada, não sabe como acordar na manhã seguinte, mas ela acorda e encontra desaparecidos seus próprios dedos. Inacreditável é o ver que se vê partir. E parte, os trens, os carros, os pensamentos, os dedos, os medos nem sempre podem partir. Você não precisa partir, para partir. Sempre estás, em todo presente, esquecido ou não. Você não precisa olvidar; beleza e luz; estão em todas as partidas. O rosto corado fica calado e aberto na face vermelha, sepulcro de pensamentos e sentimentos aceitos, não aceitos, desaceitos, regorgitados. O homem abre a porta, abre o céu, o homem se abre menos ou mais, mais tarde se conta sem os dedos, sem apontar.

Sem dedos eu posso sorrir, eu posso viver sem os dedos, sem os dedos eu não posso contar. Não posso contar o que se passa, o que se passa pela manhã de nuvens magras, o que se passa. Ferros e ferrões, esta formiga me pica na mão, sangra minha mão, se alimenta de minha mão antes que eu a mate, eu a mato com minha outra mão, sem meus dedos, não posso tocá-la. Não posso sofrer com os dedos, somente com minhas mãos, como é pobre minhas mãos, é apenas minhas mãos. As mãos dos corpos. Peças dos corpos.

Esquecidas.

Malária, tuberculose.

Estaria tudo começando. Só existiria inícios.

Um pouco de reflexão, obnubilar as famosas forças, atrever a ser.

No pasto tardio e suculento, o sangue verde cagado pelo pasto verde, o sangue não fede, derrama lentamente ou ferozmente, tudo depende do corte, da brutalidade alcançada, o que se almeja, invade (dentro de nós), o nosso curral fechado.

O som se alastra em seqüências terríveis. Os cantos das pequenas tardes negras, os primeiros socorros do sol assistido de lua.

Canoa no leito do meio-dia, no vime do rio, no marco do silêncio, no som, zunido e percepção. Sensibilidade grave. O balanço das pedras.

Este sol que agora arde sem nenhuma sombra.

Esta vida começa assim, sozinha, sem companhia, sem enxergar o começo, doendo aos poucos cresce e amadurece. É preciso conhecer a ação, conhecer quando é preciso começar, mesmo que o laranja se apague, mesmo que seja mais difícil chorar depois de tudo acontecido, mesmo depois de tudo morto, inerte e sem projeto, mesmo depois das horas mortas, mesmo depois da inês morta, é preciso sorrir porque a vida ainda não morreu, é preciso sair de si mesmo, sair dele mesmo, ela mesma já está ausente, a grande frieza existe e não se apaga, começa e encontra. Quando as coisas começam já não é mais possível parar, nem mesmo com a felicidade ou com a alegria. Não é mais possível parar a alegria de ser alegre, ela esbanja seus dentes pelas rua mortas, sujas, pequenas, cheias de carro ou cheias de gente, não é possível desfazer da alegria, fazê-la ficar desprovida de alegres sons, a alegria é alegre até quando os olhos derramam suas hidrelétricas.

Embora a leitura seja nem sempre simples ou quase sempre o contrário disto, a alegria está alegre para quaisquer olhos amorosos. Estes, nem sempre o são, embora quisessem ser o que a alegria é. O amor não pisca, nem o sol cochila, nem a lua canta amarelo, nem as ondas balançam, nem amanhã e nem hoje, adormecer num conto de fadas, adormecer sozinho em uma cama plácida, atrair quem se ama, matar quem se ama, amar, amou, amar e continuar amando, continuar o amor, continuar amando e matar a todos, matar as palavras presas, matar as palavras que nos ferem, que nos consomem com suas ações mundanas. A vida das palavras, a vida das palavras azuis, a vida amarela das palavras, a vida e a branca palavra dita sem nenhum resultado, a vida verde das palavras doentes, a vida preta das palavras paralisadas, as palavras enterradas no travesseiro, deitadas nas camas sozinhas, as palavras tristes, as palavras vermelhas escorrendo como sangue pela boca violenta, as palavras roxas depois de tanta luta, as palavras pálidas no quarto do recém-nascido, as palvavras cinzas na hora do almoço, as palavras que ficaram senis.

