Ufa, uva! (novembro de 2018)

“Tio Bernardo chega hoje no ônibus das nove horas” ouvi minha mãe dizer. Os sobrinhos mais novos, assim como eu na flor da adolescência (todos entre doze e quinze anos de idade), seguiríamos todos com os adultos para a rodoviária. O sol mal se punha e nós quatro fizemos fila na porta do banheiro para tomar banho bem antes dos adultos.

A expectativa dos adultos em vê-lo novamente depois de dez anos não nos parecia grande coisa. Afinal, era um tio que mal conhecíamos. Mas a promessa de participar da recepção junto aos adultos à mesa era agradável. Mamãe nos estimulava a desejar com ardor a presença de tio Bernardo, segundo ela trazendo presentes para todos.

Os presentes que trazia do Sul, de onde vinha para o interior do país de Minas, onde vivíamos, eram encomendas dos adultos. Esses, diziam desejar nada, mas... se pudesse se lembrar de trazer garrafas daqueles maravilhosos vinhos que produzem por lá, todos os adultos agradeceriam.

Se, além das garrafas de vinho houvesse algum lugar na bagagem para umas garrafas de suco de uva para “os meninos” (assim os adultos nos chamavam), estariam muito gratos. Nós, que conhecíamos a fruta através da Fanta uva que tomamos no boteco do Seu Genaro, ficávamos encantados com a possibilidade de conhecer o suco de verdade.

Além do mais, também estávamos famintos de antemão porque sabíamos que mamãe ia servir pasteizinhos e rabanadas no jantar de recebida ao tio. Nosso interesse na bebida e na comida era tamanho que não nos interessava o que cochichavam meus pais com meus outros tios acerca dos propósitos da visita de tio Bernardo.

Era uma mesa posta para nove pessoas: minha mãe, papai, tio Afonso, tia Madalena, as quatro crianças e... tio Bernardo. À primeira vista, devo confessar, surpreendeu-me a fisionomia um pouco agastada, aparentando idade, em tio Bernardo. Era o tio mais jovem e, no entanto, parecia o mais velho de todos.

Minha prima Janete, três anos mais velha que eu, tentava explicar a aparência debilitada de tio Bernardo a partir do que ela ouvia aqui e ali da boca dos adultos. Tio Bernardo havia tido um caso amoroso com uma mulher muito mais velha, rompendo ela os laços do relacionamento depois de dois anos. Diziam que era noticiarista como ele.

Algo nos dizia, entretanto, a nós adolescentes, que havia algo a mais que os adultos não desejavam que soubéssemos, razão a qual insistiam no relacionamento amoroso de meu tio e só assim en passant, relutantemente, confessavam que o teor do relacionamento era intempestivo e se justificava pelo fato de ela ser muito severa.

Meu tio Bernardo, segundo palavras que ouvi dele, dava aulas de literatura portuguesa em uma escola, mas também contribuía com um jornal escrito da região. Eu tentava imaginar em que momento a presença da noticiarista (como preferiam chama-la meus tios) tornou-se um peso para meu tio ao ponto de abandonar tudo e vir até nós.

Esperto como sempre fui, logo fui juntando pedaços do que os adultos não diziam para montar uma história que se aproximasse da verdade. Eu logo me perguntei: haveria uma mulher que forçaria a retirada de meu tio da vida pública, tendo de vir conviver com os parentes no interior a milhares de quilômetros de onde vivia e se havia estabelecido?

A noticiarista, para mim, era uma metáfora para problemas com a polícia. Eu ouvira esse nome uma vez. Provavelmente, com maestria, ofendera os produtores de vinho da região e por isso teve que se esconder no país das Minas. Eu acreditava ter decifrado o problema: os vinicultores furiosos, alegando difamação, queriam prender o meu tio.

Ainda na rodoviária, fomos apresentados a tio Bernardo um por um, do mais novo ao mais velho das crianças. Ao contrário das nossas expectativas, nada mencionou sobre os presentes que trazia. E, de fato, trazia muita bagagem, tanto que foi preciso que seguíssemos andando até minha casa enquanto o carro carregava todo o peso da viagem.

Meus pais lembraram-se de se vestir muito bem, puseram ternos e vestidos de missa, precavendo-se em razão da fama de homem elegante de tio Bernardo. Na realidade, não era para tanto: vestia-se bem, mas com um terno que fora trabalho de um alfaiate havia uns dez anos atrás, um tanto démodé para os dias de hoje. Vestia-se com descuido.

Toda essa história começou há uns cinco meses atrás. O impacto da visita com cara de estadia longa em minha vida foi grande, mas digo isso sentindo poder ter menosprezado esse impacto na vida dos pequenos Hélio e Miguelzinho – assim como na vida de Janete e dos adultos. Tenho certeza de que cada um sentiu-se “chacoalhar” a sua maneira.

No dia em que chegou, tio Bernardo fez surpresa para nós pequenos. Foi rápida a retirada para a nossa cidade, segundo ele, mas não se esqueceu dos vinhos e dos sucos. Sentado na copa de casa foi retirando um a um os presentes encomendados. Por último, para a alegria do quarteto, vieram duas garrafas grandes de suco de uva. Ufa, uva!

Alguns dias depois minhas impressões acerca do tio que aparecera em casa foram se confirmando. Havia a felicidade da visita de um tio. Mas a título de visita ele vinha para ficar. Talvez para sempre. Confidenciei uma noite à prima Janete que achava que o tio Bernardo fugia da polícia. Ela me contou que achava o mesmo.

Bom, para o visitante, ou retirante, era importante trabalhar. Depois de uma conversa de minha mãe com a madre Maria Teresa, do nosso melhor colégio, houve interesse pelo currículo de professor de tio Bernardo. Era certo que o contratariam para o ano seguinte. Meu tio parecia suspirar confiante e aliviado: era um problema que se resolvia.

Em uma manhã, dois meses de sua chegada, um grande utilitário Honda com homens de terno parou em frente à nossa casa e levou meu tio Bernardo embora. Procuramos saber de seu paradeiro, mas não obtivemos sucesso. Três meses se passaram desde quando partiu e nunca mais o vi. Pacientemente, ainda esperamos notícias. Terríveis vinícolas!