Quando se nasce duas vezes

Tomou o último gole do café observando o crepitar da lenha no fogão. Havia um cheiro inconfundível de infância: o leite direto do peito da vaca, o cuscuz de milho moído por ele mesmo, o café torrado pela sua mãe e a carne seca pendurada sobre o calor do fogão. Não havia geladeira, portanto, só se comia carne fresca no dia de feira.

Pegou um tição, acendeu um cigarro industrializado e dirigiu-se à janela, soltando longas baforadas. Os irmãos, quase todos reunidos na cozinha, esperaram uma bronca do pai, ou até mesmo uma recriminação da mãe, pois nenhum filho se permitia fumar na frente deles. Os dois se mantiveram calados. Agora ele era o filho pródigo que a casa retorna, podia fumar na presença dos pais sem que isso importasse em desrespeito. Era jornalista de um grande jornal no sul do país e as pessoas de sua terra tinham-no como um ser especial, alguém de muita consideração. Um genro que todo pai queria ter, um herói que todo povo precisa.

Olhou pela janela e viu um dos seus irmãos pequenos brincando com o cachorro no terreiro. O menino que ele viu nascer já estava um homenzinho. Lembrou-se de um detalhe, uma curiosidade:

– Mamãe, como é o nome de Tonico?

– Tonho de Lisboa.

– Como?!

– Antonio de Lisboa. É que esse seu irmão desde a minha barriga que é tinhoso. Deu um trabalho danado pra nascer e eu fui obrigada a fazer promessa pra Santo Antonio de Lisboa, senão morreríamos os dois.

– Mas mamãe, Tonho de Lisboa é lá nome de gente?! Esse menino, sem nome, já é problema, imagine com um nome feio desse!

– Mas foi promessa que fiz a Santo Antonio de Lisboa, meu filho!

Jogou a bituca do cigarro janela afora, pegou um chapéu de palha no sofá da sala, montou na jega de seu irmão Guidório e tomou rumo do povoado. Foi direto para o Cartório de Registro de Pessoas Naturais. Dez minutos depois saiu sorridente, com um registro na mão. Puxou a jega pelo cabresto até a casa do seu avô, que era perto. Entrou na casa e encontrou o avô sentado na cozinha, caneca de café à mão.

– A sua bênção, padrinho!

– Deus lhe abençoe, meu neto. Como vai Doralice?

– Vai bem. Mandou lhe pedir a bênção – mentiu.

– Tá abençoada. Foi bom você aparecer aqui hoje, pois estou com um dilema pra resolver. Você que é um caboclo setenta e que conhece os quatro cantos do mundo, me diga uma coisa: que devo fazer com um moleque que anda pegando minhas ovelhas pra fazer safadeza?

– Ora, padrinho, dar meia dúzia de bolos nele!

– Foi o que pensei em fazer, mas vou fazer pior: vou lhe dar uma surra de cansanção.

O visitante sentiu o corpo coçar. Surra de cansanção é castigo medieval. Além de coçar, o cansanção arde, queima, dor terrível por mais de semana.

– Quem é esse moleque, padrinho?

– É o safado do Tonico, seu irmão.

Um sentimento de culpa doeu-lhe a consciência. Precisava prevenir o irmão para ele não pisar na casa do avô enquanto ele estivesse com essa ideia de castigo. Pediu licença, montou na jega e retornou à casa.

– Mamãe, conversei com Maricas Coxeba e ela deu um jeito. Tonico agora se chama Antonio Ronaldo. Ronaldo em homenagem a um colega meu, fotógrafo do jornal onde trabalho, e Antonio do seu santo. Santo Antonio não vai reclamar pela falta do Lisboa, que não era sobrenome dele. Tá aqui a certidão de nascimento.

Palavra de primogênito tem lá seu valor e peso. Palavra de primogênito e ídolo do povo da roça e da cidade tem mais valor ainda. O que ele dissesse, estava dito e bem dito, mas Tonico não gostou nem um tantinho do sermão aplicado em nome da moral e dos bons costumes. Antes a surra de cansanção ao lengalenga de intelectual, com algumas palavras, a maioria talvez, totalmente ausentes do seu vocabulário. Que diabo é zoofilia?!

O tempo no meio da caatinga custa a passar, mas passa, como em qualquer outro lugar. Assim, chegou o dia da partida do jornalista. O prefeito fez questão de mandar a Rural da Prefeitura conduzi-lo até a capital, onde pegaria um ônibus para São Paulo. Mas, antes do embarque, os estudantes foram obrigados a cantar louvores ao filho ilustre na porta da Prefeitura.

Depois que a poeira da estrada assentou, a vida continuou como dantes no quartel de Abrantes. Tonico continuou sendo Tonico, apesar de se chamar Antonio Ronaldo. Evitou ir a casa e, principalmente, aos pastos do avô, até que um dia a família se mudou para uma cidade maior e lá o tempo passou mais rápido. Quando ele precisou dos documentos para fazer o Exame de Admissão ao Ginásio descobriu, surpreso, que Antonio Ronaldo nunca existiu, e que talvez precisasse começar tudo outra vez como alguém que acaba de nascer. A data de nascimento, que gostava de se gabar de ter nascido em plena terça-feira de carnaval segundo afiançara sua mãe, havia mudado de 21 de fevereiro para um mês antes, 21 de janeiro, dia comum no mundo todo.

Assim, de repente, o menino Tonho de Lisboa, pisciano de nascença, passou a se chamar Ronaldo, um aquariano nascido por decreto do seu irmão e da escrivã Maricas Coxeba.