As palavras começaram a cair dos tetos.

As casas estavam estendidas para o sol e para a chuva.

O sol e a chuva machucam: o barro, a pedra e o ferro.

O sol e a chuva ilustram sorrisos, desespero, verdades, fremidos, gozo, beatitude, bonança, morbidez.

As gavetas guardavam jocosas bagunças. Não havia silêncio dentro delas. Todas as coisas diziam ao mesmo tempo o que desejavam. A madeira escutava, compreendia, lutava, cedia. Não havia nada mais verde do que aquelas gavetas. Não havia risos amarelos dentro delas, muitas miudezas, uma repousada sujeira, algumas fotos duras outras moles, havia diversos corações naquelas gavetas, uns vermelhos outro mortos.

As portas redondas circulavam pela cidade.

Admiração. A admiração inclui o amor sem odiar.

O encontro é corpo. Sem falar, sem mexer, sem os olhos abertos, o encontro está deitado. Tem hora certa para acontecer, hora certa esta para fenecer. Embora seja um encontro que nunca havia acontecido, embora seja um conflito cuja a fama soletrará o dia, o encontro é sem diálogo, sem palavras mansas, nem palavras ásperas, nem vento e sem água. Não precisa de cobertor, nem boas flores, nem gargalhadas, nem sorrisos amarelos. Sem caixa d’água, as vozes dormirão. Os ouvidos estão surdos, o boletim é maravilhoso, o céu vermelho ou sangue, azul ou estrela, cinza ou asfalto, o céu encontra o corpo, e quem o encontra marca encontros. O próximo será. A tarde ou de manhã ou a noite. O encontro tem linhas, afinidades, plantações ou tem coca, tem remédio farto e obscenidades várias. O cérebro sem pensar, formosura sem arrumar, escuridão e clareza, uma narração silenciosa.

Os sinais de amizade nascem para nunca mais acabar.

Futuro e memória, latim, taças negras, cor e cheiro, resíduos e vestígios, sinais marcantes, indeléveis, inexoráveis, imanentes, tem particípio e não tem verbo, tem crueldade, fealdade, sofrimento, todos eles cozidos em besteira morna, em esperanças hipócritas, em medo.

A admiração pelo medo é sábia e benfazeja. A admiração é uma pequena ou grande procura, pequena ou remota esperança, futuro e presente, com palavras e sem vazios. A admiração visa o bem somado. O outro sem resgate, sem assalto, sem chantagem, sem seqüestro. A admiração ilumina os olhos que descem as portas. Os olhos enxergam o que há no espelho. O que há no espelho?

Um pequeno relógio mágico levantou cedo. A varanda pequena marcha alegre. As samambaias eram todas verdes. O precipício é o mesmo. O fundo é o mesmo. O abismo é o mesmo. Inexistências

Os homens com quem se calam as mulheres, as mulheres com quem falam os homens, as mulheres com quem dormem as crianças, os homens que não podem dormir com suas tragédias, os homens que sem falar escondem as crianças, os homens e as mulheres, as crianças e os velhos ainda velhos, não é sonho, ao acordar todos estão ainda, e bem mais ainda, ainda que velhos, escravos. Os bebês idosos. A velhice conhece os melhores dias numa gravidez doce e tranquila.

As vozes calaram e se somaram ao silêncio sem desperdício. Muitos corpos deitaram, mas pouco foram os quais levantaram silêncio. Entre a esperança e o barulho havia uma conserva de som. Fechada, sem portas, sem peito, sem firmamento. Um corpo pode fazer amanhã. O corpo pode fazer hoje, e pode fazer o já, o corpo pode fazer o sentimento caminhar para sempre.

Havia uma medida estreita que nascia após ao nascimento. Um dia cinza e nublado, nuvens verdes, uma tempestade azul, no rosto deles a felicidade tinha velocidade.

A porta do quarto estava aberta. O silêncio não invade ninguém. Permanece. Apesar das batidas sub-reptícias do coração.

Ruas tortas de calor. Poeira, e uma constelação de crianças azuis brincavam na sujeira sem o menor constrangimento. O carro revolvia a paisagem. A pradaria cinza, o céu absolutamente amarelo e quente, o rio descia engasgando metro a metro. As águas marrons, o cheiro morto. Na encosta e na ribeira ossos de vacas, couro e muita solidão laranja. Os corações abóboras estendidos pela poeira ardente, as pequenas casas, a pequena lápide. O mar sem fazer som, sem chiar e sem nudez. O mar estava memorável, sem cor é verdade, dormindo deitado sonhando. Enquanto o rio ardesse em chamas, enquanto a vida fosse somente mortal, o sol não podia apenas envelhecer.

A escada chegava até a areia da praia, a areia chegava até o mar e o mar, reflexivo, tocava díspares continentes. A lua maravilha branca do céu. Branda, não aquece e nem queima a pele. A lua circular boiava o brilho em retinas deitadas na cama. O menino multiplicava a lua criando um falso foco. A tristeza se afastava do quarto e ia encontrar a lua.

Esta constelação de linfas, o tempo na trajetória de centelhas. Negritude ou vermelhidão, o sol dispensa o amor e mesmo assim aquece o termo mais próximo ou não. A estrada fere a verdade sem aumentar a distância. O dia é antes da noite e depois da noite. Sem ele tudo é escuro sem lua. Sem o mel o melado seria outra coisa. A pior selva é o mesmo amor, o pior medo é amar ou não, a melhor vontade soube dormir ainda a tempo, um pouco dos nomes novos, os múltiplos risos, esta vida larga, as gotas do oceano se encarregam de coisas muitas, os versos vão caducando quando chegam ao cérebro, que lindo coração. Era hora de saudar, de ver as pessoas andando, as roupas começaram a encarar os corpos de uma maneira diferente. Estes rosto velhos, esta saudade latente, jactante destas perdas irreparáveis. Assim o encanto está nu. Lapidar, lapidação, aurora e sorrisos. A face vale aqui de noite uma expressão lua, um sorriso de estrelas continuadas, caídas não sem a velocidade, está movimentando o tempo em lacunas, o enxerto cego da dor em lugar de outra coisa, o sim é meu som, a batida vendida de um coração que não encontra escada para subir, mas sobe, solta o ar dos pulmões paralisados neste peito mesmo, cheio de seios sem saber do leite. Nesta vasta planície onde o néscio sol marca o rosto de uma menina tão farta de juventude. O muro está verde e a memória está mesmo amarela. As mãos estão cheias de rugas, as histórias da velha que faz o cural em fogão de lenha. O doce de leite azedo e escuro dentro do tacho de cobre avermelhado. As almas são como os doces, antigas receitas. Os dedos estão assim, apontando para algum lugar que não se pode pegar, do qual não se pode ver as suas felicidades. O riso é o cão da felicidade. A paz é uma onça descansando num galho alto de uma árvore ensolarada de copa. Os animais enjaulados no coração começam a encontrar a partida. O habitar está cheio de uma alegria medrosa. As folhas que estavam cansadas de balançar caíram no chão sujo. Encontraram a tarde e a noite bem pertinho uma da outra. O silêncio cinza das nuvens marcaram o verão daquele ano. A primeira luz que se apagou foi o sol, as outras, as de dentro da casa a chuva fez por onde apagar. Deitaram na cama sem esconder a distância que sentiam. Os sonhos começaram a aparecer já quando a lua no céu apresentava a tragédia em inglês macarrônico. A madrugada captava serenidades e uma quantidade grande de brisa não podia cessar de vagar, havia muitas auroras a nascer, um tanto de lã caído por cima daqueles corpos, o mundo mudava as rotas e os mares, e os rios, e as cachoeiras, os lagos, as lagoas, as caixas d’águas estavam secas, os sapos estavam sós, na rua novidades da juventude eram trazidas de novo, um tempo antigo no tempo presente, à moda dos corpos, nos portões de suas casas sem o charme e sem segurança, as meninas começavam a namorar.

Acordou sem o sol dar bom dia. Sem o sol dar bom dia levantou o rosto depois de lavado, o espelho no lugar, sem maltratar o lugar e nem o espelho, sem maltratar o sol, um pequeno palavrão ecoou de lado, o cérebro de soslaio contou a primeira novidade que pode obter. As janelas estavam claras e a rua sob a enchente solar precisava de chorar. As lágrimas e as últimas. A primeira moça passava a rua e nudez. Sob as coisas invisíveis, as pequenas intenções suavam. Aquela moça chegou ao fim da rua por milagre, sem a pressão baixar por completo esperou por quem a acompanhava.

Não havia galhos naquela árvore.

Sem galhos naquela árvore.

A novidade aconteceu enquanto dormia. A cama dormia. Os lençois, os travesseiros, a colcha, o cobertor, a camisola e o pijama trancafiados no armário.

A primeira era: “Não ame sem ser amado mais, não doe sem ser doado mais, não veja quem o vê sem ver, não comece começando, aceite as próprias dores sem aceitar a dor, aceite a morte sem morrer, ice a esperança no abismo e deixe que ela caia gritando, comiseração, força, planos. O garoto e o menino eram as mesmas pessoas, mas a menina e a garota eram pessoas bem díspares uma das outras. O juízo e os fatos estão nos jornais e com indecentes homens. Quem toma as decisões não querem viver bem, fazer a justiça, que coisa triste é fazer o jus da justiça humana, este roubo, esta vida. Saber e sofrer não está aqui, muito longe eu me agrupo sozinho...” Fechou a porta vizinha do sono, encolheu-se nos braços dormidos dela, apagou a luz, pode se virar, mas já chorava ao pensar nas crianças que cresciam, em breve seriam jovens, em breve ser pai seria uma retidão de responsabilidade ainda mais complicadas, não deixou que ela acordasse, não deixou de olhar pela janela a chuva cair sem mágica e sem zelo. A noite descia fria debaixo dos cobertores, os corpos deitados sem almas, um frescor entre eles, entre elas não existia nada, nada que pudesse ser nomeado, um sorriso flácido dispido e remoto. A profundidade das cobertas, o lençol prisioneiro reto do contorno dos corpos, gravidade cutânea, amor cutâneo, esta pele, esta tez que se modifica ao encontrar com as experiências, este acumulo de juventude em rugas, a juventude envelhicida é a velhice? A velhice tem toda a juventude em memória, aos jovens cabem a obrigação de experenciar a velhice, dia a dia, com ternura e sem orgulho, com admiração e se somar uma certa simplicidade no olhar, o mesmo olhar taciturno ou diurno, o mesmo olhar de desejo, o olhar de seios, o olhar de bocas, o olhar do jovem nas vidraças fechadas do tempo, famoso personagem científico, objeto distante sem relevo, o desvelo das orelhas no travesseiro, a mulher na cama farta de vento ouvia e esquecia as notas da mecânica dos pulmões, o encher balões da infância perpetua-se na serenidade e na aflição.

O trovejar instantâneo se fez presente no clarão da janela, a chuva continuava em desespero pelas ruas, uma saudade imensa visitava os gatos e o sol, esta enchente de luz calorosa obliterada por tantos nimbos azuis. Assim a perdida paz dormia. Ela dormia encostada na ternura e no cansaço. E ele, sumia na chuva. A chuva desce sem pretender carinho ou grosseria, comete vida e morte. O céu está escuro, a lua retida no cinza, sem clarear estando escura a chuva.

Ela estava triste, estava triste porque vê-la era um ofício só dela, um trabalho que lhe impunha em seu início alegremente, mas no decorrer do tempo tudo se perdia, as boas intenções lhe doíam o coração de tal forma, que ela já duvidava se amava, se amava alguém a não ser a ela mesma em sua celeste agonia. No carro, ou na rua, em casa ou em pensamento, ela não mais amava, queria amar para não ficar só, para não ter que enfrentar a urgência de morrer, de morrer numa noite mais. Urrava mas não bebia, bebia mas não bastava chorar, quando a outra desceu daquele carro, recoberta de egoísmo, sofrendo as perdas do pai, quando a outra ouviu dizer do dinheiro, acabou seu amor, o amor pelo dinheiro era maior, o amor pelo cômodo e por si mesma era maior, acabou a amizade. A outra nunca teve amizade por ela, desconhecia a sua situação, a outra só queria mamar incansavelmente, em todos seios que via pela rua, queria mamar de todas as maneiras possíveis, queria se guardar, se dispor apenas a absorver, ofertar era lhe uma causação de dor. Ela desistiu dos olhos da outra e o que lhe ficou, este amargor, esta perda irreparável, esta vida única, solitária, este mundo pastel e chuvoso, ela queria poder lhe dizer que a amava, ela queria poder lhe dizer que faria tudo, mas o que faria, estava fazendo, não era suficiente, não era suficiente, e a outra escondia, escondia seus medos, escondia qualquer trabalho, a outra apenas não queria perder e não perdia, escolhia não perder e nada estava mais claro, a outra não amava ninguém a não ser a ela mesma, a ela mesma, cheia de nada, cheia de medo. Ela está cheia desta mulher, desta pessoa que deseja ser filha, que exige que pague por ela, está cheia de ofertar, ela não vai ofertar mais nada a outra, se quiser que busque os caminhos da felicidade.

Os caminhos felizes estavam interditados aos seres humanos? Esta pergunta aludiu em tua cabeça pela primeira vez quando já não podia mais pensar em nada, naquele dia a dor de cabeça aumentava consideravelmente. No mesmo dia não chegou a uma resposta satisfatória, mas nunca mais a esqueceu. Sem anotar no quadro negro, ou na agenda, sem anotar no diário, guardou-a grafando no viço do cérebro.

Esta prisão saqueada as vezes por rebeldes sem causas, este hotel esmaecido na pintura das suas paredes, este palácio acobertado de falsas e verdadeiras rosas, esta casa de cômodos infinitos, esta guerra de sentimentos contrastantes e contrastados, estas letras de diversos alfabetos, esta orquestra de múltiplas tonalidades, este corpo do tempo fictício e não fictício, esta besteira de memória fustigada e fustigante, mora em algum burgo do coração e vela o desespero e a felicidade, guarda o princípio primeiro de ser amado, para depois para sempre apreender o que seja o nunca e o amor, o nada e a morte. Esta besteira de presente, esta foto cruel que é o agora, cruel amanhã, depois de amanhã ainda mais cruel, sem perda da crueldade anterior, a felicidade é uma crueldade sem propósito, vadia, necessária, pálida. Que espécie de luz pode existir nesta memória? Que espécie de sofrimentos possam existir nesta mesma memória? Que espécie de amor pode existir nesta memória? Que morte é essa, abstrada, inverossímil? Que ardis tempos somam-se e subtraem-se sem definir as operações matemáticas que ocorrem. Que tabuada é essa? Que geografia é esta? Não se pode conhecer a floresta estando no mar. Não se pode pescar quando se está nas montanhas. Não se pode sentir frio no calor. Pode se estar doente! O conhecimento conhece suas malditas vertigens. Coloridas ou em preto-e-branco.

Toya Libânio
Enviado por Toya Libânio em 15/01/2019
Código do texto: T6551194
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